Carlos Bittencourt avalia o setor relacionando os ganhos financeiros com os impactos sociais e ambientais implicados com o desenvolvimento do extrativismo mineral
Por: Ricardo Machado e Andriolli Costa
Ainda que a desigualdade de renda e patrimônio seja inata ao capital, a excessiva concentração de renda — que aumenta ainda mais o abismo entre as classes sociais — vem sendo enfrentada por diversas correntes da economia contemporânea. Para o historiador Carlos Bittencourt, especializado em questões envolvendo Mineração, o setor vai na contramão destas tendências, e atua fortemente no sentido da concentração da riqueza em poucas mãos. “Não apenas da renda gerada pela comercialização mineral, mas também da concentração das jazidas minerais que passam a controlar, retirando-as da esfera pública, privatizando-as. Desse ponto de vista, o da desconcentração de renda e patrimônio, a mineração é muito danosa para a economia nacional.”
Tendo em vista a forte relação entre a política e o mercado, Bittencourt defende a intensa participação social para evitar que o Congresso defina sozinho e às escondidas as dinâmicas que vão orientar o novo código brasileiro de mineração. Este “pode ser ainda mais pernicioso na medida em que os minérios são finitos e não renováveis. Depois que foram explorados e exportados, não vão se regenerar, não haverá uma segunda safra”.
O raciocínio puramente financeirizado é incapaz de perceber a totalidade das implicações negativas da atividade mineradora. Não se trata apenas de ficar à mercê do mercado internacional por meio de uma atividade primária e extrativista, mas de se atentar para os passivos produzidos a partir desta. “Para extrair/produzir esses milhões de toneladas para exportação, usa-se água brasileira em enormes quantidades e quase de graça. Aproveita-se dos baixos preços da energia para os megaempreendimentos. Submete-se a fertilidade do solo a uma pressão gigantesca e destrutiva. E, ao mesmo tempo, desaloja pessoas, remove comunidades, destrói modos de vida tradicionais. Pergunto novamente: vale a pena pagar esse preço?”
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Carlos Bittencourt questiona as propostas apresentadas pelo relator do Código de Mineração — o deputado federal Leonardo Quintão —, que estariam enviesadas pelos interesses econômicos dos financiadores de sua campanha; discute os limites da Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEM; e problematiza as implicações da relação entre déficit e superávit da balança comercial brasileira.
Carlos Bittencourt é historiador graduado pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Atualmente é consultor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase. Com financiamento da Fundação Ford, ele desenvolve o projeto de pesquisa “Mineração em Debate”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Ao se discutir um novo marco regulatório à mineração no país o que está em jogo?
Carlos Bittencourt – Um novo marco da mineração poderia colocar em questão muitas coisas, como o ritmo que a sociedade brasileira quer exaurir suas reservas minerais, os limites socioambientais da exploração minerária, os direitos das comunidades atingidas de serem previamente consultadas sobre a instalação dos empreendimentos, a construção mesma de um planejamento democrático para o setor.
Infelizmente, os horizontes deste novo marco regulatório que está no Congresso são muito estreitos. A proposta apresentada pelo governo e a contraproposta do relator Leonardo Quintão giram em torno de duas questões. A forma como as empresas acessarão as jazidas minerais, ou seja, se se manterá o regime de prioridade atual ou se transitará para um regime de concorrência pública por licitação e o tamanho da fatia da renda mineral arrecadada pela Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEM e sua distribuição entre os entes da federação.
Trata-se de um novo marco em torno de velhas questões. Não houve qualquer ousadia no sentido de avançar para uma verdadeira regulação da mineração no Brasil. Continua a se acreditar que a exaustão dos recursos minerais brasileiros, por conta da superexploração dos mesmos, é um assunto para ser tratado entre governo e empresas, fora do campo de ação e opinião do conjunto da sociedade brasileira.
IHU On-Line – Do ponto de vista econômico, como o novo marco regulatório impacta nas finanças do país?
Carlos Bittencourt – Essa é uma pergunta complexa. Primeiro devemos desconstruir a noção corrente do que são as “finanças do país”. As finanças do país são apenas os valores monetários que entram e saem em nossas transações correntes, balança de pagamentos, saldo comercial, ou devemos incluir aí outros valores menos monetários, mas, na minha avaliação, muito mais sólidos e relevantes?
Por exemplo, a Balança Comercial Brasileira, se olhada apenas do ponto de vista financeiro, veio conseguindo alguns magros superávits. Porém, se olharmos pela ótica do volume das trocas de matéria entre nós e os demais países (especialmente as grandes potências capitalistas, incluindo obviamente a China), temos um déficit gigantesco. Em 2013, o Brasil exportou 558,5 milhões de toneladas de matéria em forma de mercadorias e importou 159,6 milhões de toneladas, uma diferença gritante. Ou seja, há um déficit econômico, porque para alcançar os valores monetários dos produtos importados é necessário exportar maiores quantidades de produtos com preços muito menores e, nesse caso, o minério de ferro e os minérios em geral cumprem um papel destacado. É a reedição contemporânea da troca de espelhos por ouro — os atuais espelhos são os smartphones, computadores e máquinas de todo tipo; o ouro continua sendo ouro mesmo e outros minerais.
Para extrair/produzir esses milhões de toneladas para exportação, usa-se água brasileira em enormes quantidades e quase de graça. Aproveita-se dos baixos preços da energia para os megaempreendimentos. Submete-se a fertilidade do solo a uma pressão gigantesca e destrutiva. E, ao mesmo tempo, desaloja pessoas, remove comunidades, destrói modos de vida tradicionais. Pergunto novamente: vale a pena pagar esse preço? A maioria dos brasileiros está tirando vantagem nisso? Isso ao menos está computado entre ganhos e perdas econômicos?
Outro aspecto é pensar: existem mesmo as finanças do país? Afirmar isso não dá a ideia de que todos os brasileiros se beneficiam igualmente das transações comerciais e financeiras dos setores econômicos brasileiros? Do meu ponto de vista, um indicativo de bonança para as “finanças do país” é a desconcentração de renda e patrimônio. A mineração atua fortemente no sentido da concentração da riqueza em poucas mãos. Não apenas da renda gerada pela comercialização mineral, mas também da concentração das jazidas minerais que passam a controlar, retirando-as da esfera pública, privatizando-as. Desse ponto de vista, o da desconcentração de renda e patrimônio, a mineração é muito danosa para a economia nacional.
A lógica do novo marco da mineração apresentado visa a um mergulho ainda mais profundo na lógica atual, qual seja, mais mineração, mais exportação para equilibrar a balança comercial. Desse ponto de vista, certamente a nova proposta impactará a economia nacional, infelizmente, em minha avaliação, de uma forma muito negativa.
IHU On-Line – Quem ganha e quem perde com o Novo Código da Mineração?
Carlos Bittencourt – Ainda não sabemos qual será o resultado dos debates sobre o novo Código, do cabo de guerra entre o governo e o relator. Se o resultado for um ponto médio entre as propostas de ambos, é possível afirmar sem dúvida: as empresas, inclusive estrangeiras, manterão os privilégios conquistados com a desregulamentação liberal do país na década de 1990 e, com isso, seguem sem amarras para conquistar lucros extraordinários. Ganham também os setores políticos que dirigem os estados com direito a receber a CFEM em seus diferentes níveis.
Quem perde são aqueles que vêm perdendo historicamente com a mineração em grande escala. Em primeiro lugar, as comunidades diretamente afetadas. Vale aqui ressaltar que neste nível não se trata de uma perda qualquer. Muitas vezes a existência mesmo como comunidade fica ameaçada, se perdem formas de viver tradicionais, a saúde de muitas pessoas. Perdem os trabalhadores, pois seguem submetidos a níveis de exploração desumanos que sequer são debatidos na proposta atual de código. Por fim, sai derrotado o conjunto da sociedade brasileira, que vê as jazidas minerais se esvaírem sem participar dos ganhos dessa extração.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças entre a legislação vigente e a nova proposta?
Carlos Bittencourt – A proposta apresentada pelo governo modificava a forma de acesso às jazidas, diminuindo o papel do regime de prioridade (quem requer primeiro o direito sobre a jazida pode explorá-la) e criando o regime de licitação, no qual o governo abriria um processo de concorrência pública para se acessar as jazidas. Este talvez fosse o aspecto mais positivo da proposta. O governo propunha também a mudança da base de incidência da alíquota da CFEM, que passaria a incidir no faturamento bruto e não mais no líquido. E, por fim, extinguia o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM e criava uma agência nacional da mineração.
O relator Leonardo Quintão, um dos parlamentares que mais recebeu financiamento das mineradoras, apresentou uma contraproposta. Sua proposta mantém o regime de prioridade como principal meio de acesso às jazidas. Modifica pouco a proposta do governo quanto à alíquota da CFEM; a principal mudança é a inclusão de uma segunda classe de municípios (indiretamente atingidos) que teriam acesso a 10% da arrecadação da CFEM. No entanto, traz duas grandes novidades muito negativas. Cria a possibilidade de negociação dos títulos minerários nas bolsas de valores, o que estimularia uma financeirização sem precedentes do setor, submetendo-o ao risco de ocorrer fenômenos como o que vem afundando as empresas do Eike Batista — ou seja, de títulos que na bolsa se valorizam, mas que não têm fundo real nas jazidas. E, ainda, a proposta do relator propõe um artigo que diz que qualquer demarcação de nova Terra Indígena, Quilombo, Unidade de Conservação ou qualquer outra coisa que interfira nos interesses minerários deverá ter anuência prévia da Agência Nacional da Mineração. Não é preciso dizer o quão negativa é essa medida, além de inconstitucional.
IHU On-Line – Por que a votação, que entrou na pauta do congresso em junho de 2013 e estava prevista para ser votada em regime de urgência, ainda não foi votada? Qual a relação do atraso com as eleições de outubro?
Carlos Bittencourt – O primeiro motivo foi que o regime de urgência foi um tiro que o governo deu no próprio pé, pois impôs um ritmo de debates absolutamente antidemocrático sobre um tema tão complexo. O surgimento do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração , trazendo uma nova perspectiva e proposta e fazendo uma crítica muito dura tanto à proposta do governo quanto à forma como ela estava sendo debatida, foi outro motivo. Um terceiro diz respeito à articulação das mineradoras, o relator da proposta e os setores mais conservadores da política brasileira. O encontro desses três campos de interesse acabou em um impasse que travou os debates e que pode ter definitivamente impedido que se vote em breve qualquer proposta. Obviamente que quanto mais as eleições se aproximam, mais se torna inviável votar qualquer coisa dessa magnitude. Tanto por conta das responsabilidades eleitorais dos parlamentares como por conta da instabilidade das relações políticas pré-eleitorais.
IHU On-Line – Como tem se dado a relação entre Estado, grupos econômicos e sociedade civil no debate do tema?
Carlos Bittencourt – Se dependesse do estado e dos grupos econômicos, a sociedade civil seria completamente excluída do debate. Assim o fizeram até que as próprias organizações da sociedade, especialmente o Comitê Nacional, entraram no debate sem bater na porta. Felizmente as organizações populares conseguiram se organizar e construir um plano comum de trabalho que já fez toda diferença até aqui.
A relação entre o estado e os grupos econômicos é íntima e infelizmente sustentada pela promíscua legislação eleitoral que permite o financiamento privado de campanhas. Uma pesquisa realizada pelo Ibase revela que as mineradoras têm um papel decisivo, ao lado das construtoras, no financiamento das campanhas eleitorais. Obviamente, quem paga a banda escolhe a música.
O símbolo dessa promiscuidade é o fato de um dos parlamentares que mais recebeu doações das empresas mineradoras, o deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), ser o relator do Código da Mineração. Embora o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Federal seja explícito em seu artigo 5º, inciso VIII:
Art. 5º – Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste Código:
VIII – relatar matéria submetida à apreciação da Câmara dos Deputados, de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral.
Apesar da regra ser absolutamente explícita, quando o Comitê Nacional entrou com uma representação pela retirada da relatoria das mãos do deputado que flagrantemente infringia a lei, o presidente da Câmara a arquivou. É importante explicitar que Henrique Alves , presidente daquela casa, teve uma campanha no valor de R$ 3,3 milhões. Ou seja, como a promiscuidade é generalizada, se naturaliza o delito em detrimento, inclusive, do cumprimento da lei.
IHU On-Line – Como o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração está articulando um diálogo em torno do tema junto ao Congresso?
Carlos Bittencourt – O Comitê esteve muito atento a este debate, mesmo antes de sua apresentação ao Congresso. Fizemos reuniões com o governo, parlamentares aliados, e os membros da comissão especial que debate o Código. Participamos da maioria das Audiências Públicas que debateram a matéria, inclusive em diversos estados do Brasil. Apresentamos emendas através dos parlamentares aliados.
Como os debates chegaram a um impasse, como foi dito acima, decidimos adotar uma nova estratégia. Acreditamos que a melhor forma de construir um debate verdadeiramente democrático, fruto do envolvimento do conjunto da sociedade brasileira, é a realização de uma Conferência Nacional da Mineração, desde os níveis municipais, passando pelos estaduais e em nível nacional, onde trabalhadores, comunidades e a cidadania em geral possam definir os rumos que o setor vai tomar.
Não acreditamos que o Congresso sozinho, ainda mais renovado sob as bases do financiamento privado de campanha, no qual certamente o papel dos financiamentos eleitorais feitos pelas mineradoras será novamente significativo, tenha condições de decidir em nome do conjunto da sociedade brasileira.
IHU On-Line – Esse intervalo, em que a lei não foi votada, está servindo para debater junto às comunidades impactadas a nova regulamentação?
Carlos Bittencourt – Bastante. Em maio, fizemos uma grande plenária em Brasília onde reunimos representações de todo o país, indígenas, quilombolas, atingidos pela mineração de norte a sul. O Comitê cresceu muito em tamanho e legitimidade graças ao processo de debates e formação política que construímos junto com as comunidades. O filme Enquanto o trem não passa foi fundamental para isso; além das mais de 28 mil visualizações na internet, fizemos mais de mil cópias para servir de material de formação política. Além disso, lançamos um boletim impresso de notícias que circulou por todo o país e no próximo mês sairá o segundo.
Na Plenária de maio decidimos lançar uma campanha nacional em defesa das águas frente à mineração. Este é o problema que mais aflige as comunidades que participam do Comitê. A mineração tem sido muito danosa para as águas do país. Tanto pelo consumo gigantesco — a mineração ultrapassou a indústria no número de outorgas de água na ANA — quanto pela poluição e inviabilização de águas superficiais.
IHU On-Line – Em que medida o Novo Código de Mineração a ser votado pode ser ainda mais negativo ao país que o Código Florestal?
Carlos Bittencourt – Os motivos que levaram, quase que concomitantemente, aos debates para reformulação do Código Florestal e do Código da Mineração são muito parecidos, apesar da diferença de conteúdo de ambos. A lógica que motivou interesses para modificação desses códigos é a tendência de fortalecimento do papel dos setores econômicos intensivos em recursos naturais. No caso do Código Florestal, o que estava em jogo era o aumento da fronteira agrícola, a ampliação da área do mercado de terras e, no caso do Código da Mineração, a ampliação da fronteira minerária, do acesso ao subsolo.
O Código da Mineração pode ser ainda mais pernicioso na medida em que os minérios são finitos e não renováveis. Depois que foram explorados e exportados, não vão se regenerar, não haverá uma segunda safra. No caso das florestas, caso tenhamos um governo e um parlamento menos dominado pelos ruralistas, podemos construir planos de reconstituição florestal, aumentando as áreas de preservação e fazendo ações de manejo.
Disponível em
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5634&secao=451