Reforma Tributária do RS – Para que a Progressividade Não Fique na Intenção

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por Márcio Calvet Neves, advogado e integrante do Instituto Justiça Fiscal.

A partir do dia 9 de setembro o projeto de reforma tributária proposto pelo Governador Eduardo Leite em regime de urgência será incluído na ordem do dia, trancando a pauta de votações da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS). Tendo em vista que o projeto deverá ser votado já em meados de setembro, o presente artigo tem o objetivo de chamar a atenção para alguns pontos que merecem ser cuidadosamente examinados pela ALRS e acompanhados pela sociedade gaúcha de forma a garantir a propagandeada progressividade fiscal da reforma.

Inicialmente, deve ser lembrado que o objetivo principal da proposta é arrecadatório, tendo em vista a necessidade de apresentar solução para o fim das alíquotas majoradas de ICMS que retornarão ao patamar normal no fim do exercício, causando uma perda de receita estimada entre R$ 2,5 e R$ 2,8 bilhões. Ainda assim, é louvável a decisão do governo estadual de colocar a progressividade tributária no centro das discussões. Por mais que haja divergências sobre se o projeto de fato torna o sistema mais justo, o fato de estar se discutindo justiça fiscal numa proposta amplamente divulgada já difere do que acontece no plano federal, em que a busca por justiça tributária tem sido relegada a segundo plano e as propostas que obteriam maior progressividade ficam escondidas do público e são raramente divulgadas e debatidas pela grande imprensa. 

Dito isto, há espaço para aperfeiçoar determinados aspectos da reforma estadual, que, se mantidos como apresentados, podem até levar a um efeito contrário do supostamente previsto em termos de justiça fiscal.

Simplificação do ICMS

Há uma clara tentativa de simplificar a tributação empresarial, por meio da: (i) redução do número de alíquotas do ICMS; (ii)  promessa de concessão de credito imediato e integral de ICMS na aquisição de máquinas e equipamentos (quando a regra geral seria em 48 parcelas);  (iii) extinção do diferencial de alíquota (DIFAL) na compra interestadual de bens de uso e consumo e para o ativo permanente; (iv) redução da alíquota para 12% na tributação das operações internas; (v) facilitação da devolução de saldos credores do ICMS na exportação; e, (vi) creditamento do ICMS nas aquisições de bens para uso e consumo. Tais alterações, se de fato implementadas (uma vez que algumas dependem de aprovação do CONFAZ e não podem ser unilateralmente instituídas pelo Estado), tenderão a reduzir o contencioso tributário, o que significará menos gastos com a máquina judiciária e honorários advocatícios. A legislação do ICMS, por sua especificidade e detalhamento tem trazido questionamentos judiciais que apenas acentuam a regressividade tributária, uma vez que eventual êxito nos processos reverte em favor da empresa e de seus advogados e não do consumidor final.

Entretanto, há ressalvas a se fazer à intenção de simplificação por meio da redução do número de alíquotas. Segundo o proposto, restarão apenas as alíquotas de 17% e 25%, quando, atualmente, existem cinco alíquotas sendo praticadas. Se é verdade que na maior parte dos países os impostos de valor agregado têm uma ou duas alíquotas, também é verdade que as alíquotas praticadas são sempre bem menores. Na Europa, a alíquota geral é de 15%, mas os países podem instituir uma segunda alíquota de aproximadamente 5% para produtos essenciais. Na Austrália, a alíquota única é de 10%. No Rio Grande do Sul as alíquotas mantidas foram as mais altas, retirando do Estado a possibilidade de cobrar menos tributos sobre a cadeia produtiva de bens essenciais. Desta forma, para que seja mantida tal flexibilidade, o ideal é que seja proposta também uma terceira alíquota, de aproximadamente 7%, que poderia incidir, por exemplo, sobre medicamentos e produtos da cesta básica.

A proposta de uma terceira alíquota não prejudicará o objetivo do governo de simplificar a tributação. A complexidade do ICMS é muito mais decorrente de créditos presumidos, diferimentos, reduções de base de cálculo e divergências sobre creditamento do que do número de alíquotas.

O Fundo Devolve ICMS

O governo propõe a criação do Fundo Devolve ICMS, que será formado com recursos provenientes de benefícios fiscais concedidos pelo Estado, da seguinte forma: 10% sobre o valor de créditos presumidos não contratuais (exceto os oriundos de contratos de investimento) e 10% sobre o valor do ICMS isento nas saídas de insumos agropecuários.

Metade do valor depositado no fundo seria restituído à população de baixa renda, compensando a cobrança do ICMS incidente sobre bens essenciais. A medida seria fundamental, uma vez que a reforma prevê o fim da desoneração de produtos como hortifrutigranjeiros, leite, frutas, ovos e preservativos e aumenta a tributação de outros produtos essenciais como carne, medicamentos, erva mate e gás de cozinha (GLP).

O Governo sustenta que a maior parte dos benefícios fiscais hoje são apropriados pela população mais rica, que consome mais. Se todos pagarem imposto maior sobre tais produtos o Estado terá mais capacidade de restituir o imposto apenas para aqueles que precisam. O raciocínio faz sentido. Entretanto, há um risco jurídico que parece não estar sendo levado em consideração na proposta.

A Constituição Federal prevê no artigo 167, inciso IV, que não pode haver vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. O Governo contra-argumenta sustentando que o Fundo Devolve ICMS é expressamente autorizado pelo Convênio CONFAZ 42/2016. Segundo a cláusula segunda do referido Convênio, os estados podem criar fundos com no mínimo 10% dos incentivos fiscais concedidos, desde que o fundo seja “destinado ao desenvolvimento econômico e ou à manutenção do equilíbrio das finanças públicas estaduais e distrital”. Ora, a devolução de ICMS não é necessariamente instrumento de desenvolvimento econômico e certamente não é de equilíbrio das finanças públicas. Talvez por isso, a devolução não esteja expressamente prevista nos projeto de lei enviado pelo governo à ALRS. A falta de texto expresso sobre a devolução, além de resultar numa fragilidade legislativa do benefício, que dependerá de decreto e poderá ser facilmente revogado por este ou outros governos gaúchos, pode indicar um receio de que o próprio governo esteja enxergando o risco de no futuro o Devolve-ICMS ser considerado inconstitucional. A possibilidade de judicialização da discussão sobre a constitucionalidade do Fundo não pode ser relativizada. A cobrança, que tem como base um percentual de um benefício concedido à empresa, é perfeitamente justificável economicamente. Num mundo ideal, provavelmente nenhuma empresa o questionaria, tendo em vista o claro benefício para a sociedade. Entretanto, infelizmente ainda não atingimos o ponto em que administradores, empresários e advogados renunciem a discussões judiciais tributárias por priorizarem a responsabilidade social corporativa.

Uma futura declaração de inconstitucionalidade pelo STF da sistemática de devolução acentuaria a regressividade hoje existente, pois os tributos sobre bens essenciais já teriam sido majorados, com o consequentemente aumento dos preços dos produtos, mas a população de baixa renda ficaria impossibilidade de obter o ressarcimento.

Para evitar tal risco uma das opções é a ALRS substituir o mecanismo de devolução de ICMS proposto por um programa de renda básica. Apesar da renda básica ser normalmente associada a programas federais como o Bolsa Família, a solução já foi usada com sucesso por governos estaduais (como o cheque-cidadão do Governo Garotinho, no Rio de Janeiro) e atualmente tem sido aplicada até mesmo por prefeituras, como a de São Paulo.

O programa de renda básica poderia substituir integralmente a parte do Devolve-ICMS destinada ao ressarcimento das camadas mais pobres, ou então ser usado de forma cumulativa com o fundo, cujo mecanismo de devolução seria mantido para ressarcir os vulneráveis do ICMS de 25% que ainda seria cobrado sobre bens essenciais como comunicações, energia e combustíveis. Assim, na eventualidade de ser considerado inconstitucional, o risco da regressividade tributária seria menor.  

As Alterações no IPVA

Com o objetivo anunciado de arrecadar mais de R$ 700 milhões por ano, a reforma propõe as seguintes alterações na cobrança do imposto cobrado sobre veículos automotores: o aumento da alíquota geral de 3% para 3,5%; o fim da isenção do imposto para veículos com mais de 20 e menos de 40 anos de fabricação; e, a diminuição do teto de isenção do imposto, de 4UFP-RS para 1 UFP-RS. Esta última alteração faria com que a pessoa precisasse pagar o IPVA se o valor do imposto superasse aproximadamente R$ 20,00.

As mudanças tendem a aumentar a regressividade, especialmente a que cobra imposto sobre veículos fabricados há mais de 20 anos. Metade da frota do estado (aproximadamente 2 milhões de veículos) tem entre 20 e 40 anos. Os novos contribuintes, na maior parte das vezes, seriam pessoas de baixa renda. O custo de fiscalização, a possível inadimplência tendo em vista o baixo valor do imposto, os gastos maiores com reboques e depósitos de automóveis provavelmente aumentariam. A regressividade tributária proposta pode ser uma vitória de pirro até mesmo em termos de receita governamental.

Se o objetivo do governo realmente é de aumentar a progressividade tributária no IPVA, a solução mais apropriada seria trabalhar à luz da previsão constitucional prevista no parágrafo 6º do artigo 155 da Constituição (conforme Emenda Constitucional 42, de 2003) que autoriza a fixação de “alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização”. Um bom exemplo seria a legislação de Minas Gerais, que tem uma alíquota menor para furgões e camionetes de cabines simples, veículos usualmente usados para trabalho (Lei Estadual 14.937, artigo 10, inciso II).

Além disso, ao invés de diminuir o teto para isenção do imposto para meros R$ 20,00, o movimento poderia ser o inverso, aumentando o teto e assim garantindo que veículos de valor menor não fossem tributados independentemente da sua data de fabricação. 

O único argumento a favor das alterações propostas é que ao tributar veículo antigos o estado estaria estimulando a renovação da frota e, portanto, gerando menos danos ao meio ambiente. No entanto, não parece fazer sentido alocar o custo ambiental inteiramente para a população de baixa renda, especialmente ao se considerar que o prazo de 40 anos proposto é bem superior ao praticado para outros estados como Rio de Janeiro (15 anos) e São Paulo (20 anos).

As normas de cunho ecológico na legislação, entre elas a isenção temporária para carros elétricos, um bem que hoje só pode ser adquirido por quem tem valor substancial para investir em automóvel, favorecerão apenas os mais ricos.  Uma solução meio termo, como a do estado de São Paulo, que aplica uma alíquota geral de 4% e uma alíquota menor de 3% para veículos movidos exclusivamente a álcool, gás natural veicular ou eletricidade, ainda que combinados entre si (Lei 13.296/2008, art. 9, inciso II) surtiria melhor efeito. O Rio de Janeiro adota solução parecida, de tributar com base no tipo de motor, também sem isentar completamente carros elétricos (Lei 2.877/97).

Infelizmente, a única medida que de fato geraria uma progressividade tributária inquestionável na cobrança do IPVA seria a incidência do imposto sobre embarcações e aeronaves, o que foi lamentavelmente rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal (STF, RE n. 134.509-8 AM, Plenário, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29/02/2002), em claro prejuízo a todos os  estados e seus contribuintes.

As Alterações no ITCD

Por fim, merecem elogios as alterações propostas para o ITCD. Não só as alíquotas progressivas adicionais de 7% e 8% para heranças e 5% e 6% para doações, mas também a expressa inclusão de planos de previdência PGBL e VGBL na base de cálculo do imposto, diminuindo a possibilidade de um planejamento fiscal amplamente praticado por famílias abastadas para evitar a tributação da herança.

Conclusão: Nos próximos dias o Rio Grande do Sul terá a oportunidade única de deliberar a aprovação de uma reforma tributária que tem como meta anunciada obter maior progressividade e justiça fiscal. O que for decido pela ALRS provavelmente servirá de parâmetro para reformas tributárias que vierem a ser propostas por outros estados da federação, o que reforça a importância de se garantir que as mudanças de fato realoquem carga fiscal para quem tem mais capacidade de assumir o ônus.