O que seremos depois?

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Por Dão Real Pereira dos Santos *

O Brasil, pós pandemia, não há dúvida, será um país diferente! É impossível passar pelo que está passando e continuar igual ao que era antes. A questão central, no entanto, é: será diferente como? O futuro é incerto, mas nada nos impede de especular ou projetar algumas possibilidades do que poderá vir a acontecer. Será, também, o resultado de uma construção e de disputas que acontecem todos os dias. Quem sabe, possamos interferir para que o resultado seja um futuro melhor!? A própria forma de enfrentar a crise sanitária e a disputa entre diferentes maneiras de enfrentá-la pode ser um bom indicativo do como sairemos da crise, mas também revelam concepções diferentes sobre nosso futuro, como Estado e como sociedade.

Precisamos, inicialmente, compreender o que somos agora e de onde partimos. Neste momento, somos um Estado Social sendo desconstruído. Aliás, em 2019, num dos primeiros discursos do presidente da República, recém-eleito, estava claro que sua autodeterminada missão seria “desconstruir muita coisa”. A bem da verdade, as bases que sustentavam a edificação de um Estado Social começaram a ser desmontadas antes, ainda no governo anterior, no final de 2016, e, a partir daí, foram gradativamente se desmanchando tudo o que se construiu nos últimos 31 anos, desde a Constituição Federal, em 1988.

Esta desconstrução vem sendo implementada de forma metódica e sistemática, começando pelo congelamento dos gastos, aprovado pela Emenda Constitucional 95/2016, passando pela reforma da legislação trabalhista, as terceirizações das atividades fins, pela reforma da Previdência, pela entrega a empresas estrangeiras das nossas reservas de petróleo e avançando para as privatizações e as propostas de reformas administrativa e tributária. A redução do Estado e a transferência do patrimônio público para o setor privado constituem os objetivos centrais do atual governo e é no meio deste processo onde estamos agora. 

Com a chegada da pandemia da covid-19, tudo foi jogado para cima, os conceitos, as premissas, os dogmas e as justificativas que embasavam a desconstrução do Estado Social, e ninguém sabe muito bem como isso tudo vai cair. De uma hora para outra, o Estado, tão depreciado, maltratado e machucado, tal como a Geni, da famosa música do Chico Buarque, volta a ser visto como a única tábua de salvação para as pessoas e também para as empresas. Até aqueles que execravam qualquer intervenção do Estado na economia agora correm atrás de liberação de recursos públicos para salvar a economia, clamando, como na música: “Vai com ele, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir”. De ferrenhos defensores das privatizações a apologistas da estatização, mas não se enganem, apenas dos passivos privados, os ativos continuarão intocáveis nas mãos dos seus proprietários.

As medidas de prevenção à propagação da covid-19 reacenderam no povo o espírito de cidadania e de solidariedade. Pode ser uma falsa impressão, mas parece-me que o afastamento ou o isolamento social está, paradoxalmente, aproximando as pessoas e despertando a empatia de muitos pelos problemas de milhões de pessoas que passam por dificuldades neste momento. O cerceamento da liberdade de se movimentar, como forma de prevenção do contágio, é, para muitos, uma restrição absoluta das possibilidades de obtenção de renda. Assim, proliferam-se, nas redes sociais, iniciativas que tentam mitigar as dificuldades das pessoas em situação de vulnerabilidade social, com distribuição de alimentação, de cestas básicas, de renda, etc. Outros mobilizam-se para apoiar financeiramente serviços de saúde e de pesquisa. Até mesmo o Congresso Nacional aprovou rapidamente proposta de concessão de uma Renda Emergencial de R$ 600,00, por três meses, para os mais necessitados. Será que isso significa que teremos uma sociedade mais solidária depois da pandemia?  

O isolamento dos trabalhadores, por outro lado, deixou evidente que sem o trabalho não há geração de riquezas, e isso ficou muito claro nas carreatas desesperadas de alguns empresários, estimulados pelo próprio presidente da República, que, protegidos no interior dos seus carros luxuosos e sob a alegação de que tudo não passava de uma “gripezinha”, pediam que os trabalhadores voltassem a seus postos de trabalho. Será que teremos uma tomada de consciência de classe e maior empoderamento dos trabalhadores frente aos proprietários do capital depois da crise?  

Cresce também, no senso comum, a percepção da importância do Estado, de suas estruturas e dos servidores públicos, e o reconhecimento, ainda que tácito, de que as políticas neoliberais não foram, não são, nem serão capazes de promover o enfrentamento desta crise sanitária, tampouco, da crise econômica que se aprofundará, com certeza. Os liberais, que ocupavam, todos os dias, todos os espaços privilegiados dos jornais, numa pregação ininterrupta pela redução do Estado, silenciaram, pois está ficando muito evidente que foi a implementação das políticas neoliberais dos últimos anos que produziu efeitos desastrosos, que agora se tornam cada vez mais visíveis. Os recorrentes cortes dos gastos públicos promovidos por uma visão moralista de austeridade fiscal, promoveu o enfraquecimento e o sucateamento da nossa rede de Saúde pública. Em 2019, o SUS perdeu R$ 20 bilhões, segundo o Conselho Nacional de Saúde.

Infelizmente, era inevitável, fomos alcançados por esta tragédia humanitária que tantas mortes têm produzido pelo mundo; felizmente, ela nos alcançou antes de o nosso Estado Social ter sido totalmente dizimado, como projeta o governo e a maioria do Congresso Nacional. Não dá para esquecer que o desmonte do SUS e a privatização da Saúde estavam no horizonte até bem pouco tempo atrás. Será que o ministro da Saúde continuará sendo contra o programa Mais Médicos e contra a universalidade no atendimento do SUS, depois da crise?

No campo da economia, as inevitáveis medidas de retardamento do contágio promoverão uma queda substancial da atividade econômica e, consequentemente, grandes perdas de arrecadação de tributos. Os governadores preveem perdas de mais de R$ 14 bilhões em três meses, justamente no momento em que as demandas se avolumarão, exigindo grande aumento de gastos públicos. Diante da crise fiscal, para salvar vidas, queda-se definitivamente vencida a lógica da austeridade fiscal. Imaginem que diante da queda de receitas tivéssemos que cortar ainda mais os gastos sociais, inclusive os gastos com Saúde pública! Não, neste momento é preciso gastar o que se tem e o que não se tem e só o Estado pode fazer isso.

Até mesmo os liberais defendem que o Estado precisa gastar mais para aumentar a capacidade dos serviços de Saúde pública, para garantir renda e proteger as empresas. Mas não se iludam, ainda há quem não pense assim e que continua a insistir na redução do tamanho do Estado e no corte de gastos. Portanto, por mais que pareça óbvio, não está dado que, após a pandemia, o processo de construção do Estado Social voltará ao seu curso normal, interrompido, bruscamente, em 2016, com a Emenda do teto dos gastos (EC 95/2016). Logo nos primeiros dias da crise sanitária, o ministro da Economia insistia na urgência de aprovar as PECs da reforma administrativa. Sua intenção era acelerar, naquele momento, ainda mais a redução das estruturas do Estado.

Dentre as medidas consideradas urgentes, pelo governo, a PEC 186 prevê, além da redução de jornada e de salários dos servidores públicos, a prioridade no pagamento de gastos financeiros; a PEC 187 que extingue os fundos públicos; e a PEC 188 traz, além da desvinculação das receitas, a cereja do bolo, que é a proposta de relativização dos direitos sociais previstos no Artigo 6º da Constituição Federal, de 1988. Disse o ministro da Economia: estas medidas vão ajudar a economizar R$ 5 bilhões e com isso “nós acabaremos com o vírus”.

Portanto, não há nenhuma garantia de que o reconhecimento da importância do Estado neste momento vá se estender para além da crise sanitária. É importante relembrar que o pano de fundo para o início do desmonte do Estado foi a crise econômica de 2014 a 2016. Os defensores do Estado Mínimo aproveitaram o déficit fiscal gerado pela crise econômica e promoveram o maior ataque aos direitos sociais desde a promulgação da Constituição Federal. A interrupção do avanço das políticas públicas nas áreas sociais foi sempre justificada pela de recursos.

Seguindo esta lógica, há no horizonte, um sério risco de aprofundamento das políticas neoliberais, pois a crise econômica pós crise sanitária poderá fazer ressurgir estes conceitos, que agora apenas saíram do foco. Por outro lado, há também uma possibilidade não desprezível de que o projeto de Estado Mínimo seja superado de uma vez, pois, como vimos, a sociedade, os trabalhadores e o mercado podem ter sido convencidos de que não há saída civilizada sem um Estado fortalecido.  

O que seremos depois da crise não dá para saber. Mas qualquer que seja o cenário futuro, ele dependerá da ação dos atores que estarão jogando. A construção do futuro não se dará no futuro, mas, agora. As soluções para a crise emergencial é que definirão o que seremos. Por isso, a adoção de políticas fiscais tributárias progressivas neste momento se torna imprescindível.

Precisamos vencer a crise sanitária e enfrentar a crise econômica, e uma das medidas urgentes é elevar a tributação sobre as camadas mais ricas da sociedade, como propõe o manifesto “Tributar os Ricos para Enfrentar a Crise”, publicado pelo IJF, AFD, FENAFISCO e ANFIP[1], documento que já conta com mais de 2000 apoiadores.

Os 206 bilionários brasileiros possuem uma riqueza estimada em mais de R$ 1,3 trilhão. A tributação das altas rendas e da super riqueza acumulada precisa ser implementada agora, para que a saída da crise se dê com um Estado fortalecido e com recursos suficientes para reorientar a atividade econômica, reduzindo a desigualdade e garantindo os direitos sociais e a vida.


Dão Real Pereira dos Santos é Diretor do Instituto Justiça Fiscal.

[1] IJF – Instituto Justiça Fiscal; AFD – Auditores Fiscais pela Democracia; FENAFISCO – Federação Nacional dos Sindicatos dos Auditores Fiscais Estaduais e Distrital; ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil.

Publicado originalmente em Brasil de Fato, em https://www.brasildefators.com.br/2020/04/13/o-que-seremos-depois

Edição: Katia Marko