Em entrevista ao Brasil de Fato, economista disse que o país precisa é de reformas na institucionalidade macroeconômica
Nesta entrevista exclusiva para o Brasil de Fato, Pedro Rossi fala sobre o seu estudo que aponta que o diagnóstico sobre a crise brasileira está errado e o remédio inadequado. Ele defende que o desequilíbrio fiscal não é culpa do gasto público, e sim do tripé macroeconômico dos últimos 20 anos que fracassou. “O que o Brasil precisa é de reformas na institucionalidade macroeconômica.”
Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Unicamp, trabalha com os aspectos macroeconômicos do desenvolvimento brasileiro, com os impactos sociais da política fiscal e com o tema da taxa de câmbio e da política cambial. Formado em economia na UFRJ, com mestrado e doutorado na Unicamp, é pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON) da Unicamp e coordenador do conselho editorial do Brasil Debate. É autor do livro “Taxa de Câmbio e Política Cambial no Brasil” e co-organizador do livro “Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil”.
Brasil de Fato RS – Em palestra recente em Porto Alegre falastes que o problema do Estado e da crise fiscal não seria o gasto público, mas que vem de uma política macroeconômica, como tu explica isso?
Pedro Rossi – Justamente, o problema fiscal brasileiro não vem do gasto público, não vem da previdência social, ele vem de outros determinantes. Isso é importante por quê? Porque essas reformas propostas usam como base um diagnóstico de que o problema brasileiro fiscal vem do gasto público, vem da previdência social que tem um espaço grande dentro do gasto público. Eu estou querendo mostrar com esse trabalho que há outros determinantes para evolução da dívida pública que não o gasto público, em particular o arranjo macroeconômico, ou seja, o chamado tripé macroeconômico.
BdFRS: O que é o tripé macroeconômico?
Pedro – O tripé macroeconômico está completando 20 anos. Ele foi instituído em 1999, depois da primeira fase do Plano Real que instituiu um regime de câmbio rígido no Brasil. O Plano Real controlou a inflação, teve esse êxito, esse mérito. Em 1999 tivemos uma crise cambial e a gente migrou para um regime macroeconômico que tem três partes, chamado de tripé: que é um regime de metas de inflação, um regime fiscal de metas de superávit primário, que recentemente foi agregada a meta do teto de gastos, e o regime de câmbio flutuante. Esses três regimes são geralmente muito comemorados no sentido de que eles dão estabilidade para o Brasil, mas eles não dão estabilidade ao Brasil.
E se a gente olhar para o resto do mundo, ou seja, fazer uma análise internacional, a gente vai ver que no Brasil nesses últimos 20 anos nós estamos na liderança de taxas de juros reais. Nós temos um patamar de inflação que não explica a nossa taxa de juros alta perto de outros países. Então nós fizemos um estudo e pegamos mais de 80 países, comparamos nos últimos 20 anos para verificar que o Brasil é fora da curva, a taxa de juros brasileira é fora da curva e não é a dívida pública que explica a taxa de juros. Se a gente pegar o serviço da dívida sobre e comparar com países que tem dívida pública mais ou menos igual a nossa, vemos que esses países pagam um serviço muito menor que o nosso. Ou seja, tem alguma coisa errada com o regime macroeconômico. Um patamar com a taxa de juros e também com a taxa de câmbio brasileira que é muito volátil, o real está sempre flutuando muito em relação ao dólar, muito mais que outras moedas. Nós também fizemos combinações internacionais e verificamos que sim, o real é campeão de volatilidade, isso dá problema, isso rebate no problema fiscal. Uma taxa de juros alta faz o Estado pagar muito pela sua dívida – problema fiscal, uma taxa de câmbio muito volátil faz o Estado usar a sua política cambial para tentar atenuar essa volatilidade, reservas cambiais que refletem com o pagamento de juros, que por sua vez são altos no Brasil.
Ou seja, as outras pernas do tripé contaminam o equilíbrio fiscal, e aí faz com que não conseguimos estabilizar a dívida pública. E por fim, nós fizemos um estudo e mostramos que os condicionantes da evolução da dívida pública no Brasil não são aqueles que geralmente são apontados, não é o gasto público. O que determina a evolução da dívida pública? É o crescimento econômico, se o crescimento for baixo a dívida tende a subir porque a relação dívida/PIB que é o determinante nesse indicador, e a taxa de juros, que geralmente puxa a dívida pública para cima.
O que aconteceu no Brasil recentemente? A gente vem pagando, principalmente em 2015/2016 um serviço da dívida maior e o crescimento tem contribuído muito menos para redução da dívida pública.
A dívida pública cresceu no Brasil recentemente não foi por causa do excesso de gastos sociais ou aposentadorias, foi principalmente por causa da queda do crescimento econômico e por causa de altos pagamentos de juros, em particular nos anos 2015/2016. Essa história que a culpa de tudo é do excesso de gastos é uma história falsa, para vender uma solução, que é uma solução que interessa a poucos. A história que o Brasil quebrou, que o Brasil vai quebrar, é mentira. Nenhum economista deveria falar algo tão absurdo, porque o Brasil é um país soberano, emite a sua própria moeda, ele tem dívidas na sua própria moeda, e o país não vai quebrar. O Estado administra os recursos da sociedade e pode organizar esses recursos da maneira que ele quer, assim como o Estado pode se endividar muito mais que uma família.
O Brasil quebrou na década de 1980 porque a gente devia em uma moeda estrangeira, a gente não emite dólar, o Estado brasileiro não organiza os recursos em dólar porque a sociedade brasileira trabalha com recursos na sua própria moeda. Então na década de 1980 nós quebramos porque a gente devida em moeda estrangeira. Fomos até o Fundo Monetário Internacional (FMI), pedimos dinheiro emprestado, o FMI veio, emprestou o dinheiro, isso no final da ditadura militar, fizemos uma moratória, nós atendemos as condicionalidades do FMI, fizemos o que eles queriam, preparamos nossa economia para conseguir dólar para poder pagar a dívida.
Cadê o FMI nesse momento? Não tem, porque a gente não precisa de empréstimos do FMI. Somos credores em dólar, nossa dívida não é em dólar, portanto nós não vamos quebrar, nossa dívida é em moeda nacional. Então é mentira a afirmação que diz que acabou o dinheiro, ou que o país vai quebrar. O governo tem dinheiro, ele organiza os recursos da sociedade, e o governo pode muito bem sim, fazer valer as aposentadorias, fazer valer o gasto social, o gasto com as universidades e organizando os recursos da sociedade. Taxando os mais ricos, eventualmente emitindo mais títulos nos momentos difíceis de crise. Ao recuperar o crescimento econômico ele pode estabilizar a sua dívida.
Então, essa retórica de que a culpa de tudo é do gasto público é uma retórica falsa. No fundo o Brasil tem problemas estruturais que estão por trás do sistema, que esses sim, são os verdadeiros problemas, por exemplo, uma taxa de juros estruturalmente alta, uma taxa de câmbio muito volátil, toda articulação que está por trás do tripé macroeconômico. Nós precisamos resolver esses problemas, são reformas realmente necessárias, porque o tamanho do Estado é a sociedade que define de acordo com os serviços que ela quer, e com os serviços que ela quer financiar coletivamente. Então é uma decisão da sociedade se organizar coletivamente e dizer: eu quero financiar saúde para todos, quero financiar educação para todos, eventualmente tem mais coisas, eu quero cultura, eu quero passe livre, e a sociedade discute democraticamente. Agora, dizer que o Estado não tem dinheiro é negar o processo democrático, porque o Estado tem dinheiro, o Estado organiza o dinheiro da sociedade.
A culpa não é do gasto público, ele está sendo demonizado para servir a interesses, se servir de diagnóstico para essas reformas que estão sendo implementadas, que cortam os gastos sociais e que cortam as aposentadorias.
BdFRS: E a que interesses servem essas versões mentirosas?
Pedro – Toda política fiscal influencia no processo distributivo e nas classes sociai. A política fiscal é de quem eu vou taxar, para quem eu vou gastar. Então se o Estado faz um gasto social ele está atendendo a demanda de uma parte da sociedade não de outra. Quando eu gasto com saúde no SUS eu estou atendendo a milhões de brasileiros de uma classe mais baixa; quando eu gasto com educação superior, são outros brasileiros que estão sendo atendidos. Assim que como eu tributo, estou tributando de um mais do que de outro. Então há interesses na sociedade brasileira que querem reduzir o papel do Estado no sentido do gasto público e no sentido, também, da sua tributação, no seu financiamento. São interesses que eu diria mesquinhos, de pessoas que não querem financiar o bem estar do outro, mesmo que esse outro seja um pobre, mesmo que esse outro seja um miserável, mesmo que esse outro não tenha acesso aos serviços básicos, e interesses maiores de setores econômicos que querem ocupar espaços que hoje o Estado ocupa. Hoje o Estado tem um papel fundamental no ensino superior, mas existem empresas privadas do ensino superior que querem ocupar esse espaço. A mesma coisa no sistema de saúde, existem planos de saúde que querem ocupar esse espaço, mesma coisa no sistema de educação básica, e por aí vai.
De certa maneira os serviços públicos concorrem com os serviços privados. Então esses serviços públicos estão interferindo em esferas de lucratividade do setor privado. Então há sim interesses maiores no sentido da redução do tamanho do Estado, da privatização dos seus serviços, que são interesses empresariais de grandes grupos econômicos.
BdFRS – E quais seriam, na tua opinião, as reformas estruturantes para garantir um Estado de bem-estar social?
Pedro – Na minha opinião, primeiro, a gente precisa de planos emergências de emprego e renda para recuperar o emprego no Brasil e recuperar renda, e isso implica em gastos públicos, isso implica em acabar com o teto de gastos (a Emenda Constitucional 95 que congela o gasto público por 20 anos). Então a gente precisa reformar o regime fiscal para retomar a liberdade do Estado em influenciar no ciclo econômico, precisamos mexer nisso.
E a gente precisa regulamentar o setor financeiro, reduzir a volatilidade cambial, isso vai exigir menos da política monetária no sentido de juros altos, porque hoje, se o Banco Central baixa muito os juros, o capital estrangeiro vai para fora, a taxa de câmbio se desvaloriza e isso gera inflação, o que é ruim para todo mundo, inclusive para o próprio governo.
Agora, a gente precisa regulamentar o sistema para ter menos especulação no país. O Brasil virou um lugar onde os rentistas e os especuladores têm grandes ganhos. E um mundo onde as taxas de juros estão rastejando próximas de zero. O Brasil é um país extremamente aberto ao rentismo internacional e à especulação. Então nós precisamos reformar sim a conta financeira, aplicar controles de capital, regulamentar o mercado derivativo, que é um locus dessa especulação, e precisamos de um Banco Central que não atue somente na relação com os bancos, mas que melhore a qualidade da dívida pública brasileira, a qualidade da dívida pública é muito ruim. Além dos juros ser altos, o Banco Central oferece títulos com alta liquidez e pós-fixado, ou seja, são títulos sem riscos de preço. Isso é uma característica específica do Brasil, a maioria dos países tem um percentual muito menor dos chamados títulos pós-fixados. No Brasil não, uma grande parte da dívida pública é pós-fixado, ou seja, é imune aos riscos de flutuação de preços.
As reformas que a gente precisa é para evitar que a economia brasileira sofra choques cambiais para desmobilizar aquilo que vai gerando inflação no Brasil, por exemplo, a indexação da economia, os contratos de aluguéis, outros contratos que pegam a inflação passada, jogam para o futuro. Aí sim a gente vai conseguir jogar nossas taxas de juros mais para baixo. Isso abre espaço fiscal e também uma discussão que precisávamos ter, e que o Instituto Justiça Fiscal faz muito bem, é pensar o que nós queremos financiar para o nosso estado de bem-estar social e de que maneira vamos financiar, com uma carga tributária, solidária, mais justa, porque o país hoje não tem justiça fiscal.
BdFRS – Esse é outro mito, que se paga muito imposto no Brasil. Quem paga muito imposto no Brasil?
Pedro – Tem um dado que mostra que os 10% mais pobres pagam em torno de metade de sua renda de imposto, os 10% mais ricos pagam em torno de 26%. Por que isso? Porque boa parte da carga tributária está sobre bens e serviços. Então as pessoas mais pobres pagam sobre esses bens o mesmo preço que uma pessoa mais rica, e proporcionalmente a sua renda é muito mais. O imposto de renda e de propriedade e o imposto sobre a riqueza é muito baixo no Brasil, e sobre a distribuição dos lucros do capital, dos lucros do dividendo, ou seja, a rentabilidade do capital é pouco taxada. O Brasil aproveita pouco o mecanismo distributivo que a carga tributária oferece, diferente de outros países. Então o Brasil é um país que distribui com gasto público, gasto social, principalmente, que está sendo atacado nesse momento, e concentra com uma carga tributária. E o que está sendo discutido hoje não vai no sentido de melhorar essa distribuição, pelo contrário, com a mão que o Estado dá, eu vou diminuir o gasto social, e a mão que o Estado tira vai se manter a mesma, ou com uma reforma tributária como a que está sendo apontada, que não mexe na tributação de renda e patrimônio no Brasil.
BdFRS – Como fazer esse debate sobre a reforma tributária com a população que não entende o economês?
Pedro – Eu acho que tem uma discussão que é relativamente simples. O que é justiça fiscal? A justiça fiscal ou a justiça tributária, por exemplo, a justiça tributária é, você tem que pagar proporcional ao quanto você ganha. Então se você ganha muito você tem que pagar muito, se você ganha pouco, você tem que pagar pouco. Isso é justo na nossa concepção. As pessoas com um mínimo de senso de solidariedade concordam com isso. Se eu ganho pouco eu tenho que pagar pouco, um cara que ganha muito tem que ganhar muito, e o que acontece no país não é isso, as pessoas que ganham muito, que estão lá no topo da distribuição de renda, pagam muito pouco.
A nossa carga tributária é injusta, ou seja, quem está financiando os gastos com saúde, educação, etc., não são os mais ricos, eles não estão financiando. Isso é um problema em termos de justiça fiscal e algo a ser corrigido. Então as pessoas têm que apontar o dedo e falar que está errado porque essas pessoas não estão pagando uma parte da conta. Porque a política fiscal é isso, nós temos educação e saúde básica é um acordo coletivo, que nós juntos, enquanto sociedade decidimos vamos todos nós financiar a educação da população brasileira, das crianças brasileiras, que esse é um princípio universal, que todos têm direito ao acesso à saúde e à educação.
Agora como a gente financia isso? Tem gente que não quer financiar, os mais ricos estão dizendo isso: eu não quero financiar. Aí se misturam todos os argumentos (que o Estado é corrupto, então o dinheiro vai para corrupção, os serviços públicos não funcionam…) para justificar uma redução do gasto social que no fundo prejudica os mais pobres. Quem é prejudicado com a redução do SUS? Quem é prejudicado com os cortes de recursos para educação? Mesmo no ensino superior que já se democratizou muito. Quem é prejudicado com a redução da assistência social, previdência? São os mais pobres, são os negros, são as mulheres. Então, nesse sentido é muito cruel essa face da política econômica que no fundo quer ajustar o Estado e promete crescer e gerar emprego, mas no fundo está reformando o Estado para atender a determinados interesses.
Edição: Marcelo Ferreira