Por Cristina Pereira Vieceli* e Rober Iturriet Àvila**
A desigualdade social é uma das marcas das sociedades mercantis, e é transpassada por relações de gênero, raça e classe, e também a maneira como as diferentes sociedades se organizam produtivamente. A desigualdade de gênero se relaciona com o contexto produtivo, definindo os espaços em que as mulheres e os homens ocupam na sociedade.
Uma das maneiras de mitigar as desigualdades sociais e redistribuir renda é por meio das políticas fiscais, entre as quais, a tributária. Há diversos estudos que correlacionam a forma como a sociedade tributa com a manutenção ou diminuição das desigualdades de renda. No entanto, poucas são as pesquisas que incorporam a questão de gênero como importante marcador para a definição das posições relativas entre homens e mulheres, e como a estrutura tributária pode afetar nestas relações.
A importância da construção de políticas fiscais com viés de gênero ganha espaço nas agendas de organismos internacionais, tais como a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), e os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável de 2015 (ODS, 2015). Estes instrumentos reconhecem que orçamentos públicos sensíveis à gênero trazem benefícios para toda a sociedade. A Plataforma de Ação de Pequim em 1995, na Quarta Conferência sobre as Mulheres, também incluiu a questão de gênero como pauta a ser adotada pelos governos, indicando a necessidade de políticas que contemplem as mulheres no orçamento público.
As iniciativas relacionadas à análise do orçamento, seja pelo viés da arrecadação como também das despesas vêm ganhando espaço no mundo. A exemplo disso, em 1989, um grupo de pesquisadoras independentes criou o Women Budget Group[1], que lança análises periódicas sobre os diferentes impactos das políticas macroeconômicas, incluindo mudanças tributárias, sobre gênero e outros recortes, como arranjos familiares. Em relação especificamente à tributação, o grupo Tax Justice Network[2] realiza diversos estudos e análises sobre a questão dos impactos da regressividade tributária, e evasão fiscal sobre gênero.
Os sistemas tributários se diferenciam de acordo com a estrutura econômica, histórica e política dos países. De acordo com Grown e Valodia (2010), enquanto os países de renda média-baixa possuem cerca de 2/3 da carga tributária indireta, os de renda alta a parcela é de 1/3 do total da carga. Diferentes estruturas tributárias podem ter implicações diretas sobre as desigualdades de gênero, contribuindo para a diminuição ou reforçando as normas e estruturas sociais desiguais. As discriminações de gênero se relacionam com as de classe a raça, o que varia de acordo com a estrutura social do país. Além disso, os sistemas tributários impactam de forma diferente os diversos tipos de arranjos familiares.
Devido a esses padrões desiguais, de acordo com a literatura feminista, diferentes sistemas tributários podem reforçar ou diminuir as desigualdades de gênero. Esta característica não está somente associada à progressividade e regressividade tributária, como também em outros aspectos particulares, como por exemplo a maneira como o país realiza políticas de desoneração, ou a forma como são tributados diferentes arranjos familiares.
No caso do Brasil, além de possuir uma carga tributária marcantemente regressiva, o país mantém profundas desigualdades de gênero, que se relacionam com as estruturas de classe e raça, advindas de nosso passado escravocrata. Essa característica pode ser analisada pela maneira como as mulheres se inseriram no mercado de trabalho, o que se ilustra pela baixa participação, desigualdades salariais, altos índices de desemprego e subutilização da força de trabalho. Além das restrições monetárias, as mulheres são sobrerrepresentadas nos trabalhos domésticos não remunerados, o que está relacionado com a forma como a sociedade se organiza para ofertar esses serviços, marcada pela escassez de políticas e serviços públicos. A situação desigual da mulher também é ilustrada na baixa participação em posições de liderança e poder político.
As mudanças demográficas e dos formatos das famílias aumentaram o papel das mulheres como chefes de arranjos familiares. No entanto, sua condição no mercado de trabalho pouco mudou, o que reforçou a condição de maior vulnerabilidade feminina à situação de pobreza.
A tributação no País está centrada em impostos indiretos tendo baixa progressividade sobre a renda, os lucros e os ganhos de capital e sobre o patrimônio. As disputas entre as classes e os grupos sociais se revelam importantes, indo além do aspecto teórico, na compreensão da distribuição do ônus tributário entre os contribuintes.
Analisando os dados referentes à incidência de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) provenientes da Receita Federal para o ano de 2017 por sexo, os resultados apontam que a alíquota paga pelas mulheres é superior à masculina em quase todas as faixas de salário-mínimo, o que está relacionado com a forma como os impostos são cobrados no País, isentando amplamente os indivíduos recebedores de lucros e dividendos, na sua maioria homens.
Em relação aos impostos diretos e indiretos a partir dos dados da pesquisa de orçamentos familiares concluímos que há uma forte regressividade na carga tributária brasileira, o que reforça as desigualdades de classe no Brasil. Esta evidência vai ao encontro da literatura sobre o assunto. Em relação às desigualdades de gênero, há uma limitação de dados, na medida em que conseguimos somente o desagregado para o total das despesas das famílias, não individuais. Ainda assim, os resultados apontam que os diferentes perfis de consumo definem a maior incidência de impostos diretos, indiretos e totais sobre as famílias chefiadas por homens.
Por outro lado, conforme visto, famílias chefiadas por mulheres estão mais concentradas nas faixas de renda com maior incidência de pobreza, e são o segundo grupo em proporção de impostos totais sobre a renda. Este fato indica que a carga tributária no Brasil se não reforça as desigualdades de gênero para o total da população, impacta principalmente sobre as mulheres nos extratos de renda mais pobres.
Para futuras pesquisas é necessário analisar a incidência da carga tributária sobre raça, haja vista que a população negra está historicamente na base da estrutura salarial. Há evidências, portanto, que a carga tributária do Brasil, reforça as desigualdades interseccionais, de gênero, classe e raça.
Os dados reforçam os argumentos favoráveis à necessidade de uma reforma tributária que não seja neutra ao gênero, classe e raça. Alterações na configuração tributária têm potencial de afetar a desigualdade, tal como redução de tributos sobre itens que compõem grande parte da despesa dos mais pobres, como alimentos, energia elétrica, gás de cozinha, higiene e cuidados pessoais. Além de aumentar impostos diretos, poder-se-ia onerar viagens e aquisição de imóveis. Além disso, é necessário que sejam ampliadas pesquisas que abarquem as questões de gênero, classe e raça. As análises sobre tributação devem ser ampliadas contemplando diferentes arranjos familiares e a legislação tributária sobre produtos diferenciados.
[1] Disponível em: https://wbg.org.uk/.
[2] https://taxjustice.net/ . Sobre as análises de gênero lançadas pelo portal: https://taxjustice.net/2020/03/04/gender-equality-can-taxation-make-it-a-reality/
* Cristina Pereira Vieceli é pesquisadora e bolsista em The Economy of Francesco Academy, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) com Doutorado e Pós-Doutorado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
** Rober Iturriet Àvila PhD em Economia pela UFRGS e professor de Economia na UFRGS.