Cristina Pereira Vieceli*
A questão da necessidade de realizarmos uma reforma tributária no Brasil não é nova. Esse assunto invariavelmente aparece principalmente em períodos de crise econômica. O debate normalmente gira em torno de dois eixos principais: de um lado, há os defensores da simplificação e redução da carga tributária, de outro os que criticam a maneira como o Brasil tributa, em que pesam os impostos indiretos, onerando principalmente a população mais pobre.
O primeiro grupo entende que a redução e simplificação da carga tributária geraria maior eficiência econômica e, por conseguinte, aumento dos investimentos. O segundo, por outro lado, entende que a carga tributária brasileira, comparativamente, não é alta. Os tributos são necessários para prover recursos para a população, principalmente em períodos de crise econômica. Este grupo entende ainda que a forma como o país tributa é injusta, tendo em vista que onera mais a população de baixa renda. Isso ocorre porque o Brasil, assim como boa parte dos países em desenvolvimento, possui uma carga tributária regressiva, tendo em vista que é prevalente sobre os bens de consumo. Além disso, parte da compreensão de que a política tributária é um importante instrumento de construção de justiça social e diminuição das desigualdades estruturais.
Nos últimos anos, devido as sucessivas crises econômicas, maior concentração de renda, mudanças no mercado de trabalho e financeirização da economia, o debate sobre a necessidade de tributar mais progressivamente tornou-se praticamente consensual. Diversas organizações internacionais, entre as quais o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI)[1], passou a ser partidário da defesa da tributação sobre grandes fortunas, por exemplo, a fim reduzir as desigualdades sociais. Recentemente, a implementação de um imposto sobre grandes fortunas foi novamente defendida pelo ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama[2] a fim de financiar pacotes de incentivos econômicos.
Essa discussão, portanto, aparentemente está vencida: boa parte das economias avançadas do mundo entendem a necessidade da utilização de reformas tributárias, tanto para financiar políticas fiscais, como também para reduzir as desigualdades de renda e, por conseguinte, também de poder. Não é o caso do Brasil, em que ainda é polêmica a criação de um imposto sobre lucros e dividendos, considerando que todos os países do mundo, com a exceção da Estônia, o possuem. Além disso, em nosso país, parece ser coisa normal o Ministro da Economia possuir contas em paraísos fiscais e especular em dólar.
De toda a forma, o debate sobre progressividade tributária mais uma vez ganha espaço importante no cenário político econômico. Uma das discussões que tem sido colocada em pauta é a necessidade de realizar reformas para reduzir as desigualdades de gênero, especialmente neste momento de pandemia. Já tratei em colunas anteriores sobre como a pandemia da Covid-19 impactou sobremaneira as mulheres no Brasil, houve uma redução expressiva da participação feminina no mercado de trabalho e da taxa de desemprego, além do aumento da violência doméstica. O mesmo ocorreu em diversas economias do mundo, pelas caraterísticas específicas da doença.
Nesse sentido, vem sendo discutido internacionalmente políticas fiscais, entre as quais a tributária, que possam mitigar as desigualdades entre homens e mulheres. A exemplo disso, a Cepal, no documento “Fiscal Panorama of Latin America and the Caribbean – Fiscal Policy challenges for transformative recovery post-Covid-19[3]”, destina um capítulo sobre a desigualdade de gênero e necessidade de realização de políticas tributárias com viés de gênero. Esse assunto também ganhou destaque na sexta reunião da Mesa Diretora da Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caribe, em fevereiro de 2021, onde foi firmado o “Compromisso de Santiago: Um instrumento regional para responder à crise da Covid-19 com igualdade de gênero”[4].
É importante destacar que realizar política tributária com viés de gênero não é sinônimo de implementar uma reforma tributária progressiva. Uma política tributária com viés de gênero deve ter como ponto de partida a análise das desigualdades estruturais que as mulheres sofrem na sociedade, ou seja, deve-se partir da concepção do conceito de gênero e como ele se entrecruza com outras formas estruturais de desigualdades, em especial as de raça e classe, e os efeitos que causam na inserção dos indivíduos no mercado de trabalho e na sociedade.
Partindo dessa concepção, Grown e Valodia[4] definiram quatro principais aspectos que diferenciam a posição de homens e mulheres na sociedade e impactam na forma como esses grupos pagam os tributos. Quais sejam:
A primeira característica é as diferentes formas de inserção dos homens e mulheres no mercado de trabalho: as mulheres estão sobrerepresentadas em atividades de jornadas reduzidas e informais, com menores remunerações comparativamente aos homens. Além disso, estamos mais concentradas em atividades relacionadas com os cuidados de pessoas, em áreas como educação infantil, saúde e trabalho doméstico. Por outro lado, os homens estão alocados especialmente em determinados setores industriais, como por exemplo o setor metalúrgico e a construção civil.
A segunda característica é a maior participação feminina nas atividades domésticas não remuneradas. As mulheres, em todos os países do mundo que registram alguma pesquisa de uso do tempo (vale destacar todas as maiores economias do mundo possuem pesquisa sobre o uso do tempo), destinam maior número de horas às atividades domésticas não remuneradas em relação aos homens. Dessa forma, o aumento de tributos sobre determinados bens voltados aos serviços domésticos, como por exemplo, para aquisição de eletrodomésticos, poderá impactar na maior carga de trabalho não remunerado entre as mulheres, com efeitos sobre a participação no mercado de trabalho.
A terceira característica está relacionada com as diferenças nos padrões de consumo entre os domicílios chefiados por homens e por mulheres. Diversas pesquisas, entre as quais uma que tive o privilégio de realizar sobre o assunto em parceria com outros pesquisadores no Brasil, apontam que os domicílios chefiados por mulheres despendem maior parte da renda proporcionalmente em bens como saúde, educação e alimentação. Por outro lado, as despesas masculinas estão mais ligadas proporcionalmente a outros bens, como transporte e ativos. Há também diferenças nos consumos individuais, as mulheres, por exemplo, despendem importante parcela da renda em bens como absorventes íntimos[6] e pílulas anticoncepcionais. Já os homens gastam mais com cigarros e bebidas.
Por fim, o quarto aspecto que deve ser considerado em uma política tributária com viés de gênero é a questão do diferente acesso entre homens e mulheres à ativos, como terra, propriedades e empresas. Os homens são os principais proprietários desses ativos, o que ocorre tanto por fatores legais como também relacionado à normas sociais e acesso à renda. Alíquotas baixas sobre herança e propriedade de terras e veículos possuem forte impacto sobre as desigualdades de gênero na medida em que implicam em maiores cargas tributárias para as mulheres do que entre os homens[7].
Nesse sentido, as forma como os países tributam podem tanto ter viés de gênero explícitos, quando tratam de forma diferente homens e mulheres, como também implícitos, quando a tributação, apesar de não explicitar, possui diferentes impactos entre mulheres e homens[8]. Um exemplo de viés explícito na tributação direta são as declarações de renda conjuntas que, dependendo da forma como são realizadas, podem desincentivar as mulheres a participar em atividades formais no mercado de trabalho. No caso do viés implícito, pode ser encontrado em incentivos fiscais para determinados setores econômicos, por exemplo, o setor metalúrgico, que emprega mais homens que mulheres.
Alguns exemplos de tributação com viés de gênero na América Latina[9] são as deduções de impostos em função de filhos menores ou com incapacidade, encontradas no Equador, Uruguai e Argentina. Neste último também há dedução de impostos para a contratação de empregadas domésticas remuneradas ou trabalhadoras de cuidados.
No Brasil, vale destacar as propostas do grupo “Tributos a Elas”, organizado por um grupo de procuradoras da Receita Federal. Essa organização também tem um podcast (para as/os fãs dessa mídia, como eu![10]). Entre as propostas estão a manutenção da isenção de itens da cesta básica, a inclusão de anticoncepcionais como itens da cesta e a isenção de PIS/Cofins sobre absorventes íntimos.
Vale também destacar outras propostas, como a inclusão do viés de gênero na elaboração de políticas de incentivo à determinados setores produtivos e o controle da evasão fiscal. Essa agenda de pesquisa é recente, mas vêm ganhando espaço nos estudos da economia feminista e em outras áreas, haja vista a sua importância tanto para a construção de justiça tributária no país, como também para a redução das desigualdades estruturais em que pese a de gênero.
Notas[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/fmi-defende-taxar-mais-ricos-para-lidar-com-aumento-da-divida-no-pos-pandemia.shtml[2] https://economia.ig.com.br/2021-09-28/obama-taxar-ricos.html[3] Panorama Fiscal da América Latina e do Caribe – Mudanças nas políticas fiscais para recuperação transformadora pós-Covid-19.[4] https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46721/1/S2100048_pt.pdf[5] GROWN, C. AND I. VALODIA Taxation and Gender Equity, London: Routledge, 2010. https://idl-bnc-idrc.dspacedirect.org/bitstream/handle/10625/43684/IDL-43684.pdf?sequence=1&isAllowed=y[6] Na coluna passada tratamos sobre a questão da pobreza menstrual e orçamento público.[7] Essa constatação também foi analisada no artigo “Estrutura tributária brasileira e seus reflexos sobre as desigualdades de gênero” https://ijf.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Artigo-Tributa%C3%A7%C3%A3o-e-G%C3%AAnero.pdf[8] https://www.cepal.org/en/publications/46809-fiscal-panorama-latin-america-and-caribbean-2021-fiscal-policy-challenges[9] https://www.cepal.org/en/publications/46809-fiscal-panorama-latin-america-and-caribbean-2021-fiscal-policy-challenges[10] Aqui um episódio sobre a tributação e desigualdade de gênero: https://open.spotify.com/episode/3jwmEszA9P1WICxOO2B1wc?si=IuYMOvR0RjmJsepxT2y3_A
* Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .