"Os banqueiros causaram a crise, mas não foram punidos". Entrevista com Rubens Ricúpero.

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Por Renata Batista (renata.batista@brasileconomico.com.br).

O embaixador Rubens Ricúpero relata os desdobramentos do Relatório Stiglitz, elaborado para propor soluções para a crise de 2008

Em 2008, o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricúpero foi convocado para integrar a comissão criada pela ONU para estudar a crise mundial e propor soluções. O comando da comissão ficou a cargo do Nobel de Economia Joseph Stiglitz, que acabou por dar nome a seu relatório final: o Relatório Stiglitz.

Após cinco anos, Ricúpero relata, em entrevista ao Brasil Econômico, os desdobramentos da comissão. Segundo ele, o aproveitamento do relatório foi pequeno. Os países optaram pelo enfrentamento em nível nacional, em detrimento de um pacto global. E evitaram tocar nos pontos mais críticos: o tamanho dos bancos, a desregulamentação dos derivativos e o peso do dólar na economia mundial.

O marco da última grande crise financeira mundial – a quebra do Lehman Brothers – está completando cinco anos. Quais as conclusões da Comissão Stiglitz sobre as razões para o que ocorreu em 2008?

A crise é fruto direto da imprevidência dos banqueiros, da tomada de riscos excessivos e às vezes até de atividades criminosas. A responsabilidade foi do setor financeiro, mas os banqueiros acabaram não sendo punidos. A dívida foi transferida aos governos. Quem está pagando por isso até hoje é a população da Grécia, da Espanha, da Itália e até dos EUA, com o desemprego. A prova de que não foi resolvido é que hoje o grau de concentração dos bancos é significativamente maior do que era antes da crise. Esse ponto não foi resolvido. Está se adiando. Algum dia vai haver uma outra crise.

Que medidas o Relatório propôs para evitar que se repita o que ocorreu em 2008?

Basicamente a ideia da comissão era voltar a ter um nível mais estrito de regulamentação dessa globalização financeira, tornar mais difícil esse contágio de um país para outro e submeter a uma regulação mais rígida os mercados de derivativos – todos esses instrumentos financeiros novos. Eram medidas muito profundas, que não foram levadas em consideração diretamente no processo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e, sobretudo, pelo G20. O que se fez, no fundo, foi meio cosmético. Não houve uma grande reforma.

Por que as propostas da Comissão não foram aproveitadas pelo FMI e pelo G20?

A Comissão foi uma iniciativa das Nações Unidas. Organizações como o Fundo Monetário Internacional costumam ter muito ciúme da sua competência nessa área e não gostam muito de interferência de outras organizações, como as Nações Unidas. Além disso, a ação foi toda feita pelos governos – e os governos, nessa parte, cedem muito ao lobby do mercado financeiro. Sobretudo, o Departamento do Tesouro dos EUA é quase como um outro lado de Wall Street. São as mesmas pessoas.

Mas os países não tinham interesse em evitar novas crises?

Havia uma regulamentação muito grande que nunca foi feita. A praça financeira de Londres e de Nova York e os governos desses dois países não quiseram limitar demais o mercado de derivativos, porque essa é a área que eles expandem mais, em que há mais especulação. Basicamente, o que os países fizeram foi empurrar essa crise com a barriga e esperar que tudo voltasse ao normal.

Então, não houve o ajuste necessário no setor financeiro?

O que houve depois da crise foi muito pouco e basicamente nos países periféricos. Nos centros das finanças internacionais, o grau de reforma é muito pequeno. Certas coisas causaram muita indignação moral na época da crise, como o fato de que os banqueiros que quebraram os bancos e causaram muito sofrimento acabaram saindo com bônus multimilionários. Esse excesso de remuneração, que estimula muita gente a assumir riscos excessivos, nada disso foi tocado.

Havia propostas ligadas à circulação global de capitais?

O que a comissão queria era voltar à situação que havia no começo dos anos 80, quando, principalmente por parte do Fundo Monetário, havia regras que limitavam esse grau de globalização financeira. A ideia era ter muito mais controles sobre essa circulação desmedida de capital de um lado para o outro. Mas sobre isso, se fez muito pouco. O caminho que se escolheu foi o nacional. Houve algumas reformas, como a norte-americana do sistema bancário, da Inglaterra, mas não houve um grande movimento internacional.

Foram feitas propostas para a questão monetária, para amortecer o impacto desse peso desmedido do dólar?

A grande moeda de reserva continua sendo o dólar e isso leva a problemas graves, porque os EUA, quando têm um problema sério, como uma crise internacional, tratam como se fosse uma questão nacional. Só que isso afeta o mundo inteiro, como agora no caso dos incentivos. A ideia básica era que houvesse um novo Bretton Woods, uma grande conferência em que todos os países tomassem parte e futuramente se caminhasse para uma solução que, em vez de ter como reserva a moeda de um país, se tivesse uma espécie de moeda internacional.

Em relação à questão monetária, o FED tem a perspectiva de reduzir os estímulos à economia. O senhor acha que isso pode causar um novo problema nesses mercados de derivativos que voltaram a crescer?

Nos mercados de derivativos, não. Esses mercados ganham muito com a recuperação da crise norte-americana. Não é um momento tão frágil para eles. O problema de retirar os incentivos é mais em países como Brasil, Turquia, Índia, África do Sul. São países que receberam muitos recursos financeiros fáceis e isso acabou facilitando a expansão do déficit em contas correntes, no Balanço de Pagamento. Com menos recursos, esses déficits se tornam uma ameaça.

O que os países podem fazer para evitar esse impacto?

De certa maneira, esses países foram também cúmplices, porque foram imprudentes. O Brasil mesmo teve uma fase em que as commodities estavam muito valorizadas, o país estava ganhando muito em termos de intercâmbio, mas, em vez de aproveitar, mesmo nessa época já estava com déficit em conta corrente. Sinal de que continuou a importar capital de fora não para investimento, mas para financiar consumo. Tanto assim que a taxa de investimento do Brasil tem sido muito modesta. O Brasil seguiu o pior caminho que existe, que é recorrer a dinheiro estrangeiro para financiar consumo, e não o investimento.

O senhor falou a respeito da criação de uma moeda internacional. Como o senhor avalia essa proposta dos Brics de criar um fundo?

O Fundo dos Brics é uma tentativa de replicar um exemplo do que os asiáticos fizeram na crise de 97. Quando houve a crise da Ásia, os países que ficaram muito traumatizados com a atuação do FMI criaram um fundo de reservas próprio, que é alguma coisa que permite a eles se socorrerem de uma forma independente. Nunca ficou como eles queriam na origem, quase como uma alternativa ao FMI, porque os norte-americanos pressionaram, eles recuaram, mas eles têm lá o fundo de reserva.

E agora os Brics resolveram fazer um fundo com esse mesmo espírito, que possa socorrer os membros – e no caso quem parece mais próximo disso é a Índia – sem passar pelos acordos com aquelas receitas que o FMI dá. Isso é muito bom – se, de fato, se concretizar como eles estão querendo, cada um dando US$ 18 bilhões, sem permitir que a China dê uma contribuição muito maior, como queria, para dominar o fundo. Eles não aceitaram. A decisão foi que todos entrariam com a mesma contribuição, para não dar a nenhum país o poder de dominação. Se isso se concretizar, é uma boa coisa.

Mas com cada um dando US$ 18 bilhões, esse fundo de reserva terá cerca de R$ 100 bilhões. Isso não é muito pouco para um cenário em que temos trilhões circulando pelo mundo?

Depende do tamanho da crise, da gravidade, mas é um passo na direção certa. É bom para os países terem uma coisa mais autônoma, sobretudo porque o problema do FMI é que, apesar de tudo o que se falou, da reforma, continua dominado pelos Estados Unidos e pelos europeus. É uma alternativa econômica, porque se você depende do FMI, ele vai impor um programa econômico que em muitos casos é um desastre. Pelo menos tem sido assim até agora, como na Grécia. O que eles querem é que os bancos sejam pagos, e não necessariamente que os países tenham a melhor solução.

Dá para prever quando teremos uma nova crise, uma nova bolha?

Leva um certo tempo até criar novas bolhas, alguns anos. Saber onde vão ser essas bolhas também é difícil. Dessa última vez se concentraram no mercado imobiliário. Amanhã, pode ser no mercado de ações. Mas isso, só o futuro vai dizer.

Qual a situação do Brasil frente à ameaça de redução da liquidez internacional, com a possível retirada dos estímulos do FED?

Entre os diversos países emergentes, a posição do Brasil é intermediária. Não é, nem de longe, tão boa quanto a da China, porque o Brasil não tem a solidez dos chineses do ponto de vista do crescimento e das reservas. Mas também não está em uma situação tão complicada quanto a Índia e a África do Sul.

O país está mais forte agora para enfrentar choques externos?

O sistema de flutuação cambial tem vantagens, é superior ao sistema que vigorou na época da crise de 1998, quando usávamos a taxa de câmbio como uma âncora para combater a inflação. Agora, como oscila, não tenho a menor dúvida de que o câmbio vai continuar evoluindo para R$ 2,40, R$ 2,50. Em seis, oito meses, isso torna o Balanço de Pagamentos brasileiro mais sólido. Vai desestimular as importações e estimular as exportações. Mas isso só não resolve.

O que falta fazer?

O governo tem que tocar em um ponto fundamental que é o preço dos combustíveis. Deveria publicar uma espécie de cronograma de como gostaria de corrigir a defasagem do preço dos combustíveis. O governo não pode fazer isso de uma hora para a outra. Não se pode, de repente, acabar com uma defasagem que, no caso da gasolina, é demais de 25%. Mas pode anunciar como vai fazer isso, em que horizonte de tempo, com ajustes periódicos mensais a cada dois meses, por exemplo. Isso é fundamental porque o câmbio só não resolve. Hoje em dia, dois terços da pressão do Balanço de Pagamentos do Brasil vêm dos combustíveis.

Os combustíveis são a grande âncora da economia brasileira…

É uma miniâncora. Não é tão forte quanto o câmbio, mas ajuda a segurar os preços. Tanto assim que você vê uma coisa interessante. A inflação está em 6,5%, mas quando você separa os preços livres, que são 75% dos índices, a taxa chega a quase 8%. O que ainda está segurando a inflação no Brasil são os preços administrados, que são 25%. São esses preços que dependem do governo. Aí a inflação está sendo reprimida artificialmente.

Mas e o impacto na inflação?

A correção tem que ser previsível e gradual. É claro que haveria impacto inflacionário, mas é um impacto corretivo, que iria, pouco a pouco, eliminando esse artificialismo. Se o governo adotasse outras medidas junto com o que o BC está fazendo com os juros, se também controlasse os gastos, depois de um tempo nós teríamos uma situação mais saudável. Acho que isso que estou descrevendo será inevitável depois das eleições. É o que as pessoas querem dizer quando falam que a economia brasileira vai precisar de um severo ajuste. Ajuste é isso. É acabar com esses artificialismos, fazer com que o preço dos combustíveis reflita o custo internacional, fazer com que o preço da energia reflita a realidade dos custos, cortar os gastos do governo para evitar que isso se propague. Não vai ser uma coisa fácil. Vai ser penoso.

Então, o próximo governo será de inflação mais alta?

Eu acho que, se o próximo governo fizer esse ajuste, vai diminuir a pressão inflacionária. Mas vai ser duro, com consequências, taxa de juros, desemprego. O ajuste, quanto mais tempo você leva, mais duro ele vai ser. E se adiar muito, vem como uma crise. O ideal seria que fosse feito logo, sem considerações eleitorais, mas isso a gente sabe que é uma ingenuidade. O governo vai querer adiar o máximo possível, empurrando até as eleições, mas esse ajuste é inevitável. Seja lá quem for eleito, vai ter que fazer.

É a esse cenário que o senhor se refere quando afirma que, ao contrário da época do ex-presidente Médici, quando se dizia que "o Brasil vai bem, mas as pessoas vão mal", agora as pessoas vão bem, mas o Brasil vai mal?

Criaram uma situação de bem-estar que é desejável. As pessoas ainda estão gozando disso, com emprego etc., mas a economia vai cada vez pior. O que acontece é que a situação de bem-estar que se criou não é sustentável. Quanto mais tempo se adiar o ajuste, mais difícil será manter isso. A economia não vai crescer, os problemas vão se acumular, aumenta o déficit em conta corrente, a Petrobras vai ficar cada vez mais depauperada. Enfim, os problemas vão se acumulando em todos os setores. Basicamente, é insustentável.

E o que o sr. acha da condução da política monetária, da decisão de não usar reservas para reduzir as oscilações do câmbio?

No momento, é o adequado. Está dando certo. Usar reservas precipitadamente não adianta, porque, mesmo reservas que aparentemente são muito grandes, se houver uma crise muito séria, elas queimam em uma semana. É melhor evitar, porque o Brasil não está precisando. Com a desvalorização do real, a correção já está se fazendo e não há mais aquele pânico no mercado, a situação está se corrigindo naturalmente. Há outras armas disponíveis.

Acho que o Banco Central está agindo muito inteligentemente, pois sabe que não adianta queimar reservas, porque se o Ministério da Fazenda não fizer a sua parte – e não está fazendo – não adianta nada. Ele queima todas as reservas, mas se o Tesouro continuar a aumentar a transferência de recursos para o BNDES, fica sem reservas e em uma situação muito pior. Prefere fazer isso quando houver um ajuste para valer. Quando todos os setores do governo estiverem agindo de uma maneira coerente, e não como agora, quando o esforço antiinflacionário basicamente se resume à atuação do Banco Central. Mas, no momento, nem é necessário usar reservas.

O câmbio ajuda a equilibrar as contas externas, mas é suficiente para tornar a indústria mais competitiva?

As exportações brasileiras continuam com um panorama negativo, uma expectativa de aumento muito pequena. Um relatório recente da Cepal (Comissão Econômica para América Latina) estimou um aumento de 1,5% das exportações para toda a região, com o Brasil estagnado. Com o ajuste no câmbio, é possível que comece a mudar, mas em geral demora uns meses.

A posse do brasileiro Roberto Azevedo na Organização Mundial de Comércio (OMC) ajuda a alterar o atual cenário do comércio mundial?

Não há perspectiva de mudança. O próprio discurso de posse do Roberto Azevedo foi sóbrio. Ele disse esperar alguma "facilitação" na reunião de Bali, alguma coisa para os países mais pobres, para os africanos, nos subsídios agrícolas da Europa. Há pouco apetite para mudança.

Então, o Brasil deveria buscar mais acordos multilaterais?

Não são os acordos, mas a capacidade de oferecer produtos e serviços de qualidade a preços competitivos que fazem a diferença. A China ficou anos fora da OMC, mas era tão competitiva que vendia sem precisar de acordo nenhum. O Brasil tem isso na agricultura, mas na indústria não tem. E negociação significa redução de ajuda à indústria local. Se a indústria vai mal, como vai fazer isso? Acordos comerciais apenas criam as oportunidades. Quando se diz que o Brasil não negocia, estão ignorando a questão da competitividade.

O câmbio resolve a questão da competitividade?

Ajuda. Há duas maneiras: com câmbio, ou com salários e aumento da produtividade. Mas o câmbio é um perigo. Quando o país repousa no câmbio, está mascarando a falta de competitividade. Não muda o custo Brasil, a falta de infraestrutura, os impostos. Só disfarça. O desafio é saber se o Brasil não vai se acomodar.

Mas alguns setores da indústria ainda são competitivos, não?

Temos competitividade em alguns setores, curiosamente nos que não têm proteção. Um exemplo é a Embraer, que atua em um dos setores mais competitivos, contra empresas da área militar dos Estados Unidos, e consegue se sobressair.

Sobre os Estados Unidos, como o senhor avalia todas as denúncias de espionagem e a estratégia da diplomacia brasileira?

O Brasil fez bem em ter uma reação vigorosa. As denúncias sobre o Brasil fizeram cair a máscara dos Estados Unidos, mostraram que a motivação para espionagem não é apenas o terrorismo. Existe espionagem comercial também.

Não era possível supor que esse tipo de espionagem existia? Não deveríamos estar preparados?

Todo mundo sabe que a espionagem sempre foi praticada, mas há uma diferença entre saber em tese e publicar documentos que mostram um caso concreto.

E como o Brasil pode se defender?

A única defesa é procurar desenvolver métodos próprios. Não é difícil. Temos capacidade técnica e pessoas para isso. Essa reação depende de vontade política, mas a rigor o país tem que se defender porque há outros riscos. Um ataque cibernético pode paralisar o país, parar energia, telecomunicações.

E a diplomacia?

Pelo que soube do encontro entre o Figueiredo (Luiz Alberto, ministro das Relações Exteriores) e a Susan Rice (assessora de Segurança Nacional da Casa Branca), a linha que será seguida relata que alguns pontos do que foi publicado foram distorcidos pela imprensa e outros são verdadeiros e exigem exame e aprofundamento pelos dois países. Acho que caminha para um pedido de desculpas.

PRINCIPAIS ASPECTOS DA CRISE, SEGUNDO O RELATÓRIO STIGLITZ, E O QUE FOI FEITO

Os bancos não poderiam ser tão grandes que não pudessem quebrar (too big to fail)

Hoje, o grau de concentração dos bancos é muito maior do que era antes da crise. Esse ponto não foi resolvido. O excesso de remuneração que estimula muita gente a assumir riscos excessivos também não foi tocado.

Era preciso diminuir a alavancagem dos bancos

É o que, em parte, o G20 levou adiante com Basiléia 3: obrigar os bancos a levantar muito mais capital. Mas a comissão queria um critério muito mais ambicioso em termos de reduzir a alavancagem.

Os derivativos deveriam ser regulamentados

A Comissão propôs que todas as operações fossem transparentes, publicadas, e, em prazos determinados, deveriam ser liquidadas para que não se perpetuassem. Nada foi feito.

Os shadow bank, instituições financeiras que vivem na sombra, precisam ser reguladas

Muitas das operações de maior risco não eram carregadas pelos bancos tradicionais, mas por instituições que não estão submetidas ao controle estrito dos órgãos de fiscalização. A Comissão procurou dar ideias para que tudo fosse submetido a um controle mais eficaz.


Entrevista publicada no jornal Brasil Econômico, disponibilizada em http://brasileconomico.ig.com.br/noticias/os-banqueiros-causaram-a-crise-mas-nao-foram-punidos_135826.html em 16-09-2013.