A memória, os super-ricos e a rejeição aos impostos – Parte 1

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por Maria Regina Paiva Duarte*

Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio tornou-se conhecido internacionalmente quando escreveu o belíssimo livro “As veias abertas da América Latina”, publicado há 50 anos atrás, no começo da década de 1970. Sem dúvida, um dos melhores dele, foi traduzido em várias línguas, com mais de dois milhões de exemplares vendidos, tornou-se um clássico e importante para entender o contexto de subdesenvolvimento lationamericano.

Mas sua obra literária não ficou reduzida e este livro, pelo contrário. Galeano nos deixou vasta produção literária, que comprova sua habilidade e qualidade na escrita de livros.

Um deles, “Memoria del Fuego”, aliás, uma trilogia, é um resgate da história da América Latina, em que ele a conta pela narrativa de fatos que foram ocorrendo ao longo dos séculos. Ao início de cada fragmento, o ano e lugar de cada acontecimento; ao final, números que indicam as fontes de informação e as referências. Sua intenção era fazer com que o leitor pudesse sentir que o fato estava novamente ocorrendo e a história fosse revisitada.

Ele mesmo admitia ter sido um péssimo estudante de história, provavelmente porque não conseguia entender os processos históricos que se pareciam a visitas a museus de cera, mudos, quietos. A história era traída nos textos acadêmicos, mentida nas aulas, adormecida nos discursos dos fatos mais notórios. Deveria ser aceita sem questionamentos, posto que já estava feita e enclausurada nos museus.

A expectativa de Galeano, ao escrever a trilogia “Memoria del Fuego” era devolver à história a respiração, a liberdade e a palavra, ou seja, dar-lhe vida e significado. Não era historiador, como ele próprio se definia, mas um escritor que queria contribuir para resgatar a memória sequestrada de toda América, especialmente a América Latina[1].

No primeiro volume, os mitos indígenas de fundação apresentam a época pré-colombiana e na sequência são relatados fatos até o século XVII. O segundo aborda os séculos XVIII e XIX e o terceiro, até os anos 1980 do século XX.

O último fragmento ou narrativa que o autor apresenta ocorreu em 1984 e ele mesmo não soube definir a razão, se foi porque havia terminado seu exílio, se havia terminado um ciclo, um século que findava ou mesmo porque assim o livro determinou.

Aprendemos nas escolas e nos livros que éramos incivilizados e bárbaros, indolentes também e, portanto, que era natural que gente mais evoluída viesse a este continente para trazer progresso e desenvolvimento.

Porém, à medida que vamos lendo os fragmentos, os pedaços de história narrados por Galeano, percebemos a luta e a resistência dos povos originários e dos próprios latino-americanos. Um sem número de invasões, saques, dominação e expropriação que foram enfrentados dentro das possibilidades que tinham os países, em condições muito inferiores ao dominador, o que nos trouxe a resultados que hoje conhecemos. Houve, sim, resistência, mas não foi possível conter a dominação e a exploração.

Vale lembrar que Colombo pisou numa ilha do arquipélago das Antilhas, atualmente das Bahamas, em 1492. Não que ele tenha descoberto a América, como aprendemos na escola, porque a ilha já estava habitada. Na condição de Vice-Rei e com a permissão da coroa espanhola, apoderou-se de tudo. Não encontrando ouro nem especiarias, decidiu escravizar a população não apenas desta ilha, mas de várias ilhas no mar do Caribe. Na ilha Hispaniola, hoje formada pelo Haiti e República Dominicana, ao final do século XVI, a população nativa estava quase extinta, morta ou escravizada pelos colonizadores, pois se recusava a ser dominada pelos colonizadores.

Em 1596, São Domingos foi cedido à França e após duzentos anos de muita exploração e violência, em 1791, ocorre forte rebelião dos escravos e negros libertos, inspirada nos ideais da revolução francesa, igualdade, liberdade e fraternidade.  Curiosamente, estes ideais valiam apenas para a França, pois a reação francesa não tardou a acontecer. Após as lutas pela independência, São Domingos passou a se chamar Haiti, em homenagem às populações indígenas que habitavam a região.  A revolução libertou os escravos, o que foi histórico à época, mas, infelizmente, considerando o histórico de dominação, não superou o passado escravista e de exploração da ilha, e hoje é um dos países mais pobres do mundo e assolado por terremotos.

Passados mais de quinhentos anos da “descoberta” da América, os países são independentes, mas a dominação continua, agora com um verniz diferente, afinal, a barbárie explícita não pode prosperar. Vale bloqueio econômico, por exemplo, em nome da democracia. Enviar navios de guerra e tropas são medidas de pacificação. Não seria por outro motivo, garantir paz e liberdade dos povos oprimidos é o que sinalizam as armas, não é mesmo? Também valem acordos bilaterais para países desiguais, muito bem redigidos, mas verdadeiras chantagens dos países em melhores condições. Vale contestação de eleições que desagradam no resultado, vale dar golpe travestido de impedimento legal.

Há um outro mecanismo de dominação que não pode ficar de fora, a evasão e elisão de impostos das megacorporações e dos super-ricos, que fragilizam e submetem os Estados nacionais. Mesmo na proposta de imposto global mínimo de 15% às multinacionais, defendida pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e endossada pelo grupo dos países do G20 em julho passado, países pobres como os da América Latina e Caribe, acabarão sendo preteridos na hora de repartir o valor arrecadado, reforçando ainda mais a dominação dos países mais desenvolvidos.

É o que nos alerta o economista peruano Luis Moreno, coordenador de justiça fiscal da Rede latino-americana por justicia económica y social (Latindadd), “embora o acordo tenha sido celebrado como “histórico”, a verdade é que uma taxa tão baixa apenas perpetua a história de sempre: uma grande desigualdade na distribuição de lucros, beneficiando somente os países desenvolvidos. É um acordo dos países do Norte para os países do Norte.”[2]

O percentual de 15% é insuficiente, pois a média global dos impostos sobre os lucros das empresas, em geral é maior que isso, acima de 25%. Além disso, o imposto arrecadado vai ser direcionado aos países sede das corporações, não onde efetivamente operam, em geral nos países em desenvolvimento. Ou seja, um acordo que beneficia quem já dita as regras, inclusive as tributárias, que são os países ricos.

O livro de Galeano termina em 1984, o último fragmento por ele narrado é desse ano. Como será que ele transformaria em fragmento a situação vivida no país desde o ano passado? É impossível saber, mas uma pista pode nos conduzir ao universo de Galeano: o apagamento da memória e o esquecimento da história.

O negacionismo do presidente e sua equipe em relação à pandemia da Covid-19 talvez tenha sido potencializada pelo seu negacionismo em relação à ditadura, alguns anos antes. Quem sabe nesse momento estaria começando uma espécie de apagamento da história e da nossa memória. Mais um apagamento, na verdade.

O presidente Jair Bolsonaro, ao longo do ano passado, fez várias declarações, enquanto o número de contaminados, doentes e mortes pela Covid-19, ia aumentando:

Está superdimensionado o poder destruidor desse vírus. Talvez esteja sendo potencializado até por questões econômicas”. Também disse, “é só uma gripezinha” e ainda, “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”.

Mas não parou aí. “Não sou coveiro”, “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, “País de maricas”, “Se tomar vacina e virar jacaré não tenho nada a ver com isso”, pois se manifestava contra a vacinação obrigatória[3].

Na estratégia escolhida de contaminação, o resultado não poderia ser diferente, mais de 570 mil mortos por Covid-19 em agosto de 2021. A isso vamos somar os milhares de desempregados, milhares em empregos precarizados, fechamento de pequenas e médias empresas, aumento da desigualdade e da concentração de renda, uma tragédia que não será apagada da nossa memória.

Nesta magnífica obra de Galeano, para a qual o autor não encontrou uma definição exata, se romance, ensaio, poesia épica, testemunho ou crônica, ele procurou resgatar a memória de um continente que foi impedido de ser por quem o dominou pela força.

Passados mais de quinhentos anos da nossa “descoberta” e ainda que as bandeiras das caravelas tenham se modificado, passando à inglesa e depois à norte-americana, continuamos como uma espécie de colônia, sob a dominação do capital e das pessoas e empresas detentoras deste capital, as chamadas “elites”.

Que os ventos de sua escrita possam soprar e arejar nossas mentes e, quem sabe, ajudar a virar as caravelas do neoliberalismo, da austeridade e da redução do Estado propulsor do bem comum.

* presidenta do Instituto Justiça Fiscal


[1] O autor descreve suas impressões em “Umbral” e “Este libro”, no primeiro volume da trilogia em Memoria del Fuego 1: los nacimientos – 1ª ed. 2ª reimp. – Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.

[2] https://aupa.com.br/imposto-minimo-global-de-15-so-beneficiaria-paises-desenvolvidos/

[3] (https://www.poder360.com.br/1-ano-de-covid-no-brasil/251-mil-mortes-por-covid-relembre-as-falas-de-bolsonaro-sobre-a-pandemia/)