As reformas desestruturantes pretendem acabar com os direitos garantidos na Constituição de 1988
O Seminário “Reformas DESestruturantes do Estado de Bem-Estar Social”, realizado pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF), em parceria com a ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) e a FENAFISCO (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital), foi encerrado no dia 16 de agosto de 2019, no Plenário Ana Terra, na Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre, com o debate sobre “As reformas DESestruturantes do Estado de Bem Estar Social: Saúde, Educação, Trabalhista, Previdenciária e Tributária”.
Sob a coordenação do diretor de Assuntos Institucionais do IJF, Dão Real Pereira dos Santos, a mesa tratou da importância de se resgatar e defender a Constituição Federal de 1988, em especial, o Artigo 6º que diz que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. “Deveríamos ler todos os dias ao acordar o Artigo 6º. Ele não faz distinção de qualidade de direitos. São todos essenciais no mesmo nível. E os direitos não estão vinculados ao mundo do trabalho, mas como um direito social que deve ser sustentado por toda a sociedade. A pressão é para desconectar os deveres aos direitos. A elite construiu um mito importante da nossa capacidade de arrecadação. O ataque mais frontal à Previdência, esse direito reconhecido, é a capitalização, pois transforma um direito sagrado em mercadoria. Esse é um ataque frontal ao pacto social que construímos”. Segundo Dão Real, a crise é uma oportunidade para quem quer reformar o Estado. “A crise é um cavalo encilhado para justificar a pressa em fazer as reformas, mas deveria ser proibido se propor reforma em época de crise conjuntural. A crise contamina o resultado de qualquer tipo de reforma”, defendeu.
Saúde: “O SUS é exemplo de política pública com reconhecimento internacional”
A cirurgiã dentista do Grupo Hospitalar Conceição Circe Jandrey tratou sobre a reforma da Saúde e fez questão em destacar que falava da condição de uma trabalhadora do posto de saúde, alguém que está na ponta da rede atendendo o usuário do serviço público. Ela lembrou a história da construção do Sistema Único de Saúde, que a saúde como política pública nasce com uma racionalidade econômica. Sugeriu o filme Sonhos Tropicais, baseado na obra do Moacyr Scliar, de 2000, sobre a revolta da vacina, que mostra a questão econômica que determinou a criação de uma campanha que foi um momento histórico do país. Também lembrou que a organização da Seguridade Social no país foi decorrente das lutas, com o surgimento do movimento da reforma sanitária. “Esse foi um movimento suprapartidário, que através da Constituição Federal de 1988 promoveu o debate e a criação do SUS. Implantado a partir de 1990, com a lei 9090, o SUS é fruto das lutas sociais. O sistema vai pressupor um projeto de sociedade: igualdade, justiça social, democracia. É possível afirmar hoje, a partir de estudos mundiais, que o SUS é exemplo de política pública com reconhecimento internacional. Sendo assim, ele é política de Estado e não de governo”, salientou.
Mas, segundo Circe, mesmo o SUS sendo uma conquista social, os embates mantidos com os opositores não acabaram. “A saúde suplementar é um exemplo muito bem colocado. Na prática há projetos em disputa: um de cunho público e outro privado. A crise internacional piora as desigualdades sociais. Há piora na vida da população. Essa é uma realidade que me chega todos os dias no atendimento da população. E o que estão fazendo é produzir uma política de saúde pobre para os pobres. Há medida que a saúde é colocada como mercadoria redefinimos seu conceito. A partir de 2016, tem aumentado a precarização do SUS, com as terceirizações, as parcerias público-privado, as OS (organizações sociais) assumindo as tarefas de atendimento e o desfinanciamento”, alertou. Por outro lado, afirmou, temos visto incentivos para os planos privados. “O SUS é uma das políticas públicas que mais tem contribuído para atacar a desigualdade. Hoje nós podemos ler que um quarto talvez dos brasileiros são capazes de contar com benefícios de planos privados médicos, no mínimo 75% da população é usuária exclusiva do SUS. Tratar a saúde do ponto de vista empresarial, significa atentar contra os interesses da maioria, retirar o caráter universal do SUS e colocá-lo no caráter de provedor de coisas mais simples pros mais pobres.”
Na avaliação de Circe, o fortalecimento do SUS pode fortalecer o complexo produtivo. “Nenhum sistema universal tem investimento tão baixo quanto o SUS. É fundamental que a gente reconheça que nos últimos 30 anos teve reconhecimento internacional. Contamos com uma expressiva redução da mortalidade infantil, controle da Aids e hepatite, estabelecemos o programa Estratégia de Saúde da Família, assistência farmacêutica, transplante de órgãos, combate ao tabaco, criação do Brasil Sorridente, primeira política de saúde bucal, Vigilância Sanitária que todos utilizamos, entre tantas ações exitosas. Temos formação profissional, programas regulares de residência. As contradições e dificuldades internas existem. Precisamos fortalecer e ampliar a participação social, em todos os momentos e em todos os níveis. Garantir o respeito e implementação das decisões nas Conferências e Conselhos de Saúde, o que muitas vezes não ocorre. Mas, acredito, que o modelo de sociedade mais justa passa pela participação da sociedade. Precisamos achar caminhos para unirmos nossas forças”, concluiu.
Educação: “Uma concepção maior de democratização da educação só se faz com a democratização na educação”
A professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do RS (Faced-UFRGS) Beatriz Luce também fez um retrospecto da história de lutas e construções na universidade desde o final dos anos 1970 e início dos 80, quando havia um forte movimento para pensar a educação. Além disso, trouxe Paulo Freire e seu livro Pedagogia do Sonho Possível para abastecer o debate. “A ideia de que estamos vivendo uma crise e temos que nos unir num movimento maior de energia e na noção de esperança, de que não é ficar esperando, mas esperançar, levantar, ir atrás, construir, não desistir, ir adiante, juntar-se com outros para fazer de outro modo. Sou a geração que se mobilizou muito para escrever a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Nos envolvemos na criação e implementação das políticas públicas, mas fizemos o trabalho de uma forma lacunosa, não nos apercebermos, não tivemos energia para fazer a pedagogia popular da democracia. Se não, não estaríamos com este resultado que estamos”, avaliou.
Ao mesmo tempo, segundo ela, que estamos no momento de resistir, precisamos resgatar os fundamentos. Revisitar o que precisa ser modificado das políticas, das instituições, nas escolas, universidades, na gestão das secretarias de educação municipais, estaduais. “Precisamos retomar algumas noções que me parecem não podemos perder o elo. Repassar para as novas gerações a noção da construção histórica do que fizemos, transmitir a utopia como ideia força e não como sonhos impossíveis.” Beatriz lembrou que vem da formação da área governamental do planejamento da educação. E na sua avaliação, avançamos nas ciências sociais todas, nos diagnósticos, mas discutimos pouco as estratégias de superação da situação presente. “É urgente enfrentar isso sem desprezar o método para chegar na construção da política democrática da educação. Valorizar a Constituição de 88, reconhecendo o que ganhamos, o que tivemos que negociar e o que perdemos.”
A professora relembrou que na disputa dos princípios de garantir o dever do Estado, um termo fundamental para a discussão de justiça social na educação e de concepção de papel do Estado veio num detalhe, uma visão neoliberal que propunha igualdade de oportunidades de acesso à educação. “Combatemos essa formulação e vencemos com a escrita de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Isso é um marco.” E trouxe para o momento atual quando se faz novamente um embate com o governo federal que apresentou o programa Future-se com uma lógica mercantilista da educação. “Uma concepção maior de democratização da educação só se faz com a democratização na educação, com a participação desde as crianças pequenas, com trabalho em grupo. Exercitando a cidadania desde a educação infantil. Não podemos nos descuidar dos grandes eixos pelos quais aprendemos o conceito de democratização”, afirmou. E defendeu ainda que não basta a expansão do acesso, pois não carrega em si a virtude, a qualidade de justiça social. “Quem tem mais poder vai na frente no processo de acesso, ocorreu uma situação de diferenciação e de qualidade, surgem os rankings, a publicidade dos dados, passa a servir para hierarquizar mais ainda. Proporciona a mercantilização. É preciso uma diferenciação da noção de democratização em educação, demonstrar a diferença de ter o movimento social demandando vaga. Vaga aonde, de quê qualidade? A democratização do conhecimento acontece quando começamos a trabalhar com a noção de equidade, igualdade de condições de aprender na sociedade desigual. Na desigualdade precisamos que as escolas para determinados grupos sociais ofereçam muito mais que as escolas que a elite oferece. Porque as elites já têm acesso a tudo”, explicou.
Para Beatriz, a democratização da gestão das escolas e universidades, com colegiados, assembleias, grêmio estudantis são mecanismos absolutamente importantes para a formação, para o tripé como diz o artigo 205 na CF: a educação é dever do Estado, com apoio da família e da sociedade e que visa o desenvolvimento da pessoa humana, a preparação para o mundo de trabalho e o exercício da cidadania. Então, conclui, a educação não é apenas para dar conta de português e matemática, como está propondo o MEC. “Um projeto democrático prevê Escola Pública para Todos, com pluralidade de projetos pedagógicos, autonomia das escolas e concepção de um Sistema Nacional da Educação. Não bastam políticas genéricas de expansão, mas as nossas conquistas se deram com as políticas focalizadas e de ações afirmativas porque é a única forma de alcançarmos a justiça social, redistribuição e reconhecimento, valorização das culturas. Precisamos de planejamento da educação para esperançarmos.”
Trabalho: “O objetivo da reforma trabalhista é voltar à fase pré-revolução industrial”
O advogado trabalhista Rogério Viola Coelho afirmou que para entendermos a reforma trabalhista é preciso falar do direito ao trabalho no seu nascimento lá na primeira revolução industrial. Segundo ele, é nos primórdios dela que surge o contrato de trabalho, como um contrato civil, que são os que conduzem a circulação de riquezas, numa sociedade como a nossa. “Dentre estes, surge um que é para fazer circular uma mercadoria especial, a força de trabalho. Mas quais eram os seus pressupostos? O básico era a existência de um bem e um sujeito que fosse proprietário desse bem capaz de negociar com esse bem. Portanto era preciso reconhecer para esse sujeito o que se denominou autonomia privada. A razão pura que foi entronizada na revolução francesa. Como foi construída essa razão? Em oposição à razão divina. Passaram os revolucionários a adotar uma razão humana em contraponto à divina. Essa razão assegurava que esse contrato sendo obra de duas razões convergentes o resultado seria a contemplação do justo interesse das duas partes. Se idealizava o contrato e o homem que contratava, porque era dotado de uma razão livre de qualquer determinação. Como é que surge o direito ao trabalho? Não havia assimetria de poderes dos contratantes no contrato. Portanto era uma razão desequilibrada que não poderia ter a efetivação do contrato. O legislador era capaz de produzir leis perfeitas e levar à felicidade geral, que é o fundamento do Positivismo. A lei seria absolutamente racional”, explicou.
Por que é importante isso?, questionou o advogado. Segundo ele, se olharmos a cartilha de Milton Friedman e a todo o movimento da reforma trabalhista é para restabelecer essa fé na liberdade contratual porque ela vai ser a realização da razão que vai levar ao verdadeiro desenvolvimento que é a forma como se chama hoje a felicidade geral. Rogério lembra que o primeiro movimento fundante do direito do trabalho foi uma passeata das mães em direção ao Estado para pedir uma lei que impedisse o trabalho das crianças ou criasse melhores condições. “O resultado foi que muitas fábricas criaram arremedos de escolinhas. Esse é um. Outro foi a fixação de salários por ofício, um embrião da negociação coletiva. A autonomia coletiva dos trabalhadores que se exerce através dos sindicatos. A negociação é expressão de uma autonomia privada em outro patamar, que não é lá do início do século do contrato individual. O sujeito jurídico seria o homem concreto. O grande salto do direito do trabalho seria superar a ideia de ter como centro o homem abstrato para colocar o homem concreto”, conta ele.
Rogério ressalta ainda os objetivos do direito ao trabalho. Conforme ele, a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) chega até a Constituição no artigo 7º. “Um código de garantias mínimas se conforma em três direitos na CF: liberdade sindical, implica em liberdade de ação, direito de greve, as chamadas medidas de conflito, e está incluída inclusive a greve política, que seria a modalidade máxima do exercício da liberdade positiva, o direito de intervir nas suas condições de vida. Mas o furo é no momento que se estabeleceu o limite da unicidade sindical. Isso induziu a fragmentação do sindicato, porque estimulava o desmonte. As categorias também foram se fragmentando. O resultado é que quando tira o imposto sindical o sindicato não sobrevive. Essa retirada já faz parte da reforma trabalhista. Além de colocar na reforma a possibilidade da negociação coletiva para derrubar direitos garantidos na lei. Também trataram de bloquear o acesso à justiça. Vimos uma série de medidas pontuais e precisas que se articulam para bloquear o acesso à justiça. A justificativa é que existe uma litigiosidade excessiva. Já década de 1980, o empresariado já tinha esse discurso e seus intelectuais orgânicos potencializavam esse discurso. A CF não criou nenhum direito só potencializou o acesso à justiça. Esses dados de que aqui tem bem mais reclamatórias do que nos países europeus não é real. Lá tem um sistema de tutela do trabalho”, destacou.
Para o advogado, o objetivo da reforma trabalhista é voltar à fase pré-revolução industrial, onde o contrato era livre. “Com isso, vão desonerar as forças econômicas e vai voltar a reinar a razão, que talvez seja simbolizada pela mão invisível. Cada um trabalhando por seu próprio bem vai acabar gerando a felicidade geral, que vai gerar emprego, pois esse é todo o problema”, ironiza.
Previdência: “O que está em jogo é a disputa pelo modelo de Estado”
“A crise é a base para esse desmonte do Estado do Bem-Estar Social, isso não é novo, na era Thatcher o diagnóstico era o mesmo”, afirmou o auditor fiscal Marcelo Lettieri, integrante do Instituto Justiça Fiscal (IJF). Segundo ele, o diagnóstico é de que o estado de Bem-Estar Social é insustentável. “O que está em jogo é a disputa pelo modelo de Estado, capitalista, modelo de Estado de Bem-Estar inclusivo ou o Estado neoliberal, mínimo em direitos. Essa é a grande discussão. E entramos em algumas armadilhas nessa discussão.” Na sua opinião, a elaboração da Constituição de 88 foi uma conjuntura tão favorável, que ela foi na contramão do que estava acontecendo no mundo. “A Europa estava desmontando o Estado de Bem-Estar Social. Ela começou no debate da redemocratização. Essa CF foi tão revolucionária para a época, que ela previu não só os direitos, mas como financiá-los. Mas, de fato, nós nunca conseguimos implementar essa CF, e agora estamos tendo uma grande interrupção desse processo. Logo em seguida da aprovação da CF já começaram os ataques. Vários economistas já diziam que ela era insustentável. E as reformas já começaram em 1993. Estamos agora num dos momentos mais críticos dessa resistência”, afirma.
Marcelo afirmou que mais do que falar da reforma da Previdência, para o qual indicou o livro “Previdência, o debate desonesto”, do professor Eduardo Fagnani, queria pensar o que fazer. Segundo ele, é preciso juntar os princípios da pedagogia popular da democracia, trazida pela professora Beatriz Luce, e a educação para a cidadania, tratada pela Fátima Gondim no painel da manhã, para saber o que fazer. “Vivemos um processo de fragmentação nos nossos movimentos. O princípio da solidariedade é fundante. Grande objetivo é retomar a solidariedade na luta, pois o que está em jogo é que Estado queremos. A Previdência está começando a custar muito, então vamos tirar dinheiro da saúde, e assim eles vão criando a competição entre nós. Tem essa quantidade de recursos e vocês se dividem.”
Citando Fagnani, lembrou que segundo estudos de [Thomas] Piketty, somos o país mais desigual do mundo. “Temos uma das tributações mais regressivas, em que, 50% dos impostos incidem sobre o consumo – na União Europeia o índice é de 30%. O sistema tributário concentra renda. E qual o principal mecanismo de redução da desigualdade no Brasil? A Seguridade Social, por meio das transferências de renda, como INSS, BPC, Bolsa Família. De acordo com estudo da Cepal, essas transferências correspondem a 16 pontos percentuais no Índice de Gini [cálculo usado para medir a desigualdade social]. Portanto, somos o país mais desigual do mundo, e o único mecanismo para reduzir essas desigualdades está sendo liquidado.”
Marcelo também analisou as falácias construídas para defender a reforma da Previdência. Os três terrores da mídia, como denominou. Primeiro, o financeiro, “não teremos dinheiro para financiar”, o segundo, o terror demográfico, “estamos vivendo mais, então o sistema é insustentável”, e por último, o terror econômico, “ou faz a reforma da previdência ou o país quebra”. “Com essas mentiras sendo marteladas todos os dias na imprensa, chegamos ao ponto de que quem está perdendo todos os seus direitos, defender a reforma”. Ironizando a máxima de que os números não mentem, Marcelo brincou, “mas os economistas que dizem os números eu já não posso dizer a mesma coisa”. Segundo ele, desde 1997 tem todos os dados da receita e despesas no site do Tesouro, de 1997 a 2014, nós temos as receitas acima das despesas. Todos os gastos primários, exceto os juros. Sempre tivemos superávit primário e não resolvemos os problemas do Brasil. No mínimo eu posso dizer que eu tenho um problema no lado das receitas, mas nenhum problema no lado dos gastos. Que no agregado a gente não precisa competir por recursos”.
Para finalizar, afirmou que a luta de resistência deve ser em defesa do modelo de Estado com os princípios de igualdade, equidade e justiça. “O discurso economicista não vê gente. Nosso último pacto foi a CF 88. Deveríamos discutir um novo pacto social. O modelo de Estado se reflete no Orçamento Público, coordenar as nossas forças pelo lado das despesas. Precisamos quebrar a barreira da comunicação, e nosso principal aliado é a educação pela cidadania. A reforma da Previdência foi o tempo inteiro defendida pela grande imprensa, os debatedores eram sempre os que apoiam, os que defendem e os que são a favor. O site da ANFIP tem muito material sobre a reforma da Previdência. Vai ser muito difícil reverter no Senado. Mas deve retomar a unidade em torno da defesa de um Estado social, uma sociedade democrática, universal, com justiça, educação e saúde para todos. Previdência para todos. A Seguridade Social foi construída em cima desse princípio”, concluiu.
Tributária: “A reforma tributária deve ter o objetivo de distribuir a renda”
A última fala foi do auditor fiscal Paulo Gil Introíni, também integrante do Instituto Justiça Fiscal (IJF), sobre a reforma tributária solidária e a comparação com as reformas propostas pelos empresários. Ele também destacou a necessidade de recuperar a dialética da educação popular de refletir sobre a realidade e buscar uma síntese de qualidade superior para construir uma nova realidade de fato, em contraponto à informação que a população recebe, por exemplo, como o Impostômetro e o Sonegômetro, financiados pelo Instituto Millenium. “A sonegação é a segunda questão, a primeira é a gente tributar de acordo com a capacidade contributiva. O nosso principal problema é a desigualdade em todas as suas dimensões. A nossa proposta vai tentar fazer essa redistribuição do ônus tributário. É de praxe a gente reafirmar o caráter e as funções da tributação. Noam Chomsky fala no documentário Requiem for the American Dream sobre os ‘dez princípios da concentração de riqueza e poder’, que segundo ele foram postos em prática pela oligarquia norte-americana nestes últimos 40 anos para transformar os Estados Unidos em uma plutocracia, não mais numa democracia.” Segundo Paulo Gil, a tributação é um instrumento de concentração de renda, riqueza e poder. “Não é por acaso que os ruralistas derrubaram a ITR e são mais de 10% do Congresso Nacional. Até 1946 que estava legislando tinha patrimônio e não iria fazer leis para tributar o próprio patrimônio. É disso que se trata, a gente conseguir explicitar esse conflito. As reformas que estão postas têm essa natureza de classe. A reforma tributária tem esse objetivo de distribuir a renda”, salientou.
O auditor destacou os aspectos políticos do pleno emprego. Avalia que todos ganham mais, mas os líderes industriais não querem o pleno emprego por razões políticas. “O Estado social existe para ser um regulador do pleno emprego. Os empresários temem o poder de organização dos trabalhadores quando estão empoderados. Por isso, querem um ajuste do mercado de trabalho. A lógica das reformas é a mesma. Tratar da regressividade do sistema tributário, mas as propostas que vem do lado de lá são muito emblemáticas: PEC 45 e PEC 110. Nenhuma das duas veio do governo. Eles usam o argumento do custo tributário do mundo, citam relatório do Banco Mundial, pois este documento derrubou o presidente do Banco Mundial que não concordou com o relatório. Fim da guerra fiscal, redução da carga tributária. A nossa proposta faz um contraponto com fundamento ideológico. Propomos o fortalecimento do financiamento das políticas públicas. Dizia o Marx, a tendência do capitalismo é transformar tudo em mercadoria. E a nossa função é desmercantilizar. Eles prometem que se tiver a reforma tributária virá o investimento. Apesar de todos os cuidados que precisamos ter para dialogar com todos os setores, não podemos ficar na simplificação, ela seria periférica no nosso discurso, de longe é a questão essencial. Ela seria o fim da seguridade social. As duas propostas atacam a autonomia dos estados. O central da nossa proposta é reestabelecer a progressividade das alíquotas. É premissas do neoliberalismo desonerar os ricos”, analisa.
Segundo Paulo Gil, o estudo do economista Thomas Piketty comprovou que quando os anglo-saxões construíram seus Estados de bem-estar social (Reino Unido e Estados Unidos), chegaram a usar alíquotas de imposto de renda pessoa física superiores a 90%. “Qual era a mensagem, então? Que a desigualdade é intolerável. Uma das funções do tributo é arrecadar, mas a função de redistribuir é muito importante”, comentou. O Brasil, infelizmente, ainda está no topo dos países de maior concentração de renda, o que confere uma desigualdade extrema. O que se quer, segundo ele, é tributar as mais altas rendas, com valores, por exemplo, superiores a 80 mil reais mensais, aliviando o andar de baixo, isentando quem ganha até cinco salários mínimos. “Só aí, arrecadaremos 220 bilhões de reais”, concluiu.
Ao final do Seminário foi lido e aprovado o Manifesto “Unidade na Defesa do Estado Social”
No dia 16 de agosto de 2019, ao final do Seminário “Reformas Desestruturantes do Estado Social”, promovido pelo IJF, ANFIP e FENAFISCO, no Auditório Ana Terra, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, RS, foi elaborado, lido e aprovado pelos presentes este Manifesto, contendo chamamento para constituição de uma Frente de Resistência contra o desmonte do Estado de Bem-estar e da Constituição Federal de 1988.
As reformas que vêm sendo implementadas, sob o pretexto de enfrentar as crises fiscais, são, de fato, medidas que visam ao desmonte das estruturas que alicerçam o Estado de Bem-estar, inaugurado pela Constituição Federal, de 1988. A saúde, a educação, a previdência, a assistência e o trabalho, são os elementos que melhor representam a natureza social do Estado brasileiro e constituem direitos fundamentais, cujas manutenção e ampliação interessam a toda a sociedade.
Um sistema tributário progressivo que garanta, de forma justa, os recursos necessários para financiar as políticas públicas, juntamente com os direitos fundamentais, são a concretização do princípio constitucional da solidariedade. São estes, no entanto, os alvos prioritários dos recorrentes ataques promovidos por setores que tentam, a todo o custo, minimizar o tamanho do Estado, beneficiando interesses privados em detrimento do interesse público.
O congelamento dos gastos primários, aprovado pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016, asfixia os direitos fundamentais previstos na Constituição; a reforma trabalhista e as terceirizações das atividades fins precarizam as condições de vida dos trabalhadores; a reforma da previdência propõe a transformação do direito de se aposentar em um produto a ser negociado com o setor financeiro; e os cortes de recursos na saúde e na educação apontam claramente no sentido da extinção do princípio da universalidade no atendimento dos serviços essenciais, abrindo espaços para a privatização destas áreas.
Todas estas medidas, somadas à intenção já manifestada de reduzir a carga tributária e de privatizar tudo o que seja do interesse do mercado, significam a destruição completa do Estado de Bem-estar e, consequentemente, a condenação de milhares de pessoas à uma situação de gravíssima vulnerabilidade social.
Neste contexto, mais do que em qualquer outro momento da nossa história recente, torna-se urgente e imprescindível a defesa, intransigente, do Estado e da Constituição Federal. O momento está a exigir a unificação das pautas setoriais (educação, saúde, assistência, previdência, trabalho e tributação) nesta que deve ser compreendida como a bandeira central de resistência contra o retrocesso.
Assim, este manifesto é um chamamento a todos os agentes sociais e políticos PARA A CRIAÇÃO DE UMA GRANDE FRENTE NACIONAL PELA DEFESA DO ESTADO SOCIAL E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
Porto Alegre, RS, 16 de agosto de 2019.
Texto e fotos: Katia Marko