O Perigo Está Sempre nos Detalhes

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por Dão Real Pereira dos Santos*

A Lei Complementar 200/2023 instituiu o Novo Arcabouço Fiscal ou, como diz em seu preâmbulo, o regime fiscal sustentável para garantir estabilidade macroeconômica do País. Resumidamente, a partir desta Lei, a União poderá aumentar seus gastos de um ano para outro em até 70% do aumento de suas receitas, desde que não ultrapasse a 2,5% de crescimento real, nem seja inferior a 0,6%, de um ano para o outro.

Em relação à regra anterior, instituída pela Emenda Constitucional 95/2016, significa um grande avanço, pois agora, os gastos poderão crescer acima da inflação.

No entanto, mesmo nesta nova regra há problemas que precisam ser corrigidos. Um deles é que os gastos só poderão aumentar quando houver aumento de receitas, ou seja, quando são menos necessários, pois a economia estaria em situação normal.

Mas o ponto mais importante a considerar é que esse novo marco fiscal trouxe embutido uma armadilha, que poderá implicar no dilema de ter de reduzir gastos para manter direitos ou de reduzir direitos para aumentar gastos. Isso porque as despesas obrigatórias poderão voltar a crescer na medida do crescimento das receitas ou até acima deste e não foram excluídas dos limites globais de crescimento estabelecidos, de 70% do crescimento das receitas e de 2,5% em relação ao ano anterior.

Temos aqui as despesas com saúde, cujo piso é de 15% da Receita Corrente Líquida, ou com educação, que não podem ser inferiores a 18% da receita líquida de impostos. Tanto para a saúde quanto para a educação, os gastos crescerão proporcionalmente às receitas. Outras despesas obrigatórias, que fogem do controle do governo, são os gastos previdenciários, pois estes são fortemente influenciados pelo valor do salário-mínimo. Logo, numa política de valorização do salário-mínimo, os gastos previdenciários tenderão a crescer no mínimo no mesmo percentual de crescimento das receitas.

Estando incluídas no conjunto das despesas submetidas aos limites globais, o crescimento delas poderá implicar na necessidade de limitar o crescimento das demais despesas a índices inferiores àqueles estabelecidos na Lei. Se essa regra não for alterada, podemos chegar a uma absurda situação de termos que reduzir os gastos discricionários na medida em que as receitas cresçam.

Os gastos com saúde e educação correspondem a aproximadamente 15% das receitas da União. Os gastos previdenciários representam mais de 50%, sendo que cerca de 70% correspondem a um salário-mínimo. Numa situação hipotética em que as receitas cresçam 10%, as despesas com saúde educação cresceriam também 10%. As despesas previdenciárias poderiam crescer 7%. Nesta simulação, 50% das despesas cresceriam na mesma proporção do crescimento das receitas. Para não ultrapassar o limite de 2,5% de crescimento, as demais despesas teriam que ser reduzidas em 5%, em relação ao ano anterior.

A superação da regra anterior, de congelamento dos gastos, criou essa armadilha. É urgente alterar esse dispositivo na Lei Complementar 200/2023, para excluir dos limites, os gastos obrigatórios, caso contrário, teremos grandes dificuldades para preservar as conquistas históricas da sociedade, representadas pelos pisos constitucionais para os gastos com saúde e educação, bem como a política de valorização do salário-mínimo. Aliás, a revogação dos pisos constitucionais e a desvinculação dos benefícios previdenciários do valor do salário-mínimo já começam a aparecer na pauta política de forma cada vez mais frequente. Perigo à vista!

*Auditor fiscal, ex-presidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF) e integrante do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.