Dão Real Pereira dos Santos *
Tento entender por que, afinal, diante de uma tragédia tão evidente como esta do coronavírus, em que o mundo inteiro se mobiliza para salvar vidas, algumas pessoas insistem em dizer que tudo isso é um exagero, uma histeria, que não passa de um factoide, que não haveria nenhuma necessidade de isolamento social, ou que se trata de uma conspiração internacional da China contra o mundo. Por coincidência, a maioria dos que criticam as medidas preventivas que vêm sendo adotadas no Brasil são empresários.
Há claramente uma tentativa de minimizar a crise, como se a morte de alguém ou de muitos fosse apenas externalidade negativa inevitável. O próprio presidente da República, em entrevista televisiva, criticando as medidas preventivas, inclusive defendendo a realização dos cultos religiosos, comparou a epidemia a uma chuva, em que bastaria nos protegermos com uma capa, mas que os mais fracos e doentes vão morrer. E, mais recentemente, em pronunciamento oficial, reafirmou a sua posição contrária às medidas de prevenção e disse que as crianças devem voltar às escolas e os trabalhadores aos seus trabalhos. E disse isso, contrariando a posição do seu próprio governo, que está determinando as medidas preventivas de isolamento social.
As recentes manifestações do proprietário do Madero foram estarrecedoras, para não usar outra expressão. Disse ele, com muita naturalidade, que a morte de 6 a 7 mil pessoas é menos importante do que os danos que as medidas preventivas causam à economia. Será que os parentes daqueles que serão escolhidos para morrer, por falta de leitos nos hospitais, concordariam com isso?
O dono da Havan, defensor ferrenho do presidente da República, disse também que há uma histeria no caso do coronavírus e ameaçou demitir 22 mil funcionários. O publicitário Roberto Justus chamou a epidemia de gripezinha que só vai matar os “velhinhos doentes”. Interessante, que se repete entre essas manifestações, uma tentativa de naturalizar a morte daqueles que eles se referem como os “velhinhos doentes”. A mensagem deles não pode ser mais explícita: você, que é jovem e saudável, não se preocupe, deixe os seus “velhinhos doentes” em casa e vá trabalhar.
Esta naturalidade em tratar com a vida e a morte das pessoas é reveladora de traços de caráter, mas também evidencia o claro conflito existente entre o trabalho e o capital, entre o Estado e o mercado e entre a vida e a propriedade.
Manifestos inflamados de representantes da classe empresarial pedem urgência do Estado na defesa das empresas. Querem dinheiro público para salvar bancos, salvar negócios, preservar seus lucros, que temporariamente serão reduzidos. Querem não pagar tributos justamente quando mais o Estado vai precisar deles. Para estes empresários, que eu espero que não representem o pensamento da maioria, nada é mais importante do que seus negócios e os seus lucros, nem a vida de milhares de pessoas, quando mais dos “velhinhos doentes”.
Na verdade, tudo é uma questão de dinheiro e para eles, salvar vidas concorre com salvar empresas. Além disso, há uma questão de fundo. Esses “velhinhos doentes”, que exigem mais cuidados da saúde pública, as crianças, que exigem mais investimentos nas escolas públicas, os idosos, que exigem aposentadoria digna, e os extremamente pobres, que só sobrevivem com recursos da assistência social, os cientistas, que precisam de recursos públicos para suas pesquisas, consomem uma parcela dos recursos que não poderá ser apropriada como lucros. Os recursos públicos usados para salvar vidas ou para garantir o bem-estar de milhões de pessoas não poderão ser usados para salvar empresas, nem para pagar juros aos rentistas. Está aí um conflito que ajuda a explicar as manifestações desses empresários, que sempre defenderam o Estado mínimo, e, agora, são confrontados com esta “pandemiazinha” que está demonstrando a todos que não há saída sem um rápido fortalecimento do Estado.
Talvez a razão principal destas suas insistentes manifestações, minimizando a crise, seja o contrário do que eles dizem, e significam, de fato, o reconhecimento de que a crise é realmente muito grave, e que, diante desse cenário trágico, o que pode estar em grande risco são a riqueza e patrimônio que eles acumularam, muitos, sem grandes dificuldades.
Isso, porque a Constituição Federal, de 1988, estabelece, como cláusula pétrea, em seu Artigo 5º, que a todos deve ser garantida a inviolabilidade do direito à vida, dentre outros. E, já me antecipando à alegação de que também a propriedade é um direito individual previsto no mesmo Artigo, ressalto que a propriedade deverá atender a sua função social (inciso XXII) e que a lei estabelecerá o procedimento de desapropriação por necessidade ou utilidade pública (inciso XXIII). Além disso, no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular.
É evidente que a propriedade é um direito com status inferior ao direito à vida, embora o presidente da República e seus filhos insistam em tratá-la (a propriedade) como um direito sagrado. Portanto, caracterizada a ameaça à vida ou às vidas de milhares ou milhões de pessoas, as propriedades privadas poderão, sim, ser afetadas pelo Estado, indiretamente, por tributos altamente progressivos, ou diretamente, por desapropriação ou por uso. Lojas poderão virar hospitais, fábricas poderão ser utilizadas para produzir medicamentos ou insumos para a saúde, veículos poderão ser requisitados para transporte, por que não, se for para salvar vidas?
Este talvez seja o motivo real, pelo qual, em um movimento aparentemente isolado, mas com argumentos quase idênticos, vários empresários começam a divulgar vídeos em suas redes tentando minimizar a tragédia, dando a ela um ar normalidade e de que as medidas preventivas seriam exageradas, radicais e desnecessárias.
A insistente negação da realidade, das informações oficiais, daquelas produzidas por centenas de cientistas do mundo inteiro e de especialistas na área, bem como dos dados alarmantes que chegam dos países mais afetados, como a China e a Itália, não está na mesma linha daqueles que negam que a terra é redonda, ou de que não há aquecimento global.
Esta negação parece ser mais uma ação pensada de forma estratégica com finalidade preventiva contra o que já está ficando muito claro e evidente: o dinheiro que falta e que vai faltar muito mais logo ali frente, para que o Estado possa enfrentar a crise, é justamente a riqueza que está concentrada nas mãos de poucas famílias, mas famílias muito ricas, há muito tempo. Minimizar a crise e os seus efeitos não vai eliminar o coronavírus nem esconder as mortes que virão. Negar a realidade não faz com que ela desapareça. Portanto, será inevitável que todos assumam suas parcelas de responsabilidade social. É hora de tributar os mais ricos, que historicamente pagam menos tributos do que os mais pobres, para recuperar a capacidade do Estado fazer o enfrentamento a esta epidemia e garantir renda às pessoas mais necessitadas (e uma capacidade de demanda mínima que seja à economia). Nunca, na nossa história recente, respeitar o princípio constitucional da solidariedade foi tão necessário, como agora.
Dão Real Pereira dos Santos é diretor de assuntos institucionais do Instituto Justiça Fiscal