Aparentemente, há um lugar para onde todos queremos ir, um lugar de prosperidade, de desenvolvimento econômico, de bem estar, onde a desigualdade social não exista ou seja residual, onde não exista extrema pobreza, nem miséria. Neste lugar, ninguém é discriminado pela cor da pele, nem por sua condição social, tampouco por sua orientação sexual. É o lugar da felicidade e do bem estar, daquela utopia pensada por Thomas More, ou, talvez, da isonomia, que antecede à própria democracia grega, na qual, segundo o professor Francisco Marshall[i], “um ambiente de oportunidades igualitárias coopera para a emergência do bem comum”[ii].
Evidente que sempre poderá haver divergências em relação aos diferentes caminhos para se chegar lá, nesta tão sonhada sociedade. Para alguns, a linha reta pode ser o melhor caminho, subindo e descendo montanhas, enfrentando, portanto, um maior número de obstáculos; para outros, o melhor seria seguir de forma mais segura, indo por caminhos mais planos, talvez mais longos, mas que outros já os tenham trilhado antes.
A disputa pelo modelo de Estado está ligada a concepções distintas sobre o projeto de sociedade
Há no ambiente político nacional uma disputa permanente pelo modelo de Estado como se tanto o Estado de Bem-estar, desenhado na Constituição Federal de 1988, como o Estado mínimo, desejado pelos neoliberais, seriam meios diferentes para se chegar ao mesmo fim, ou seja, uma sociedade mais justa social e economicamente, como se os defensores tanto de um como de outro modelo estivessem disputando apenas qual seria a melhor forma de se alcançar a sociedade sonhada por todos. A falta de uma clara percepção de que as reais motivações podem ser distintas torna os debates em torno deste tema inócuos e inconclusivos. Não adianta demonstrar com evidências que a opção pelo Estado mínimo leva à construção de uma sociedade mais desigual e injusta, que se conforma no subdesenvolvimento econômico, pois esses podem ser exatamente os objetivos de quem o defende.
Somos levados a acreditar que todos estejam buscando construir esta sociedade mais igualitária, mais justa, com condições para promover um desenvolvimento econômico sustentável e equilibrado, e que as divergências entre um e outro projeto estariam apenas no campo do “como fazer”. Afinal, quem poderia ser favorável ao aumento da pobreza e da miséria? Quem poderia, por exemplo, defender abertamente que os direitos à saúde, à educação e à previdência sejam reduzidos à condição de mercadoria, disponível apenas para aqueles que possam pagar por eles?
Mas é preciso considerar o fato de que nesta sociedade, supostamente ideal, não há como existir a extrema riqueza, tampouco a elevadíssima concentração de renda que temos no Brasil, o que, por certo, determina que esta sociedade ideal não é um destino absolutamente consensual.
O subdesenvolvimento como objetivo de agentes econômicos
Em 1978, o consagrado economista brasileiro, Celso Furtado, participando de um colóquio internacional[iii], na cidade de Prato, na Itália, analisando a relação centro-periferia, expôs que o vetor da acumulação se dá tanto pela transformação das formas de produção como pela transformação das formas de vida. Dizia ele, o “desenvolvimento das forças produtivas não é uma condição necessária para ter acesso a produtos que são o fruto do desenvolvimento das forças produtivas em outros países. É possível pagar os automóveis com cacau, café, etc.”. Assim, explicava que o subdesenvolvimento não era senão a transplantação de uma civilização material complexa, sem a base material correspondente de acumulação das forças produtivas. A mesma acumulação pode comprar uma máquina ou pode se transformar em consumo, esclarecia. “E é por isso que, quando se deseja reproduzir essas formas de consumo, a renda deve-se concentrar, excluir dos benefícios do desenvolvimento uma boa parte da população e, no fundo, manter uma estrutura a que chamamos subdesenvolvida, embora se avançando muito no caminho da industrialização.”
Fica claro, na brilhante exposição do professor Furtado, que a manutenção do subdesenvolvimento e da desigualdade social pode não ser apenas uma consequência, mas sim um objetivo a ser alcançado por determinados agentes econômicos que se contentam apenas com o acesso a padrões de consumo similares aos países centrais, sem terem de assumir o ônus de transformar as formas de produção, mas, para isso, precisam manter uma estrutura social profundamente desigual e injusta.
Por mais complexas que sejam as escolhas no campo das políticas econômicas, não há dúvida de que a opção de priorizar as atividades primário-exportadoras, pela redução dos custos das matérias primas exportadas, significa abdicar de uma política de desenvolvimento industrial e, por mais que se diga que esta pode ser uma forma de promover o desenvolvimento nacional, a experiência histórica internacional nos demonstra o contrário. Trata-se, portanto, de uma opção política pelo não desenvolvimento, o que significa também uma opção por uma sociedade mais desigual.
EC95 barrou o Estado social iniciado com a Constituição
Nesta construção de narrativas que associam argumentos atrativos com finalidades virtuosas, mas cujas reais motivações podem estar ocultas, o desequilíbrio fiscal, por exemplo, tem sido sempre colocado como um problema a ser enfrentado com medidas radicais de austeridade, quando de fato, para aqueles que propõe tais medidas, crises fiscais sempre significaram oportunidades a serem aproveitadas para promover a redução do Estado. A Emenda Constitucional 95/2016 interrompeu, sob a falácia da “gastança”, bruscamente, todo o processo de implementação do Estado social, iniciado com a Constituição Federal, de 1988.
Podemos também trazer esta reflexão para a cruzada que alguns setores econômicos vêm promovendo, há bastante tempo, contra os tributos, por exemplo. Falam insistentemente que a carga tributária brasileira é muito alta, chegando a afirmar que seria a maior do mundo, que os tributos atrapalham o desenvolvimento do país e que o Estado é ineficiente e gasta demais. Paradoxalmente, dizem também que é preciso investir mais em políticas públicas, criticam a qualidade da saúde, da educação e da segurança pública, como se houvesse nexo de causa e efeito entre a carência de políticas públicas e o suposto excesso de tributos.
O governo e seus defensores não escondem seu desejo de reduzir o tamanho do Estado e utilizam sempre o argumento da prosperidade econômica, da melhoria do ambiente de negócios e da retomada dos investimentos. Todas as reformas neoliberais, desde o congelamento dos gastos públicos (EC95/2016), passando pelas reformas trabalhista, previdenciária, administrativa e tributária, são projetos apresentados à opinião pública sempre como necessários para desobstruir o desenvolvimento do país, gerar empregos e distribuir renda.
Objetivo das reformas é a redução do Estado
Mas o que fica claro é que, na reforma trabalhista, não queriam aumentar o emprego, mas sim reduzir o custo do trabalho; na reforma previdenciária não queriam ampliar os direitos, mas sim garantir lucros para os bancos; na reforma administrativa não querem melhorar o serviço público, mas sim privatizar as políticas públicas; na redução do Estado não querem promover os investimentos nas atividades produtivas, mas sim transferir parte das políticas públicas para o setor privado. O crescimento econômico e o aumento dos investimentos e do emprego, que servem sempre de motivação declarada, não se concretizam e são sempre condicionados a uma próxima reforma que deverá ser implementada.
De fato, o objetivo comum de todas estas iniciativas é sempre o desejo de redução do Estado e dos investimentos em políticas sociais, e a ampliação de ganhos para determinados setores econômicos. Mesmo em período de pandemia, quando todos percebem a importância do Estado e de suas estruturas, diversos são os projetos, que continuam em pauta no Congresso Nacional, que aprofundam e aceleram a redução do Estado.
Revelado, então, que o real objetivo de muitas destas medidas propostas como salvadoras do país converge sempre para a redução do tamanho do Estado, restam as seguintes as questões: Isso ajudaria a desenvolver o país? Tornaria a sociedade mais justa e igualitária?
Disputa é pelo modelo de sociedade
A disputa pelo modelo de Estado está diretamente ligada a concepções distintas sobre o projeto de sociedade e sobre o próprio desenvolvimento econômico. A escolha por uma sociedade mais igualitária e por um desenvolvimento mais sustentável e distributivo, ou o contrário disso, por uma sociedade com profundas desigualdades sociais e subdesenvolvida economicamente, impõe a adoção de ações políticas e econômicas distintas, o que significa dizer, por outro lado, que a adoção de determinadas ações políticas e econômicas acabarão por determinar como será a sociedade que está sendo projetada.
No campo das políticas econômicas, a escolha pode ser no sentido de privilegiar, estimular e orientar a industrialização, ampliando a agregação de valor no processo produtivo, pela adoção de políticas industriais, comerciais e tecnológicas ativas (IEC), de que nos fala o economista sul-coreano Ha-Joon Chang[iv], como fizeram quase todos os países hoje desenvolvidos, ou pode ser para fortalecer a manutenção de uma economia primário-exportadora, com baixo nível de agregação de valor.
Em relação ao modelo de Estado, a opção pode ser na promoção de maior distribuição de renda, por uma tributação progressiva e gastos públicos bem orientados, maior intervenção nas atividades econômicas, como fizeram as sociais democracias europeias, especialmente no pós guerra, ou pode simplesmente ser a de transformar o Estado em mero instrumento a serviço do interesse de alguns poucos setores privilegiados, que visam apenas a ampliar permanentemente seus ganhos.
Campanhas midiáticas milionárias são contratadas, com recursos públicos, para naturalizar a ideia de que a revogação dos seus direitos será melhor para você. As frases ditas pelo presidente da República, de que “os trabalhadores terão que escolher entre direitos ou empregos”, e, mais recentemente, pelo ministro da Economia, defendendo o projeto de reforma administrativa, de que só poderia garantir a renda emergencial se reduzisse os custos com o serviço público, são carregadas de simbolismos. Elas sintetizam a ideia de que as políticas públicas que garantem direitos concorrem contra o bem-estar das pessoas, que precisam de trabalho e de renda.
Trata-se, na verdade, de uma engenharia argumentativa que coloca as pessoas diante de um falso dilema de terem de abdicar de direitos para garantir alimentos, de trocar saúde por educação, previdência por assistência e seguridade por trabalho informal, tudo isso, com o objetivo de preservar e ampliar os lucros e as riquezas de poucos privilegiados, cujos interesses são super representados no Parlamento e no próprio governo.
A quem interessa uma sociedade mais igualitária?
É preciso reconhecer, portanto, que as divergências são muito mais profundas do que somente aquelas que poderiam existir entre os diferentes caminhos para se chegar ao mesmo fim. Uma sociedade mais igualitária e desenvolvida economicamente não é o destino que interessa a todos. Essa é uma questão extremamente relevante, pois só será possível enfrentar tais projetos com efetividade quando ficar evidente quais são suas verdadeiras motivações.
Por fim, é importante relembrar também que a construção de uma sociedade mais igualitária foi a inspiração majoritária dos constituintes em 1988. A Constituição Federal apontou o caminho, muito bem definido, para se alcançar esta realidade, que passa pelo fortalecimento do Estado, pela garantia dos direitos sociais, pela valorização do trabalho, pela educação pública, gratuita e universal etc.
O desenvolvimento nacional está lá no seu Artigo 3º, como um objetivo fundamental, no mesmo patamar da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais. Ainda que todos, parlamentares e governantes, tenham jurado cumprir a Constituição Federal, de 1988, a realidade nos mostra que muitos ainda querem exatamente o contrário do que ela determina. Nosso desafio, portanto, é perceber com clareza, em cada projeto, em cada medida proposta e em cada reforma apresentada, aonde querem chegar. Só assim seremos capazes de enfrentar as propostas que nos distanciam ainda mais daquela sociedade mais justa, mais igualitária e desenvolvida economicamente, que todos queremos construir.
[i] Doutor em História Social pela PUC/SP, pós-doutorado na Princeton University (EUA), professor da UFRGS.
[ii] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/01/francisco-marshall-tres-palavras-gregas-hybris-oligarquia-isonomia-4691228.html
[iii] Rosa Freire D’Aguiar, jornalista, editora e tradutora – Artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons (estudosavancados@usp.br).
[iv] CHANG, Ha-Joon, 2003 – Chutando a Escada, Fundação Editora da UNESP (FEU)
Edição: Katia Marko
Fonte: Brasil de Fato RS