por Dão Real Pereira dos Santos
Que a tributação é uma política pública, e que tem relação direta com as demais políticas públicas, não há a menor dúvida. No entanto, quando o assunto é a reforma tributária, o debate continua interditado para a maioria da população brasileira e as discussões permanecem restritas aos gabinetes fechados e bem climatizados das corporações empresariais e dos especialistas. Aquela máxima de que futebol e religião não se discutem não se aplica à tributação. Reforma Tributária é assunto para ser discutido, sim, pois interfere na vida de todos.
A tributação nunca será neutra, ela é instrumento da luta de classes e decorre das escolhas políticas que vão definir, não apenas quem será mais ou menos onerado, mas também que modelo de Estado, de sociedade e de desenvolvimento serão promovidos. Portanto, esse é um tema que precisa ser apropriado e discutido por toda a sociedade e não apenas por alguns.
Inúmeros estudos demonstram que a tributação brasileira é profundamente regressiva, pois onera muito mais os mais pobres do que os mais ricos, proporcionalmente a renda de cada um, ou seja, é um fator que aprofunda a desigualdade social. Por conta disso, é também disfuncional para a atividade econômica, pois onera demasiadamente a produção e encarece o consumo. Embora sejam evidentes as injustiças, é preciso ter em conta que a arrecadação dos tributos é absolutamente necessária e, talvez, ainda insuficiente, para financiar todas as políticas públicas garantidoras dos direitos sociais.
A primeira e mais urgente mudança a ser promovida no sistema tributário, portanto, deveria ser a correção das distorções do Imposto de Renda, revogando a isenção para os lucros e dividendos distribuídos e a dedução dos juros sobre o capital próprio, e a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas, elevando, assim, a participação da tributação direta na arrecadação total, o que permitiria reduzir tributos sobre os mais pobres. O objetivo, já manifestado tantas vezes pelo presidente Lula, de incluir os pobres no orçamento e os ricos no Imposto de Renda deixa evidente que esse seria o primeiro passo para qualquer modificação do sistema tributário. Em 2020, os contribuintes mais ricos receberam mais de R$ 500 bilhões sem pagar nenhum centavo de Imposto de Renda.
A ausência da participação da sociedade nesta discussão, no entanto, tem mantido o debate tributário circunscrito às reformas voltadas unicamente para a simplificação dos tributos sobre o consumo, como se o principal problema do sistema tributário fosse a sua complexidade. O interesse das corporações empresariais tem sido tratado com precedência sobre o interesse geral da sociedade brasileira por um sistema tributário progressivo, que onere efetivamente mais tributos dos mais ricos e menos dos mais pobres.
Ainda que seja desejável a racionalização e o aperfeiçoamento dos tributos sobre o consumo, inclusive com ampliação e unificação de bases, se for o caso, a priorização de mudanças pontuais voltadas para a progressividade geral do sistema tributário, com ampliação de tributos sobre as altas rendas e grandes patrimônios e redução de tributos sobre o consumo, além de promover a redução das desigualdades, poderiam ser muito mais efetivas para a promoção do desenvolvimento econômico do que a prometida simplificação, na medida em que promove a ampliação da capacidade de consumo das famílias de baixas rendas, aumentando, portanto, a demanda agregada.
Para citar apenas um exemplo, a proposta do presidente da República de desonerar do imposto de renda os trabalhadores com rendimentos mensais de até R$ 5 mil, beneficiaria certa de 23 milhões de pessoas e poderia injetar na atividade econômica cerca de R$ 16 bilhões ao ano, sem considerar os efeitos de uma eventual atualização da tabela do Imposto de Renda. Somente com a cobrança do Imposto sobre os lucros e dividendos seria possível ampliar a arrecadação em cerca de R$ 100 bilhões.
Diversas soluções, que poderiam ser implementadas sem alterações constitucionais e que melhorariam, de forma muito substancial, a qualidade do sistema tributário brasileiro, inclusive em relação a simplificação no cumprimento das obrigações, têm sido recorrentemente postergadas e condicionadas à aprovação anterior de reformas tributárias amplas da tributação sobre o consumo, materializadas hoje nas PEC 45/2019 e PEC 110/2019.
Sem entrar no mérito destas propostas de emendas à Constituição, o fato é que elas, por unificarem vários tributos de competências federativas diversas e com finalidades e destinações distintas (impostos e contribuições sociais), produzem um debate infindável que se arrasta há muitos anos e que emperra a tramitação de propostas pontuais que poderiam produzir efeitos sociais e econômicos muito relevantes no curto prazo.
A disputa por um sistema tributário mais alinhado com um projeto de Estado, de sociedade e de desenvolvimento precisa incluir a todos, trabalhadores, destinatários das políticas públicas, empresários, agricultores, consumidores, administradores públicos, parlamentares, pois a tributação é o instrumento capaz de viabilizar os objetivos constitucionais da República e isso é do interesse de toda a sociedade.
*Vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.
Fonte: https://red.org.br/noticia/reforma-tributaria-se-discute-sim/