por Dão Real Pereira dos Santos
Imposto sobre Grandes Fortunas não é um tributo que deva ser pensado como permanente.
Sempre a mesma história. Basta iniciar qualquer tratativa parlamentar para implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) e já surgem, de todos os lados, inúmeras manifestações contrárias, sempre com os mesmos surrados argumentos de que esse imposto seria pouco efetivo em termos de arrecadação, de que haveria fuga de capitais do país, de que estaríamos no sentido contrário aos países da OCDE que já estariam abandonando este tributo, ou de que seria um imposto facilmente burlado, em função das dificuldades para se determinar as tais grandes fortunas.
Estes argumentos ocupam vários espaços, inclusive aqueles privilegiados nas páginas dos grandes jornais, mas são, geralmente, desacompanhados de justificativas ou comprovações técnicas, como se uma suposta reputação de quem os apresentam já fosse suficiente para torná-los incontestáveis.
Inicialmente, precisamos considerar que o imposto sobre grandes fortunas é o único imposto previsto na Constituição Federal de 1988 que ainda não foi implementado. Sua previsão teria sido um erro? Ou, os motivos que o justificaram teriam desaparecido, nestes 31 anos que nos separa da promulgação da Constituição? Ao preverem o IGF, os constituintes sinalizaram, com muita clareza, que a exagerada concentração de riquezas não é desejável, pois dela decorre o aumento da desigualdade e da pobreza, além de ser disfuncional para a atividade econômica. O Artigo 3º da CF/1988, estabelece, como objetivos da República, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades, além da promoção do desenvolvimento econômico. É neste sentido e com estes objetivos que precisamos compreender a necessidade de tributar as grandes fortunas no Brasil.
De 1988 até hoje, muitas propostas de criação do IGF já foram apresentadas e discutidas no parlamento, mas acabaram sempre sendo deixadas de lado, com base nos mesmos argumentos que são hoje novamente requentados.
A campanha “TRIBUTAR OS SUPER-RICOS” apresenta, juntamente com várias outras propostas tributárias, um projeto para a criação do IGF. Para as mais de 70 entidades promotoras da campanha, o IGF deverá incidir sobre as fortunas que ultrapassarem a R$ 10 milhões, ou seja, se alguém possui patrimônio de R$ 12 milhões, irá pagar o imposto apenas sobre R$ 2 milhões. Para dar uma ideia do que significa este valor, um trabalhador que conseguisse poupar R$ 1 mil todos os meses levaria cerca de 830 anos para juntar R$ 10 milhões.
As alíquotas propostas são residuais e progressivas: 0,5% para patrimônio superior R$ 10 milhões até R$ 40 milhões; 1% para riquezas superiores a R$ 40 milhões até R$ 80 milhões; e 1,5%, para fortunas que ultrapassarem a R$ 80 milhões.
A legislação proposta pela campanha prevê que o imposto deverá incidir sobre todas as riquezas das pessoas físicas residentes no Brasil, independente de onde estejam localizadas, e de todas as riquezas localizadas no Brasil, independentemente de onde estejam seus proprietários. Há também, nos projetos de legislação apresentados, a previsão de não incidência sobre os bens aplicados em atividades de interesse nacional. Portanto, o IGF proposto não prejudicaria os investimentos produtivos, nem poderia ser facilmente evadido pela transferência de ativos para o exterior. A velha prática de colocar o patrimônio em nome de empresas offshore[i] não é suficiente para evitar a incidência do imposto.
Então, voltando aos argumentos contrários ao IGF, será que os brasileiros não possuem fortunas suficientes que justifiquem esse imposto? Será o valor arrecadado com este tributo seria assim tão insignificante? Não é o que podemos observar acompanhando as publicações das revistas especializadas em afortunados. Todos os anos, a revista Forbes publica a lista dos bilionários brasileiros. No ano de 2020, eram 42 pessoas que possuíam, individualmente, fortunas superiores a US$ 1 bilhão, e isso colocava o Brasil na 7ª posição do ranking dos países com maior número de bilionários no mundo. Casualmente, ou não, somos também o 7º país do mundo com maior desigualdade social[ii].
A riqueza estimada daquele seleto grupo de bilionários é de aproximadamente R$ 600 bilhões. De acordo com a Oxfam, entre os meses de abril a julho de 2020, no auge da pandemia, portanto, esses bilionários conseguiram aumentar suas riquezas em aproximadamente R$ 176 bilhões.
Nas regras propostas pela campanha “TRIBUTAR OS SUPER-RICOS”, com base nas declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, de 2018[iii], o IGF alcançaria cerca de 59 mil pessoas (apenas 0,028% da população brasileira), que possuem em conjunto aproximadamente R$ 1,9 trilhão em bens e direitos declarados, e mais todo o conjunto de bens localizados no país, cuja propriedade está em nome de pessoas físicas ou jurídicas não residentes nem domiciliados no país. A estimativa é de que este imposto poderia produzir uma arrecadação superior a R$ 40 bilhões ao ano, longe de ser insignificante, portanto.
Já o argumento de que esse imposto poderia estimular a fuga de capitais soa como uma espécie de chantagem ou ameaça do tipo, se nos tributarem, vamos embora. Neste aspecto, é importante esclarecer que as propostas legislativas da campanha foram construídas com o cuidado de fechar as lacunas previsíveis para fuga de capitais. A incidência sobre todas as riquezas dos residentes e sobre as riquezas no Brasil de não residentes ou não domiciliados no país constitui-se como mecanismo antielisivo importante. Além disso, grande parte das riquezas são constituídas por bens imóveis, ou participações societárias, cuja transferência para fora do país é praticamente impossível.
O IGF é um imposto recorrente, de natureza residual, com alíquotas muito baixas, que incidem sobre parcelas muito altas de riquezas. Certamente não comprometerá em nada o padrão de vida dos afortunados. Então, por que tamanha resistência? Muitos até já admitem a volta da tributação dos lucros e dividendos, pelo Imposto de Renda, mas continuam resistindo ao IGF.
Há um elemento que talvez ajude a explicar. A fuga de capitais não é nenhuma novidade no Brasil. Já vem sendo praticada de forma muito expressiva por diversas empresas e agentes econômicos com negócios globalizados, por diversos motivos, dentre os quais, o de reduzir o pagamento dos tributos sobre a renda. É por esse motivo que a OCDE, por demanda dos países do G20, publicou, em 2013, o Plano BEPS[iv], contendo 15 ações voltadas à formulação de políticas e estratégias de combate à fuga de capitais para paraísos fiscais e à sonegação de tributos em escala mundial.
Seja pela prática de manipulação de preços de bens e serviços entre empresas vinculadas, mediante simulação de operações de comércio exterior ou de operações financeiras com empresas offshore, localizadas em paraísos fiscais, seja pela adoção de planejamentos abusivos relacionados à blindagem patrimonial, os agentes econômicos conseguem transferir boa parte dos seus lucros para países com baixa ou sem nenhuma tributação. Inúmeras consultorias especializadas ajudam os super-ricos a administrar seus patrimônios com o objetivo evidente de pagar menos tributos em seus países de origem, inclusive aqueles relacionados com a transmissão por herança.
A criação do IGF, ao contrário do que se costuma argumentar, poderia até neutralizar parte dos efeitos produzidos por estes planejamentos tributários abusivos, pois permitirá tributar todo o patrimônio, localizado no Brasil, mesmo que estejam em nome de empresas estrangeiras, ou tributar o patrimônio dos residentes, mesmo quando estejam localizados no exterior. Portanto, o IGF poderá alcançar os bens e direitos adquiridos ou mantidos até mesmo com recursos financeiros que tenham sido objeto de fuga de capitais praticada anteriormente.
Por outro lado, a necessidade de identificar e quantificar o patrimônio dos contribuintes, para efeitos da incidência do IGF, colocará luz sobre todos os acréscimos patrimoniais que poderiam não estar devidamente acobertados por rendimentos declarados. Aliás, muitas vezes, a omissão de rendimentos é demonstrada justamente pela verificação de acréscimo patrimonial a descoberto. A complementariedade entre os tributos (quando um tributo ajuda na administração do outro) também constitui instrumento antielisivo e essa possibilidade certamente não passa despercebida para aqueles que preferem manter grande parte dos seus rendimentos a salvo de qualquer tributação.
Usar o exemplo de outros países que tenham abandonado este tributo como motivação para não o adotar, sem levar em conta as condições em que se encontram cada um dos países é um argumento oportunista, pois nunca foi considerado para justificar a necessidade de revogar a isenção do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos, já que todos os demais países tributam esse tipo de rendimento. Além disso, sendo o IGF um tributo com claro viés redistributivo, será muito mais necessário em países com maior concentração do que em países com distribuição mais igualitária das riquezas, ou em momentos da história de cada país em que a redução das desigualdades seja imperativa.
Imposto sobre Grandes Fortunas não é um tributo que deva ser pensado como permanente. Se o seu objetivo é promover uma desconcentração de riquezas, tão logo isso ocorra, poderia ser abandonado. Da mesma forma, se outros tributos são suficientemente eficazes para evitar uma exagerada concentração de riquezas, como um Imposto de Renda altamente progressivo e/ou o imposto sobre heranças elevado, também o IGF poderia não ser assim tão necessário.
O Brasil não se enquadra em nenhuma destas condições. A nossa elevadíssima concentração de riquezas decorre em parte da incapacidade do atual sistema tributário de promover uma redução efetiva das desigualdades. Sabemos que o sistema tributário brasileiro é fortemente regressivo, ou seja, onera mais os mais pobres do que os mais ricos, proporcionalmente a renda de cada um. Assim, o próprio sistema tributário potencializa a concentração de riquezas, na medida em que tributa mais acentuadamente o consumo do que a renda e o patrimônio. Além disso, em relação ao Imposto de Renda, a isenção dos lucros e dividendos, que existe desde 1995[v], permite que as altas rendas sejam muito menos tributadas do que as rendas mais baixas.
Outro argumento recorrente é que se trata um tributo de difícil administração, pois haveria grande dificuldade para identificação e quantificação das fortunas e, por isso, dizem, seria facilmente burlado. Sem dúvida, os tributos de incidência direta, sobre renda e patrimônio, ou uma tributação mais progressiva e mais justa exigem maiores investimentos na administração tributária. A necessidade de fortalecer os instrumentos da administração tributária, por outro lado, não pode ser usada como motivo para não se implementar uma tributação mais justa. Também é preciso considerar que inúmeras dificuldades, que existiam no passado, hoje já estão plenamente superadas pelo avanço da tecnologia e dos intercâmbios de informações fiscais entre os países.
Portanto, fica claro que os argumentos recorrentemente utilizados para contestar as propostas de implementação do IGF servem apenas para criar rejeição e não para demonstrar sua inviabilidade técnica. Trata-se, portanto de uma escolha política e ideológica. Essa visível e estranha defesa dos fortes e dos afortunados se contrapõe, de forma gritante, com a indiferença em relação à falta de correção da tabela de incidência do Imposto de Renda, que onera cada vez mais quem ganha menos, ao aumento das alíquotas das contribuições previdenciárias sobre os trabalhadores, ou à falta de renovação do pagamento da renda emergencial, no auge de uma pandemia.
[i] Wikipédia: Offshore é o nome comum dado às empresas e contas bancárias[1] abertas em territórios onde há menor tributação (em comparação ao país de origem dos seus proprietários, e geralmente referidos como paraíso fiscal)[2] para fins lícitos (mas, por vezes, ilícitos, quando estas ocultam a origem do dinheiro seja por crime ou corrupção).
[ii] https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2019/12/brasil-7-pais-desigualdade/
[iii] RFB – Grandes Números das Declarações de Imposto de Renda das Pessoas Físicas – Ano Calendário 2018.
[iv] Wikipédia: BEPS é um acrônimo derivado do inglês base erosion and profit shifting, que significa em português Erosão de base e transferência de lucros. É um termo técnico usado para designar esquemas de planejamento tributário agressivo praticados por empresas multinacionais ou grupos econômicos, que se aproveitam de lacunas normativas e assimetrias dos sistemas tributários nacionais para transferir, artificialmente ou não, lucros a países com tributação baixa ou inexistente.[1][2]
[v] Lei 9.249, de 1995, Artigos 9º e 10.
Edição: Katia Marko