por Rosa Angela Chieza¹
Estamos vivendo uma crise sanitária atípica. E para enfrentá-la é imprescindível a maior participação do Estado, para financiar as políticas públicas que garantam a vida dos brasileiros e impeçam o aprofundamento da crise econômica. Estas políticas resultam na ampliação do gasto público. Mas de onde virão os recursos para fazer frente a esta ampliação de gastos para enfrentar a atual crise, se até há pouco tempo, difundiu-se o mito² de que o Brasil estava quebrado e o mito de que o orçamento público é igual ao orçamento doméstico, e por isso só pode gastar o que arrecada? A difusão destes mitos desconsidera três aspectos fundamentais. O primeiro é que o Governo tem capacidade de definir o tamanho de seu orçamento. A arrecadação de tributos é fruto de uma decisão política e está ao alcance do Governo. Por exemplo, ele pode passar a tributar rendas não tributadas (como a renda de dividendos e lucros distribuídos que são isentos de imposto de renda na pessoa física no Brasil, desde 1995) e propriedades subtributadas ou nunca tributadas (como a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas) Enquanto a dona de casa não pode definir o salário que recebe. Ou seja, bem diferente de um orçamento público que decorre de decisão coletiva sobre quem paga (tributos) e quem recebe (na forma de políticas públicas) e ao mesmo tempo, quanto paga e quanto recebe.
O segundo aspecto desconsiderado é que, quando o governo gasta, parte desta renda retorna ao governo sob a forma de tributos (receita do governo). E assim, o aumento de gastos públicos³ provoca aumento da receita pública. Ou seja, o governo arrecada o que gasta, e a dona de casa, gasta o “que arrecada”. Ou seja, são dinâmicas opostas. E por fim, o terceiro aspecto desconsiderado pelos que fazem analogia entre orçamento público e o orçamento doméstico, é que a dona de casa é incapaz de emitir moeda, tampouco é capaz de emitir títulos públicos e de ter o poder de definir a taxa de juros sobre a dívida que ela contrai⁴ .
Ainda, enquanto alguns teóricos da austeridade defendem que o corte de gastos públicos amplia a confiança dos agentes privados, possibilitando o crescimento econômico, Krugman, Nobel de economia 2008, argumenta que esta crença é baseada “numa fantasia” segundo a qual, por um lado, os governos seriam reféns de ‘vigilantes invisíveis da dívida’ que punem pelo mau comportamento, e, por outro, existiria uma ‘fada de confiança’ que recompensaria o bom comportamento” (Krugman, 2015) .
A partir destes esclarecimentos, denota-se que os instrumentos de condução da política macroeconômica, em especial, a execução do orçamento público, tem grau de complexidade incomparável ao grau de complexidade do orçamento doméstico. Também, a lógica do orçamento público segue lógica oposta ao do orçamento doméstico. Por exemplo, na crise atual, a dona de casa deixa de comprar educação e saúde privadas e passa a demandar educação e saúde públicas, pressionando para cima os gastos públicos. E, essa pressão por mais gastos públicos ocorre simultaneamente à queda de arrecadação, provocando aumento do déficit e da dívida pública. Ou seja, é a crise que provoca déficit, e não o contrário, conforme postulam os defensores da austeridade.
A atual crise sanitária, cujos desdobramentos e real dimensão ainda não são totalmente conhecidos, exigirá um novo papel aos Estados nacionais, tanto no curto prazo, para salvar vidas, quanto no médio e longo prazo, para coordenar e executar políticas que se afastem dos mitos da austeridade.
NOTAS
¹ Professora da Faculdade de Ciências Econômicas/UFGRS, do Programa de Pós Graduação em Economia Profissional e do Programa de Políticas Públicas e Serviço Social/UFRGS. Diretora de Educação Fiscal e Cidadania do Instituto Justiça Fiscal.
² Como nascem os mitos? Alguém cria, outros repetem e os demais acreditam e passam adiante. E quanto mais a narrativa é ouvida sem reflexão, mais o mito se torna incontestável e se torna verdade.
³ Orair, Siqueira e Gobetti ( 2016) em estudo feito para Brasil, com dados de 2002 a 2016, mostram que o efeito multiplicador do Gasto Público (em especial investimentos, benefícios sociais e gastos com pessoal) na depressão econômica, é maior do que em “tempos normais”.
⁴ A estratégia de difundir, o mito “orçamento doméstico é igual ao orçamento público” que tem como objetivo o corte de gastos, inclusive em saúde, educação e segurança-, concretizada na Emenda Constitucional do teto dos gastos (EC nº 95/2016) teve êxito junto ao cidadão comum, por que é de fácil compreensão e assim, o mesmo passou a difundir o mito. No entanto, grande parte dos cidadãos comuns que foram convencidos, pelos defensores do corte de gastos, são os que mais necessitam do Sistema Único da Saúde, da escola pública, da segurança e da justiça públicas.
REFERÊNCIAS
CHIEZA, Rosa Angela O cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e a Covid – 19. 26 /03/2020. Disponível em: https://www.brasildefators.com.br/2020/03/26/artigo-o-cumprimento-da-lei-de-responsabilidade-fiscal-e-a-covid-19
KRUGMAN. Paul. The Auterity Delusion. The Guardian, Londres, 29 abr 2015. Disponível em: https://www.theguardian.com/business/ng-interactive/2015/apr/29/the-austerity-dlusion
ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; OLIVEIRA, Ana Luiza. Economia para Poucos Impactos Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil. Ed Autonomia Literária, 2018