De forma discreta, mas atuante, o economista Marcio Pochmann está no centro do debate político-econômico dos petistas. Desde dezembro de 2012, preside a Fundação Perseu Abramo, instituição do PT dedicada à reflexão e à formulação de propostas para o partido. Uma de suas tarefas é acompanhar um grupo de 30 economistas, cientistas políticos, acadêmicos e sindicalistas que se dedicam a observar a conjuntura e a formular propostas que podem ou não ser apresentadas – e talvez adotadas – pelo governo. Pochmann também participa de encontros no Instituto Lula. Diferentemente da maioria dos economistas desta série, ele não acredita que o Brasil está numa armadilha de baixo crescimento.
A entrevista é de Alexa Salomão e Ricardo Grimbaum, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 23-03-2014.
"Grande parte dos países no mundo precisa optar entre entrar em declínio ou em decadência. Nós discutimos se vamos crescer mais ou menos." Entre suas preocupações está aperfeiçoar o que chama de "composição do financiamento do Estado" – em outras palavras, mudar a estrutura tributária.
Eis a entrevista.
"Há folga para reduzir impostos em vários segmentos e a possibilidade de aumentar em outros que contribuem pouco", diz, na entrevista que segue.
Como o senhor está vendo a economia brasileira hoje?
Quero partir de uma crítica. Estamos diante de uma grande desintonia. De longa data, a economia política do Brasil segue sustentada em dois eixos de análises com argumentos para duas visões do Brasil. Um lado está vinculado a um pensamento liberal que remonta ao século 19 e foi representado no século 20 por Eugênio Gudin (economista Eugênio Gudin Filho, ex-ministro da Fazenda). Esse liberalismo foi sendo sofisticado e que temos hoje são seus representantes, que alguns chamam de neoliberais.
Como Eugenio Gudin, eles acreditam que parte da nossa força produtiva de base industrial era artificial e só sub existia porque o Brasil era uma economia fechada. Ao ser aberta, não resistiria. Também acreditavam que o nosso leito natural era a economia agrária, sustentada por alguns nichos de competitividade, um deles o financeiro. O outro eixo, temos a perspectivas dos herdeiros da visão desenvolvimentista, num debate que nos anos 40 e 50 contava com Roberto Simonsen (Roberto Cochrane Simonsen, engenheiro e economista), um industrialista e intelectual engajado. Hoje, ainda estamos ensanduichados por essas duas perspectivas de interpretação do Brasil. Sou crítico aos dois eixos. Não podemos voltar ao liberalismo puro e simples, a uma economia muito aberta, tão pouco dá para repetir o projeto nacional-desenvolvimentista de uma economia fechada. Ao meu modo de ver, estamos vivendo um momento singular da história do Brasil.
Ele não perceptível porque as lentes que leem a economia brasileira se voltam muito para o passado. Vou usar uma analogia. O sistema econômico mundial é como se fosse um rio que dá um sentido geral das coisas, mas está espremidos por margens. Em alguns momentos, porém, ocorrem cheias. Quando a água transborda das margens, formam novas vias e atalhos. É nesses momentos – e eu identificamos que estamos em um deles – que o Brasil se coloca de maneira mais ampla. Olhando a história, vamos identificar que houve dois outros momentos com essa sintonia. Entre 1873 e 1896, um período de depressão, mas, simultaneamente, de inovações, o Brasil fez uma série de mudanças que não foram bem entendias pelas visões tradicionais da época. São desse período a reforma política de 1881, a mudança de regime de governo de Império para República, a reforma laboral, que foi o fim da escravidãoem 1888, a nova constituição em 1989. Enfim, foram criadas as bases institucionais e materiais para que o País desse um salto e se colocasse no mundo como um grande produtor de café depois de um longo período de baixo dinamismo econômico. A partir daí, criou-se também a base para a industrialização, uma vez que ela ocorreu a partir do ciclo econômico da cafeicultura. O segundo momento, ocorreu a partir da crise de 1929 e entra pela década de 30.
O projeto urbano e social desse período propiciou que o Brasil montasse uma base industrial. Uma leitura dos jornais da época mostra os analistas achavam um absurdo muitas das decisões de Getúlio Vargas. O que se dizia era que Getúlio gastava demais, que errou ao desvalorizar câmbio. Passado o tempo, as pessoas reconheceram que aquele foi um ponto de ruptura. Estou dizendo tudo isso para exemplificar que, do meu ponto de vista, estamos diante dessa perspectiva. O Brasil tem hoje problemas de ordem conjuntural, mas novos elementos estruturais foram lançados que vão permitir que o País chegue ao final da segunda década do século 20 como o maior produtor mundial de alimentos, o quinto maior produtor de manufaturas, com uma democracia consolidada, com regularidade eleitora, liderando um novo conjunto de avanços sustentáveis. Estou dizendo isso com base em três elementos. O primeiro foi o reposicionamento do Brasil em relação ao mundo. O Brasil se afastou do guarda-chuva americano. Avançou numa articulação econômica com a Ásia, em particular com a China. É também um momento especial em termos de deslocamento do centro de dinâmico mundo – dos Estados Unidos para Ásia. Ainda vai ser preciso esperar que muita água passe debaixo dessa ponte, mas esse deslocamento é inegável.
Ao mesmo tempo, o Brasil mudou o seu centro comercial. Antes ele era concentrado nos países ricos agora tem uma perspectiva de incorporação para países mais fortes na América Latina e na Ásia. Abriu um novo horizonte. Não é nada simples, mas quero destacar que é um movimento novo no Brasil, graças a ação da diplomacia brasileira. Para uma série de países, o Brasil se coloca como uma nova postura – perdoa dívidas externas, oferece cooperação técnica, com a Embrapa, a Fiocruz e até com o Ipea que está lá na Venezuela. O Brasil tem uma postura de colaboração. Contribui com o desenvolvimento de outros países naquilo que ele sabe fazer. O País ainda criou um conjunto de corporações capazes de competir globalmente. Hoje 500 grandes corporações transnacionais respondem por 50% do PIB do mundo. Dois terços do comércio mundial é praticado intraempresas. Alguma coisa como 57% dos investimentos em novas tecnologias dependem dessas empresas. Ou seja: se você não tem grandes empresas, está fora do jogo. O Brasil tem um projeto de organização de corporações – e isso está provado na prática com capacidade para competir globalmente. O projeto chinês é ter 150 dessas 500 maiores empresas. O Brasil não pode ficar de fora.
O outro elemento importante desse reposicionamento do Brasil no mundo é nova articulação geo-político militar que está sendo construída. O Brasil tem uma das maiores fronteiras marítimas do mundo e não possui um sistema de defesa a altura. É um segundo País do em fronteira seca, com problemas seríssimos de segurança. Mas agora estão remontando as bases do Brasil também no que se refere a essa segurança. Precisamos ter aviões supersônicos e a compra de aviões depois de muito tempo vai nos possibilitar o domínio tecnológica para a produção numa área estratégica.
A mesma coisa ocorre em relação a submarinos nucleares. A articulação com a China também vai nos propiciar uma aproximação com a produção de satélites. Esse é o primeiro item: como o Brasil se posicionou em relação ao mundo. O segundo item é a mudança da estrutura social brasileira. O que está ocorrendo no Brasil é uma nova estratificação social. Tínhamos uma estrutura piramidal – seja qual for o critério utilizado, renda, educação, por exemplo. Isso está se alterando de uma maneira rápida. Essa estratificação social cria uma outra perspectiva em relação a população brasileira. É uma mudança de estratificação também do ponto de vista regional. Regiões que antes eram vistas como mais atrasadas, hoje tem um grau de dinamismo muito importante, que está estabelecendo um novo federalismo no Brasil. Essa estratificação social também traz pressões e está mudando a agenda política. No entanto, muitas instituições ainda não conseguiram a conectar a essa nova realidade. Tivemos 22 milhões de novos empregos gerados que os sindicatos não conseguiram captar do ponto de vista da sindicalização. Mais de um milhão de jovens entraram no ensino superior pelo Pró Uni e cerca de 1,2 milhão passaram a ter acesso pelo Fies, mas essa gente não se ligou a instituições estudantis. Quase 1,5 milhão de famílias humildes tem acesso a habitação, mas não se vinculou as associações de bairros. É uma nova estrutura e acredito que esses segmentos que estão ascendendo vão liderar o Brasil daqui a alguns anos.
O terceiro movimento diz respeito a reinvenção do mercado. Éramos uma das economias mais fechadas do mundo, com um grau de abertura de 3% do PIB. A partir da crise da dívida, nos anos 80, partimos para a liberalização generalizada, talvez sem critérios, que desestruturou um pouco nossa capacidade de produzir de forma mais adequada ao mercado interno. A lição que temos é: o Brasil pode crescer distribuindo. É importante destacar isso, porque ficou a ideia de que era preciso crescer para distribuir – houve uma inversão de prioridades. A ideia de distribuir para crescer nos abriu um outra oportunidade do ponto de vista do mercado. Há quase uma revolução na reestruturação empresarial com micro e pequenas empresas. O Simples, um novo regime de tributação, alavancou esse mercado.
Dos 22 milhões de empregos gerados nesses 12 anos, 72% vieram de micro e pequenas empresas. De cada 10 empregos gerados, nove são com carteira assinada. É verdade que, no grosso, são salários de até dois salários mínimos. Porém, se estivéssemos gerando empregos de 10 ou 15 salários mínimos para cima, esse segmento que emergiu não teria possibilidade de disputá-los por causa da baixa escolaridade. Há também 3 a 4 milhões de novo microempreendedores individuais que se formalizaram e passaram a ter novas oportunidades, seja por meio de compras governamentais, seja pelas licitações que incorporaram grande parte desse segmento. O Brasil que se coloca de outra maneira no mundo, alterou a sua estrutura social e remonta a sua economia em novas bases, com a participação das micro e pequenas empresas – sem que isso signifique que não tenhamos grandes empresas.
O senhor falou que o País se acostumou a ver a economia por duas óticas que não estão valendo, o neoliberalismo e o desenvolvimentismo. Mas o que se diz é que o governo Dilma se voltou para o desenvolvimento e que, de seis meses para cá, deu uma guinada mais ortodoxa do ponto de vista econômico – privatizou, está preocupado com o rebaixamento da nota de risco. Houve uma mudança na sua opinião?
Acredito que o governo da presidenta Dilma deu respostas ao movimento que ocorreu no mundo a partir de 2008. Foi criada uma perspectiva nos anos 90, sobretudo nos anos 2000, que o Estados Unidos era uma nação já meio decadente, que já não tinha muito a oferece, e agora o dinamismo do capitalismo viria da relação o Sul-Sul, principalmente dos Brics. O que vimos foi algo diferente. Após 2008, o Estados Unidos buscou uma reestruturação em novas bases e voltou a exercer a sua hegemonia. Os americanos fizeram agora algo muito parecido com a que fizeram anos 80, quando se dizia que ele seria sucedido pelo Japão. Após 2008, o governo Obama que buscou reindustrializalção. O programa para tirar o país da crise é muito agressivo em relação a questão do comércio, no realinhamento com a União Europeia, na tentativa de mudar o eixo da matriz energética com o xisto, que irá reduzir enormemente os custos de produção. O Estados Unidos está se recolocando no mundo. Os Brics, por sua vez, tiveram uma redução no ritmo de expansão. A China crescia 10%, 11%, mas agora cresce bem menos. Todos osBrics crescem menos. Não é um problema exclusivo do Brasil. Em parte, isso foi provocado pela reação da União Europeia e dos Estados Unidos que, para sair da crise, fizeram um acirramento comercial que afetou a todos e nos colocou questões novas. Para gerar crescimento, o capitalismo brasileiro, a meu modo de ver, deve combinar grandes blocos de investimentos com ciclos de consumos.
Tivermos um grande bloco de investimento nos anos 40 e 50 com a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Alcalis. Houve um esforço de investimento que permitiu um avanço para um ciclo de consumo. Depois tivemos um segundo bloco com o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. O terceiro grande bloco de investimentos, que altera a relação investimento PIB, se deu com o segundo PNB (II Plano Nacional de Desenvolvimento). De lá para cá, nunca mais tivemos um grande bloco de investimentos. A presidente, ao olhar a reação americana, viu que era preciso realinhar as bases internas para que o Brasil pudesse reagir. Viu que era preciso realinhar a estrutura comercial e produtiva. Foram feitas modificações que até dão a ideia de ruptura, mas que, na verdade, estão dando uma resposta à mudanças no contexto externo. O que se fez em 2011 e em 2012, foi uma reacomodação do crescimento e dos investimentos – apesar de o investimento ter crescido. Estamos começando agora a dar um novo horizonte, que será demarcado por um importante bloco de investimentos, inexoravelmente com a participação do setor privado. De 2003 para 2013, o investimento público aumentou muito. Mas ele por si só não sustenta um grande bloco de investimentos. A questão que se coloca para nós é: como envolver os setor privado para gerar esse grande bloco de investimentosque permita um novo ciclo de consumo?
Qual o papel do setor privado e do setor publico?
Como já disse, temos de parar de oscilar entre as duas ideia que, de um lado, o setor privado é algo bem melhor e que, por outro, o setor público é um problema. Precisamos de um modelo híbrido, uma combinação. O que for estratégico para o Brasil, mas que o setor privado não faz, fica para o Estado. A série de outras coisas que o setor privado faz – e faz melhor – devemos deixar para o setor privado. Infelizmente, as discussões sobre o papel do Estado ficaram muito contaminadas nos anos 90. Guardada das devidas proporções, o que vemos hoje é algum muito parecido com o que ocorreu durante o governo de Juscelino nos anos 50. Nós tínhamos a Fábrica Nacional de Motores. Era a única montadora brasileira de veículos. Uma estatal. Também tínhamos um setor energético, mas ele estava na mão no setor privado. Colocava energia para quem tinha dinheiro e quem não tinha ficava sem luz. Naquele momento pararam e pensaram qual era a estratégia para o Brasil: montar veículos ou ter energia? A resposta foi privatizar a CNM e estatizaram o setor elétrico. Estamos num momento parecido. Houve um mal entendimento sobre os aeroportos, por exemplo. Houve quem reclamasse: 'mas vamos dar os aeroportos para o setor privado?'E a gente respondia: 'mas é concessão, podem devolver em algum momento no futuro.' O que importa é apenas saber: mas se justifica, no inicio do seculo 21, um país se meter a fazer coisas que o setor privado faz bem? Não é melhor que o estado priorize outras coisas? O primeiro mandato do governo Dilma foi um enunciado da mudança que define como o Brasil se reconecta nos desafios que estão colocados agora.
O que se pode esperar do segundo mandato de Dilma?
Entendo que, assim como foi o segundo mandato de Lula, será muito mais exitoso do ponto da ousadia das decisões. Nós fizemos uma reforma administrativa que é pouco analisada – a invenção do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Hoje temos o chamado presidencialismo de coalização. Ele exige composições entre os partidos. Muitas vezes, essa coalizão – não apenas no governo federal, mas também nos governos estaduais – é mais pragmática. A capacidade de absorver recursos para investimentos é relativamente pequena frente aos recursos de custeio. Dentro disso, o PAC e uma inovação proporcional a feita por Juscelino nos anos 50. Juscelino introduzir a administração direta, pois a administração indireta criada por Getúlio já estava saturada. Mais tarde, o modelo foi consolidado nos governos militares. Depois de 1967, não tivemos nenhuma grande mudança administrativa para valer. O PAC estabeleceu uma outra forma de definir o que e prioridade, independentemente de quem seja o ministro ou o partido. Ali está definido o que e preciso fazer. O PAC define regras essenciais para estabelecer prioridades e recursos para a execução dessas prioridades. No inicio tivemos dificuldades porque o Estado sofre intervenções dos ministérios públicos, por exemplo, e por qualquer problema tem uma obra paralisada. Agora, porém, as concessões estão dando uma vitalidade. Como houve um aprendizado, nos segundo mandato teremos muito mais agilidade na execução de grandes obras. É preciso lembrar: obras não eram feitas no Brasil há décadas. Depois do segundo PND,que grandes obras foram feitas no Brasil? Não havia mais a cultura das grandes obras dentro do governo. Só coisas menores eram feitas. Em seu segundo governo, FHC (Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente) propôs o Avança Brasil, mas não conseguiu implementá-lo. Teve problemas com a execução e a falta de recursos. Mexer com a administração publica e uma coisa complexa – e é isso que estamos fazendo.
Qual seria a agenda de medidas do governo Dilma e um eventual segundo mandato?
É difícil dizer porque eu não participo do governo. Uma coisa é o governo. Outra coisa é o PT. Embora o PT tenha uma certa hegemonia, ele é a liderança de um conjunto de partidos e o governo expressa a correlação de forcas desse conjunto. Nem sempre o PT gosta das medidas adotadas pelo governo, mas o partido entende que foi necessário tomá-las no contexto da correlação de forças do conjunto. Posso falar do ponto de vista partidário. Posso falar em meu nome. Mas não posso falar pelo governo. Eu pessoalmente entendo que é preciso avançar na realização de reformas que possam modernizar o País para consolidar os avanços feitos nos últimos 10 anos. Depois de muito tempo, o Brasil conseguiu coadunar três elementos importantes: democracia, crescimento e distribuição de renda. De 1960 para cá, não havíamos conseguido isso.
Nos anos 60, tínhamos crescimento econômico, não tínhamos democracia e a distribuição de renda piorou. Éramos a 8ª economia do mundo, mas 50% da população vivia na pobreza. Nos anos 80 e 90, voltamos a ter democracia, mas não havia crescimento econômico e o que distribui. No ano 2000, passamos a 13ª economia, tínhamos desemprego e a pobreza persistia. Na ultima década, porém, tivemos crescimento econômico, regime democráticoe distribuição de renda. Para consolidar esse processo, precisamos de reformas em áreas como a tributação, por exemplo. O Estado se mostrou um ávido arrecadador de impostos principalmente da parcela mais pobre. Isso precisa mudar a meu modo de ver. Melhoramos muito o gasto publico – ele é mais progressivo. No entanto, ainda há muito o que fazer. Em relação a cultura, por exemplo. Onde estão os equipamentos públicos para a cultura? De cada 10 cidades, apenas uma tem cinema. Precisamos de museus. A população não quer só emprego e renda.
As manifestações pediram um conjunto de novas reformas, principalmente na área de serviços. Somos hoje uma sociedade de serviços, mas temos uma enorme deficiência na prestação desses serviços – sejam públicos ou privados. Quem aqui está feliz com os serviços de telefonia, com os serviços bancários ou com os de saúde privada? Mas também temos problemas sérios na saúde e na educação publicas. É necessário fazer uma reestruturação nessa sociedade de serviços e uma reconfiguração do papel do Estado nisso. Não podemos mais olhar o problema de forma individualizada – a educação cuida da ignorância do individuo, a saúde, do doente. É preciso uma ação mais articulada em toda a sociedade de serviços e também repensar como fica a indústria. Vamos continuar com a política de defesa dos setores industriais ou vamos ter uma política mais agressiva em determinados setores, olhando o mundo das cadeias globais de valor? Nós já estamos em todos os setores. Mas como queremos estar nesses setores? Como produtores de matérias-primas? Como mão-de-obra barata? Como produtor de tecnologia? Como distribuidores? Como montadores? São definições que precisam constar da política produtiva.
O senhor repetiu várias vezes que o Brasil agora tem crescimento econômico e que houve uma queda momentânea desse crescimento em função de uma queda no patamar global de crescimento. Mas é isso mesmo? A maior queixa em relação ao governo Dilma é que ele é marcado pelo baixo crescimento. Não há nada a melhorar internamente para fazer o País crescer?
Sim. Não há dúvida. O que verificamos de 2011 a 2012 foi a tentativa de criação de uma nova matriz que pudesse sustentar um novo ciclo de crescimento com a criação de um novo bloco de investimentos. Sem esse bloco de investimentos não vamos sustentar o ciclo de consumo – a não ser que houvesse uma expansão externa, que esta longe de ocorrer dado o quadro internacional. O investimento é o elemento chave para dar continuidade aos avanços alcançados até agora. O problema é que você não faz isso da noite para o dia. Leva um, dois anos para se reorganizar um País em que a indústria tem um peso menor. Como reconectar a ação do Estado ao setor privado? Como você atrai os grandes jogadores internacionais, que estão olhando o mundo todo e não só o Brasil? E como você atrai investidores dos setores que você acha mais importantes? Afinal, não é para atrair qualquer investimento. Vamos ser apenas um grande produtor de matérias primas? Mas isso não vai produzir um país desenvolvido. Como industrializar parte importante das cadeias produtivas para ter outra inserção nas cadeias globais de valor? Como manter aqui osetor automobilístico, que cresceu muito, e fazer dele uma experiência exitosa para outras áreas? São questões relevantes que precisam ser definidas.
Só para esclarecer: a nova matriz que o senhor mencionou é esta que inclui redução de juros e câmbio mais desvalorizado? O que é a nova matriz?
Tivemos uma grande mudança no País. Houve o reconhecimento de que gastávamos de 9% a 10% do PIB com juros. Agora gastamos 6%, 5% e até 4% dependendo do ano. Economizamos 5 pontos porcentuais. Uma parte desses 5 pontos porcentuais foi para o investimento e outra parte, para as transferências e os ganhos salariais. A renda do trabalho em 2002 representava 39% do PIB. Hoje representa 48% do PIB. É um aumento importante. Poucos países do mundo fizeram algo assim. Um trabalho da ONG Oxfam mostra que o mundo hoje vive um quadro de enorme desigualdades. Grande parte dos países no mundo precisa optar entre entrar em declínio ou em decadência mesmo. O Brasil não está nessa situação. Estamos discutindo se vamos crescer mais ou menos. O País precisa crescer mais, sim, mas o nosso horizonte não é igual ao da maioria dos países. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) divulgou um estudo mostrando que de 2008 para cá os países ricos destruíram 62 milhões de empregos. Nesse período, o Brasil aumentou o número de vagas em 11,5 milhões. O Brasil está em outra perspectiva. A redução do juros é uma opção do governo. Foi preciso subir um pouco no contexto de 2013, mas a trajetória é de queda. Em 1980, o Brasil gastava 1,8% do PIB com juros. Os países ricos gastam hoje cerca de 1%. Por que a gente precisa gastar mais de 5%? Alguma coisa está errada nisso e é preciso corrigir – até para que possamos ter mais folga para fazer os investimentos. Esse é um exemplo de que gastamos mal o dinheiro. Não é preciso gastar tanto com o sistema financeiro.
Só para esclarecer. Muita gente fala que o governo estabeleceu uma nova matriz econômica e que depois, quando viu as dificuldades ao longo desse caminho, voltou atrás. Na sua opinião, estamos em um período de transição e devemos dobrar a aposta nessa matriz. É isso?
Sim. Mas veja bem: uma coisa é o horizonte, a linha estrutural que se tem pela frente, a outra coisa é a conjuntura. Dependendo da situação é preciso fazer concessões. Nós estávamos reduzindo o juros desde o presidente Lula. ADilma acelerou esse processo em 2012 porque havia espaço. Depois, viu que foi em certa demasia e retraiu-se. Voltamos a aumentar os juros. Em parte, isso ocorreu por causa da inflação, mas muito mais porque houve o reconhecimento que não há autonomia para fazer política monetária. Depois do que ocorreu com o Fed (Federal Reserve, banco central americano) nos Estados Unidos em 1978, 1979, nenhum país no mundo faz política monetária de forma autônoma – talvez a China. Os sinais dados pelo Federal Reserve desde o ano passado fez com que praticamente todos os países elevassem a taxa de juros – e nós tivemos que elevar também.
Além do juros o que mais faz parte da nova matriz?
A composição do financiamento do Estado.
Você pode detalhar melhor?
Há uma série de estudos que mostram que a base tributária do Brasil é assentada sobre o consumo, e em determinados setores produtivos. O Brasil precisa rever esse elemento de competitividade e, ao mesmo tempo, a discrepância que representa alguns setores pagarem muito mais impostos que outros. Não é justificável.
Mas quem teria de pagar menos e quem teria de pagar mais imposto daqui para frente?
A experiência internacional mostra que a uma estrutura tributária pode ser progressiva, proporcional ou regressiva. Regressiva é quando os pobres pagam mais que os ricos. Proporcional e quando ela é imune às forças de mercado. Na progressiva, quem tem mais renda paga mais impostos. A impressão que eu tenho no Brasil, olhando os dados, é que a cobrança sobre as rendas da propriedade é relativamente pequena. Temos que olhar para isso. Há folga para reduzir impostos para vários segmentos e a possibilidade de aumentar para outros segmentos que contribuem pouco. Olhando em termos internacionais, não há nenhuma radicalidade em considerar isso.
O Senhor pode detalhar mais? Esse é um ponto novo. Não ouvimos isso em outras entrevistas.
Só estou falando…
….falando em seu nome e das instituições que representa aqui. Está claro?
Isso. No Brasil hoje, estamos em uma economia que cada vez mais se desmaterializa. Cerca de 72% dos empregosno Brasil hoje estão vinculados ao setor de serviços. Trata-se de um trabalho imaterial, intangível. Avançamos cada vez mais numa economia baseada no simbólico. Mas essa parte quase não é tributada no Brasil – e no mundo, diga-se passagem. Mas é necessário olhar isso melhor. Se olharmos a estrutura tributária brasileira vamos ver IPI, o ICMSuma enorme quantidade fiscais para acompanhar as cobranças. Há um peso enorme para se fazer a cobrança dos impostos. Qual o custo de cada imposto cobrado? Qual é o sistema tributário contemporâneo a nova realidade do Brasil? Qual o sistema vai reduzir o custo da tributação e também permitir uma redução na tributação?
O senhor podia dar mais detalhes?
Vamos pegar esse telefone. De 85% a 95% do preço é trabalho imaterial. É logística, design, marketing. A parte material é uma parcela menor do custo. No entanto, estamos concentrados em tributar o tangível. Nós mesmos estamos trabalhando aqui (na Fundação Perseu Abramo) no que seria o financiamento – um fundo público – a partir dessa economia desmaterializada.
O senhor poderia pontuar alguns setores?
De maneira geral, os proprietários, que têm propriedade e pagam pouco tributo no Brasil, seja qual for a tributação que se olhe. Em relação aos setores, há um problema. Nós ainda não temos muita clareza em como apresentar o setor em si porque viemos do método Colin-Clark (economista australiano Colin Grant Clark), lá dos anos 30, que dividiu a economia em setores primário, secundário e terciário. O primário é a agricultura e a pecuária. É fácil de medir. O secundário e a indústria e a construção civil. O terciário é tudo que não couber nesses dois. É uma coisa pouco conhecida e pouco trabalhada. E até vou te adiantar: acredito que o nosso PIB está subdimensionado. O crescimento deve ser muito maior. Há vários sinais. Basta olhar o emprego, a arrecadação, os valores agregados, a dinâmica econômica das contas nacionais. Toda vez que há uma inovação nas contas nacionais, que você tenta medir o peso dos serviços, você vê que a economia e a riqueza são maiores. Qual é o peso, por exemplo, da cultura? Então, tenho dificuldades de dar como exemplo esse ou aquele setor.
Banco é um exemplo?
O banco é intermediário. Pega e distribui. Evidentemente, tem a questão do patrimônio, mas não dá para simbolizar em um segmento. Precisamos olhar melhor a questão dos serviços. Quando eu estava no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) começamos a fazer um esforço com a Receita Federal, inclusive, para poder entender as novas formas de riquezas.
E vai mesmo aumentar de um lado e reduzir do outro? Porque na história recente do Brasil, o peso da tributação só aumenta.
E é claro que reduzimos os impostos. No regime militar o imposto de renda era maior. Em 1980, o imposto de renda era de 50% e caiu para 27%. Tivemos uma desoneração de R$ 70 bilhões.
Mas carga tributária só aumentou…
A carga bruta aumentou, mas a carga líquida está praticamente congelada. A carga tributária líquida é praticamente a mesma desde 1980. Uma coisa é a carga tributária, em que você pega tudo quanto foi arrecadado e compara com o PIB. É uma maneira de ver. A outra coisa é a carga tributária líquida em que você olha tudo que entra e que sai imediatamente – como os subsídios, as subvenções. Os que declaram imposto de renda, por exemplo, deixam de pagar de R$ 12 bilhões a R$ 14 bilhões descontando as prestações da saúde privada. O Brasil é um dos poucos países do mundo que financia a saúde pública e a saúde privada. Que financia a educação pública e a educaçãoprivada. Sim. Nós fazemos isso. Ninguém gosta de pagar imposto. Estou dando um exemplo concreto. Uma coisa é você calcular a carga tributária bruta – que está em 35% ou 37% dependendo da contabilidade. Ela não é baixa. Mas quando você tira o que sai – o que paga de juros, a previdência – vê que o Estado tem efetivamente para gastar algo em torno de 18% a 19% do PIB.
Qual o objetivo de aumentar a carga tributária bruta? Para que o Estado tenha mais margem para gastar? Para distribuir renda?
O Brasil ainda é brutalmente desigual. Nos anos 80, éramos o terceiro em desigualdade. Hoje estamos entre os 15 e ainda temos que reduzir mais. A gente fala hoje com uma certa normalidade sobre o tema, mas não é fácil reduzir desigualdade numa sociedade que se construiu sobre a desigualdade. As tensões estão ai. Há um certo desconformo no ar. Muita gente não aceita compartilhar determinados espaços com outras pessoas – seja no ensino superior, dentro de um avião, num restaurante. É uma mudança cultural que estamos fazemos com tensões. À medida que formos quebrando preconceitos de um herança vamos ter espaço para crescer. O fundo público é importante neste sentido. Mas não acredito que vamos aumentar a carga tributária. É desnecessária na medida em que seja possível trabalhar melhor com as isenções, as desonerações e os gastos inapropriados – como mostrou a questão financeira. Não é preciso gastar com juros. Mas é preciso criar as condições para isso ocorra. Aqui dentro doPT tinha muita gente que discutia: "ahhhh, mas tem que reduzir a taxa de juros". O PT amadureceu muito. Aprendeu com as derrotas nos movimentos de reforma. Vamos lembrar que a há 50 anos havia o plano das reformas de base – e ele foi derrotado. Há 30 anos houve o movimento Esperança e Mudança do antigo MDB, hoje PMDB, um dos melhores documentos já escritos sobre o Brasil, com uma série de reformas, como a reforma política e a reforma tributária – e ele foi derrotado. As reformas vão saindo, com o diálogo natural da democracia. As vezes são mal entendidas, as vezes bem entendidas. É da natureza da discussão. O fato é que o Brasil está maduro para fazer mudanças do ponto de vista democrático. Não é simples fazer isso, mas o País está maduro. O PT tem demonstrado isso. Nem sempre somos bem entendidos. Mas estamos aprendendo – o que é um sinal de dinamismo partidário.
Os senhor mesmo falou que o crescimento pelo consumo perdeu força e que seria preciso fomentar os investimentos. Mas como fazer isso levando em conta que um dos pontos criticados no governo Dilma é a relação conflituosa com o empresariado ou com a sensação que o empresariado tem de ter uma relação conflituosa? De onde viria o crescimento em eventual segundo mandato de Dilma?
Essa desintonia – vamos dizer assim – depende a bagagem de cada um. Se eu sou empresário, quero que o meu mercado seja protegido e o governo não protege, eu reclamo. Outro quer o mercado totalmente aberto. Outro quer uma taxa de câmbio de R$ 3,05. O governo é maduro para tomar decisões graduais. A receita é muito clara. O governo federal – nos dois mandatos do governo Lula e no primeiro mandato de Dilma – deu sinais claros de que não vai abandonar o sentido de distribuir para crescer. O distributivismo está presente. Poderíamos crescer de outra maneira. Poderíamos cortar mais rapidamente a inflação promovendo o desemprego. Mas essa não é a opção deste governo. Isto não será feita e isso gera desconfortos, o que é natural. Mas também está claro que as bases da distribuição para crescer passam pelo investimento. Se você conversar com qualquer empresário, ele vai reclamar. Mas se perguntar se ele ainda vai investir, ele responde que vai investir. Os investidores sabem que este País – a quarta democracia do mundo, com 210 milhões de habitantes, com um nível de renda cada vez maior – representa lucros. As pessoas falam mal, mas não abandonaram o País.
Mas o investimento está por volta de 18% (em relação ao PIB)?
Sim e é muito baixo. Mas há quanto tempo é assim? Tem uns 30 anos. Para melhor isso, não vou falar de nada de novo. Tem a questão da infraestrutura. Ela é muito ruim. Nós tivemos a ideia das concessões de aeroportos, portos,usinas hidrelétricas. Elas demandam investimentos pesados, que demoram para dar resultado. A outra infraestrutura que demanda investimentos é a infraestrutura das cidades. As cidades têm problemas seríssimos de mobilidade, de convivência, de falta de espaços públicos. As cidades vão demandar recursos públicos, mas um volume muito maior de recursos privados. O outro eixo está vinculado ao petróleo e ao gás. É gigantesco. A Petrobras é quarta ou quinta empresa do mundo. Se concretizarem todos os investimentos previstos, o petróleo, que hoje representa algo entre 10% e 11% do PIB, vai para 21%, 22% do PIB, gerando um efeito de arrasto enorme. Temos ainda o investimento que criado pelo combate à desigualdade. Quantas casas devem ser construídas para garantir acomodidade social e familiar? Quantas novas cidades são necessárias para atender a demanda do País, uma vez que centros urbanos estão saturados e estamos vivendo uma transição demográfica da maior importância? O processo de envelhecimento, o aumento da longevidade, a mudança na estrutura das famílias – tudo isso influencia.
Qual será o papel do BNDES? Quando se fala em investimento privado, o que se espera é que o dinheiro também seja privado. No entanto, o grande financiador hoje no Brasil é o BNDES. Vocês imaginam uma diversificação das fontes de financiamento ou a preservação o papel do BNDES?
A atual gestão do BNDES é mais um elemento que comprava a mudança substancial em relação ao que vinha sendo feito. O BNDES era o grande banco de financiamento da privatização. Tornou-se o grande banco de financiamento da produção e da estrutura empresarial brasileira. É um sucesso em determinados setores e vem fazendo um esforço grande para envolver pequenas empresas. Eu entendo que o BNDES não pode abandonar o movimento que fez. No entanto, particularmente, eu acho que seria importante o Brasil ter um banco voltado às pequenas empresas, como há no Japão. É preciso considerar a pequena e a média empresa de maneira mais estratégica. Mas tenho minhas dúvidas se o BNDES, uma grande instituição, consegue assumir esse papel, uma vez que a concessão de crédito para micro e pequenas empresas segue outra dinâmica de funcionamento. Também vejo a necessidade de se estruturar um banco para as exportações. É uma lacuna que não foi preenchida. O país também deveria ter um banco para a agricultura.
Qual o papel da fundação? Como são as discussões de economia aqui? A fundação formula proposta para o PT?
Temos um grupo com cerca de 30 pessoas – economistas, cientistas políticos, acadêmicos de universidades, gente de sindicatos – para debater conjuntura. Geralmente a economia, a política e a questão social são as que puxam as discussões. É um grupo fixo. Fazemos debates amplos. Com parlamentares, com a direção do PT, com diretórios. Temos uma boa capilaridade. No ano passado, o PT foi o único partido que fez a eleição direta para a escolha de seus dirigentes. Cerca de meio milhão de pessoas votaram e elegeram 88 mil dirigentes partidários. Há uma grande sinergia com a estrutura do partido e é importante a discussão de temas além do debate eleitoral. Aqui não trabalhamos a coisa eleitoral, porque a estrutura da fundação vai além disso. É claro que num ano eleitoral a gente até faz acompanhamento de pesquisas, mas a nossa discussão é mais estrutural, acompanhando a conjuntura.
Como o senhor está vendo o cenário eleitoral?
Serão 29 anos de regime democrático. Temos que comemorar. Mas vejo com preocupação o fato de não termos feito uma reforma político-eleitoral. Nossa eleição é permeada de vários vícios que precisam ser combatidos – a estrutura de financiamento, a forma de representação, a estrutura dos partidos. Em 2014 teremos melhores possibilidades que tivermos em 2010, tanto no plano federal, quanto no estadual. Vai ser uma eleição bem mais competitiva. Mas o PTterá candidaturas em estados que não teve em 2010 – pelo menos essa é a perspectiva. A ver.