O Instituto Justiça Fiscal (IJF), em parceria com a ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) e a FENAFISCO (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital), realizou o Seminário Reformas DESestruturantes do Estado de Bem-Estar Social, no dia 16 de agosto de 2019, no Plenário Ana Terra da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. A Mesa de Abertura contou com a presença de Charles Alcântara, Presidente da FENAFISCO, Marcelo Sgarbossa, vereador de Porto Alegre, representando a Câmara Municipal, Marcelo Ramos Oliveira, Presidente do Instituto Justiça Fiscal, e César Roxo Machado, Vice-presidente de Assuntos Tributários da ANFIP. Logo após iniciou o painel de análise da conjuntura “O Brasil no século XXI?”, com o professor de Economia da UNICAMP Pedro Rossi, o auditor fiscal e integrante do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia Wilson Müller e a auditora fiscal e ex-presidente do Instituto Justiça Fiscal Fátima Gondim.
O professor do Instituto de Economia da UNICAMP e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON/UNICAMP) Pedro Rossi apresentou o seu estudo “Reformar pra quê(m)? o diagnóstico que justifica as reformas estruturais no brasil pode estar equivocado”. Segundo ele, o diagnóstico que justifica as reformas é de que o desequilíbrio fiscal é a raiz dos problemas brasileiros e o excesso de gastos públicos é a sua causa. “Esse diagnóstico é a base da justificativa para a Emenda Constitucional 95 e a reforma da Previdência. Há também versões explicativas mais radicais: ‘acabou o dinheiro’, ‘o Brasil quebrou’, o ‘Estado não cabe no PIB’, ‘a Constituição de 88 não é implementável’, etc. A esse diagnóstico básico somam-se outros complementares: excessos de regulação, burocratização e de intervenção do Estado na economia em geral, o que justifica outras reformas”, salientou.
Mas, segundo Rossi, as reformas implementadas com base nesse diagnóstico têm profundas consequências distributivas e sociais como discutidas nos livros “Austeridade e Retrocesso” e “Economia para Poucos”. “Trata-se de uma desestruturação do incipiente Estado de Bem-Estar Social no Brasil. Mas, para além de discutir as consequências sociais dessas reformas, é preciso repensar o diagnóstico convencional e apresentar um diagnóstico alternativo”.
Na visão defendida pelo economista, o problema fiscal brasileiro não vem do gasto público, mas do arranjo macroeconômico. “O tripé macroeconômico, que completa 20 anos em 2019, fracassou por três motivos: 1) nos últimos 20 anos, o Brasil apresentou uma das taxas de juros nominais mais altas do sistema internacional que não é explicada pela trajetória da inflação, tampouco pelo patamar da dívida pública; 2) o regime de câmbio no Brasil apresentou nesses 20 anos uma das taxas de câmbio mais voláteis em relação ao dólar e 3) o regime de metas de resultado primário e a regra de gastos não garantem a sustentabilidade da dívida pública, uma vez que as demais “pernas” do tripé, política monetária e cambial, tem alto custo fiscal. Nesse contexto, o diagnóstico predominante no debate público brasileiro pode estar equivocado e o “ajuste estrutural” que o Brasil precisa não é a redução do gasto público, mas a reforma da institucionalidade por detrás do tripé macroeconômico”, concluiu.
Conforme Rossi, as reformas em curso são um remédio para um problema mal diagnosticado. “O suposto ‘excesso de gastos públicos’ não é a principal causa do desequilíbrio fiscal, não explica as especificidades brasileiras, nem a grande recessão que maltrata a economia brasileira desde 2015. Há outra razão estrutural possível para explicar as especificidades brasileiras: a herança institucional do período da alta inflação que não foi superada pelo plano Real e tampouco pelo tripé. Precisamos, na realidade, discutir as reformas que vão garantir o Estado de Bem-Estar Social, entre elas, a reforma Tributária”, defendeu.
Confira aqui a íntegra da apresentação de Pedro Rossi (file:///C:/Users/katia/OneDrive/Documentos/Revista%20IJF/Seminario%20IJF/2019_IJF_Pedro_Rossi.pdf)
“É preciso resistir para não perdermos nossas conquistas”
O auditor fiscal aposentado Wilson Muller, do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, apresentou uma análise dos problemas enfrentados no governo Jair Bolsonaro. Na sua opinião, é necessário ter um diagnóstico mais preciso do que representa este governo para conseguir resistir. “Precisamos estabelecer algumas estratégias para não perdermos tudo o que conquistamos. A organização dos trabalhadores no contexto atual, de desemprego e perda de direitos, se torna muito difícil. Temos milhões de pessoas fora do mercado do trabalho formal, muitos se tornando “empreendedores”. E como se chega nessas pessoas para conversar? Foi feito um trabalho muito grande de contra-hegemonia da direita. O Bolsonaro é herdeiro de todo o trabalho feito desde o início do governo Lula”, avalia.
Muller avaliou quem são os grupos que apoiam Bolsonaro, como o capital financeiro, o agronegócio, os bancos interessados na reforma da Previdência, as igrejas pentecostais, e porque estes grupos convivem com Bolsonaro, mesmo desejando que seu governo fosse mais palatável. Também falou do papel das instituições que deveriam agir em defesa do Estado de Direito, como o Ministério Público, a Polícia Federal, setores da Receita Federal ou o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), todas as instituições que tinham papel de defesa da legalidade e da Constituição que passaram a agir, a partir de 2014, com um viés inadequado e comprometedor, em defesa de um projeto político e financeiro. “E estão aí todas as denúncias da Vaza-Jato para provar isso.”
O Presidente Bolsonaro não parece estar medindo as consequências de suas falas e seus atos, não parece ter medo de levar o país à uma situação insustentável. O Brasil está sendo pilhado da pior forma possível, mas algumas poucas famílias privilegiadas vão se dar bem, alguns representantes de setores econômicos muito específicos também. Nós temos é que discutir seriamente a possibilidade de afastar o Presidente Bolsonaro”, defende.
“É urgente retomar nossas formas de luta do passado”
A auditora fiscal e ex-presidente do Instituto Justiça Fiscal Fátima Gondim iniciou sua fala de maneira bastante positiva. “Diante de tantos desastres procurei algo que nos animasse. E encontrei uma entrevista do Fiori [José Luís Fiori, professor de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro], onde ele afirma que vamos levar de 10 a 20 anos para construir uma nova identidade de país. Eu achei isso animador. Então, a saída vai depender da nossa capacidade de resistência e construção. O Instituto Justiça Fiscal nasceu da crise. Precisamos saber onde estamos e para onde vamos. Temos um país com grande potencial pela frente. De 2003 a 2012 aumentamos nosso grau de soberania. Há qualquer momento poderíamos perder essa soberania. Com o governo Bolsonaro, vamos passar a ser um país agroexportador, dependente dos EUA. Isso é inviável, Trump não vai abrir as portas do país. Governo nenhum tem direito de submeter nossa segurança a outro país, pois há barreiras constitucionais, inclusive. O povo precisa decidir o que quer”, ressaltou.
Fátima relembrou lutas históricas dos auditores ficais contra a implementação do modelo neoliberal nas décadas de 80 e 90, por exemplo, a transformação das administrações tributárias em agências, o que acabou acontecendo em muitos países da América Latina; a tributação indireta, modelo que entrou em 1995, com a desoneração dos rendimentos mais elevados,do andar de cim). “Em 1998, aumentamos a Confins, dobramos a CPMF, aumentando a tributação do andar de baixo, que chega ao patamar de 32%. Tudo isso para aumentar o superávit primário. Foi uma luta muito dura. Lutamos via sindicato contra todas essas medidas, junto com a sociedade. Vencemos muitas lutas. Entramos inclusive na luta pelo salário mínimo. Denunciamos o congelamento da tabela do Imposto de Renda. Denunciamos o REFIS. Muitas coisas que conseguimos reverter e que infelizmente muitos países do Conesul não conseguiram. Viraram agências e perderam a capacidade de arrecadação”, destacou.
Segundo Fátima, a novidade em relação à década de 90 é que agora a volta do modelo neoliberal é mais agressivo, a destruição é mais rápida. “Essa rapidez faz a gente pensar que a gangorra pode se mover mais rápida também. O desmonte é da Constituição, o sistema tributário é sua espinha dorsal, quando você quebra essa estrutura que garante o Estado, você quebra a Constituição. A defesa pela Constituição nos une na luta. Pensávamos que se não lutássemos com a sociedade jamais nos legitimaríamos como Fisco. Orçamento fiscal não é orçamento doméstico. Os direitos existem e o sistema tributário tem que construir um sistema que garanta esses direitos. Que Estado queremos construir?”, questiona.
“Estamos há 6 meses meio inertes, paralisados e é hora de começarmos a nos programar para resistir. A reforma previdenciária vai nos levar à barbárie. Temos um longo caminho pela frente, teremos que recuperar nossas lutas do passado. O programa de Educação Fiscal que o IJF faz com a sociedade é importantíssimo. Eu sinto uma falta enorme da educação fiscal nas escolas. Não teríamos essa separação tão grande entre quem dá o dinheiro e quem recebe se tivéssemos uma educação para a cidadania. Quem mais se beneficia hoje é contra a gente. Precisamos conversar com os professores também. Recuperar essas atividades do passado, incluir a defesa dos mais fracos, nossa luta não pode ser separada, projetar uma refundação do país. Projetamos a Receita Federal que queríamos, podemos projetar o Estado que queremos e quem sabe pensar uma nova identidade de país. Essa construção só é feita unindo todos que estão sofrendo esse desmonte, que é a maioria do povo brasileiro”, finalizou.