Mecanismos Estruturais da Injustiça Fiscal

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Um sistema fiscal justo é aquele que promove, tanto por meio da arrecadação de tributos quanto da aplicação dos recursos públicos, uma redução das desigualdades sociais. Tributar mais os ricos e menos os pobres e gastar mais com os pobres do que com os ricos é o requisito essencial para a concretização do princípio da solidariedade, previsto em diversos dispositivos da nossa Constituição Federal e que constitui um dos objetivos fundamentais da República.

Espera-se que o Estado, como institucionalização da sociedade, atue de forma efetiva na promoção do bem comum, e na atenuação das desigualdades econômicas, sociais e de oportunidades que são exacerbadas pela lógica privada e competitiva do mercado.

Em que pese ser absolutamente evidente que o sistema fiscal deveria ser instrumento de justiça fiscal, é também claro que ele tem funcionado de forma totalmente oposta. Ressalvadas as políticas sociais dos gastos públicos que nos últimos anos até conseguiu lograr uma diminuição localizada das desigualdades, o que se observa é que o sistema tributário tem se mantido com características exageradamente regressivas, ou seja, tem onerado pesadamente as classes mais pobres e de forma muito branda as classes mais ricas. Isso ocorre basicamente pelo fato de que a carga tributária sobre o consumo é muito alta (cerca de 60% da carga total) enquanto a carga tributária sobre a riqueza, o patrimônio e a renda é muito baixa (menos de 40%). 

Mas se há um certo consenso de que a tributação deveria ser progressiva, por que não é implementada? O que impede a efetivação da justiça fiscal? São estas questões que nos levam a analisar quais seriam os mecanismos estruturais da injustiça fiscal.

Dois elementos parecem saltar aos olhos quando se pensa num sistema tributário progressivo. O primeiro está relacionado com a arquitetura econômica e financeira global. O segundo, tem relação direta com a apropriação privada do sistema político.

A reengenharia produtiva e de negócios trazida pela globalização exerce um papel determinante na reorientação do sistema tributário na medida em que mitiga a soberania tributária dos países. A pulverização das unidades produtivas ao redor do mundo e a alocação das unidades de negócios, de marcas e de serviços em paraísos fiscais, impôs a necessidade de intensificação do comércio internacional. A maior parte dos fluxos de comércio ocorrem por dentro das companhias (mais de 60%), significando que os preços praticados são “preços de transferência” e não decorrem de operações de compra e venda. Com isso, as grandes multinacionais, conseguem promover a transferência de seus lucros produzidos para suas subsidiárias localizadas em paraísos fiscais, e reduzem deliberadamente, via comércio internacional, os tributos que deveria pagar nos países em que operam.

Este mecanismo internacional é amparado pela doutrina do livre comércio que tem imperado nos últimos tempos no cenário internacional e que tem condicionado as políticas públicas nacionais, como se fosse a única e inevitável forma para o crescimento econômico. Há que se estudar se efetivamente tal premissa se comprova, uma vez que os dados demonstram que, de 1990 até 2014, embora o comércio internacional brasileiro tenha crescido 9 vezes, o PIB per capita brasileiro cresceu apenas 1,4 vezes.

Por outro lado, é exatamente este mecanismo que tem sido responsável por uma parcela significativa da evasão fiscal, pressionando a carga tributária para baixo ou para o andar de baixo. O comércio internacional que decorre da globalização não é mais comércio em sua essência, mas simples transferências de mercadorias ou de insumos entre unidades de uma mesma corporação, o que atende, entre outros objetivos de ordem operacional, também ao objetivo corporativo empresarial cada vez mais relevante de planejamento tributário.

A globalização, como proposta de universalização da produção econômica esconde grandes contradições, na medida em que, se justifica, em parte, exatamente pelas enormes diferenças estruturais e conjunturais existentes entre os países. Fossem os países todos iguais, grande parte da motivação para a globalização deixaria de existir. São as diferenças em relação às legislações trabalhistas, ambientais, sociais, tributárias etc, que justificam a pulverização das unidades produtivas de uma mesma companhia por vários países. As diferenças de tratamentos tributários têm sido determinantes no processo de alocação dos recursos pelo mundo. Portanto, a globalização não sobreviveria num ambiente de globalização total, onde todas as legislações nacionais estivessem harmonizadas e o livre fluxo comercial e financeiro estivesse acompanhado do livre fluxo de pessoas.

O segundo elemento estrutural da injustiça fiscal está relacionado ao déficit de representação política das classes mais pobres do país. O financiamento privado das campanhas políticas cria inevitavelmente uma distorção da representação democrática, na medida que, no que se refere ao sistema tributário, os interesses dos financiadores de campanha são absolutamente opostos aos interesses da maioria da sociedade. Só isso já explicaria as razões por que o sistema tributário nacional permanece sendo regressivo apesar de a Constituição Federal estabelecer a necessidade da progressividade, do respeito à capacidade contributiva, do objetivo de construir um sistema pautado no princípio da solidariedade.

A apropriação privada da política acaba influenciando não apenas na configuração do sistema tributário que desonera e trata de forma generosa as classes mais abastadas, mas também na definição da estrutura de administração tributária que acaba concedendo, especialmente aos grandes contribuintes, inúmeros mecanismos facilitadores da evasão fiscal. Só para se ter uma ideia, um contribuinte que tenha sonegado seus tributos, se vier a ser descoberto pela fiscalização, terá à sua disposição, duas ou três instâncias de defesa na esfera administrativa, uma delas com participação de representantes de entidades classistas empresariais, e pelo menos três instâncias judiciais. Depois de todas as instâncias administrativas de recursos, se ainda ficar mantida a exigência, qualquer crime contra a ordem tributária que tenha sido cometido não será punido criminalmente se o contribuinte vier a pagar ou ingressar em algum parcelamento, destes “a perder de vista”. Este conjunto de privilégios concedidos ao sonegador é garantido por uma estrutura de administração tributária moldada justamente pelo sistema político.

Os mecanismos estruturais da injustiça fiscal, globalização desregulamentada de um lado, privatização do sistema político de outro, têm sido determinantes na pressão pelo deslocamento do peso da carga tributária justamente sobre as costas daqueles com menor capacidade econômica, ou para a redução do tamanho do Estado.

Todos sabemos que o caminho da justiça fiscal passa por uma maior tributação sobre renda e patrimônio e menor sobre o consumo, maior controle sobre os fluxos internacionais para evitar a erosão das bases de incidência promovida pelos mecanismos de transferência de lucros para paraísos fiscais, e o fortalecimento e instrumentalização das administrações tributárias e aduaneiras, para que sejam efetivas no combate à sonegação. Para que isso seja possível, é necessário neutralizar o peso que jogam os interesses privados sobre a política e sobre as instituições públicas com o aprofundamento e ampliação da participação da sociedade organizada nas lutas por um sistema fiscal mais justo para todos.


* Associado ao Instituto Justiça Fiscal – IJF

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