Há um nexo causal entre o contínuo processo de desindustrialização brasileiro, a concessão de incentivos fiscais à indústria automotiva e o sistema tributário perverso vigente no país, que estimula pobreza
Publicado em jornal GGN
No final de 2020 o governo da Argentina aprovou a criação de um imposto extraordinário sobre grandes fortunas (IGF), que incidirá sobre patrimônios superiores ao equivalente a R$ 12 milhões. A estimativa é que o tributo seja pago por apenas 12 mil argentinos.
No dia 11 de janeiro de 2021, a Ford, após 100 anos produzindo veículos no Brasil, anunciou a decisão de encerrar as operações de manufatura no país. Durante 2021 as plantas de Camaçari (BA), Taubaté (SP) e Troller (Horizonte – CE) serão fechadas e milhares de empregados diretos e indiretos, e suas famílias, perderão sua principal fonte de renda.
Qual seria a ligação entre esses dois fatos, que, aparentemente, não possuem qualquer relação? É o que este artigo pretende demonstrar. Há um nexo causal entre o contínuo processo de desindustrialização brasileiro, a concessão de incentivos fiscais à indústria automotiva e o sistema tributário perverso vigente no país, que estimula pobreza, multiplica a riqueza de poucos indivíduos e aumenta o suposto Custo Brasil para as empresas.
A Relação entre Desindustrialização e Incentivos Fiscais
Até 1990 o Brasil era guiado por uma política de industrialização por substituição das importações. Políticas protecionistas tinham o objetivo de estimular o mercado interno e o crescimento do parque industrial local. Com a eleição de Fernando Collor, em meio à onda de liberalização, tudo mudou rapidamente. Collor aderiu rigorosamente aos princípios do Consenso de Washington, que incluíam o livre comércio e a redução de tarifas como políticas para o rápido desenvolvimento econômico. Como resultado, em 1990, o país implementou drásticas reduções tarifárias unilaterais. Dix-Carneiro e Kovak (2017) analisaram os 25 anos subsequentes à abertura do mercado brasileiro e concluíram que as reduções tarifárias diminuíram a quantidade de empregos e os salários do setor formal. Segundo o estudo, isolando fatores externos como o boom das comodities e a variação cambial, houve claramente o chamado “race to the bottom” no setor industrial, afetando várias regiões onde estavam instaladas.
A abertura comercial sem critérios e feita de forma acelerada é considerada uma das principais razões para o declínio da industrialização no Brasil. Em 1990, as atividades industriais correspondiam a aproximadamente 20% do PIB. Em 2018, o percentual já havia caído para 11% (Bresser-Pereira, 2019).
Outras políticas governamentais, como privatizações de setores estratégicos, desregulamentação e financeirização da economia, também causaram desindustrialização. Progressivamente, o País foi focando cada vez mais no que tinha em abundância: exploração de recursos naturais e agricultura. O problema é que tais atividades geram pouco emprego, são mal remuneradas e ambientalmente destrutivas. Ou seja, o processo iniciado em 1990 gerou uma dependência de longo prazo do qual o país não conseguiu escapar. De acordo com estatísticas oficiais, os sete principais produtos exportados em 2019 foram: soja, óleo, minério de ferro, celulose, milho, carne e frango (Fazcomex, 2019). A produção de soja aumentou de 26 milhões para 260 milhões de toneladas em um período de dez anos e, junto com a limpeza da pastagem, é hoje uma das principais razões para a degradação ambiental na Amazônia e no Cerrado (FSE, 2020).
Após o governo de Collor, já com a desindustrialização em marcha, o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) estimulou abertamente uma guerra fiscal entre os estados para atrair atividades industriais e reverter o quadro. FHC foi crucial para a instalação de indústrias automotivas nos estados governados por seus aliados, tais como o Rio de Janeiro de seu correligionário Marcello Alencar. O sul fluminense havia sido severamente afetado pelas privatizações de empresas como a CSN (Volta Redonda) e a Light (Piraí). A solução vislumbrada foi a atração de indústrias como a Volkswagen e a Peugeot-Citroen, num processo que beneficiou particularmente empresários e políticos locais, donos das terras onde as empresas se instalaram (Pereira, 2008).
No caso da Ford, o então governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, se opôs à concessão de incentivos, fazendo com que a nova planta da empresa fosse construída na Bahia, terra de Antônio Carlos Magalhães, aliado de FHC. Olívio e sua equipe, muito criticados à época, entendiam que não seriam os incentivos fiscais que segurariam o investimento de empresas no País, uma vez que num mundo globalizado de capitalismo predatório empresas poderiam ir e vir ao seu bel prazer.
Os dados do Rio de Janeiro mostram que Olívio Dutra estava certo. O crescimento da economia fluminense entre 1992 e 2011 é creditado quase que exclusivamente à indústria extrativa, de petróleo e gás, e não à indústria automotiva (Campelo, Lima e Notini, 2012; Silva Neto, 2006). Em relação aos incentivos concedidos à indústria automotiva, o ex-prefeito de Resende, Eduardo Mehoas (1997-2004) afirmou o seguinte: “são 15 anos de isenção de impostos municipais, mais 75% do ICMS devido ao estado, além de R$ 15 milhões de investimentos diretos do governo do estado. Para quê? Apenas três mil empregos diretos, sendo que a maioria das empresas consorciadas não tem sequer sede no município. Isso acabou gerando a atração de aproximadamente trinta mil pessoas para a cidade, ampliando o número de desempregados na região” (Oliveira, 2008, p. 245).
A análise histórica é importante para contextualizar a decisão da Ford, que faz parte de um longo processo de desindustrialização, que não pôde ser freado por medidas temporárias e danosas para a sociedade, como a concessão de incentivos tributários.
Ora, se tributos são usualmente citados como uma das razões para empresas saírem do Brasil e sua redução temporária não é suficiente para garantir a perpetuação de investimentos e empregos, qual então seria a solução?
Custo Brasil: a Relação entre a Decisão da FORD e o IGF
O suposto Custo Brasil, alardeado como eterno vilão que impossibilitaria a captação de investimentos produtivos e geração de empregos, tem vários componentes. Os mais citados seriam os custos trabalhistas e, principalmente, os tributários. Sob o argumento de reduzir tais custos, reformas foram aprovadas (trabalhista e previdenciária) ou estão prestes a ser aprovadas (a tributária). No entanto, as reformas citadas tiveram e terão nenhum impacto na redução do Custo Brasil.
A Ford estava há 100 anos no Brasil, viu nascer os direitos trabalhistas com a CLT e conviveu com tais direitos e sindicatos até 2017, quando foi aprovada a reforma trabalhista, apenas poucos anos após o País ter atingido o pleno emprego sem revogação de direitos dos trabalhadores. Se a Ford reduziu ou não a sua folha salarial em decorrência da reforma trabalhista é irrelevante, pois a reforma precarizou as relações de emprego em todo o País e criou uma legião de subempregados, sem renda e garantia para, por exemplo, comprar veículos, diminuindo seu mercado consumidor interno.
Em relação à questão tributária, o caminho escolhido pelo Brasil é ainda mais preocupante. Há unanimidade de que a carga tributária sobre bens produzidos no Brasil é alta e complexa. Cada venda de veículo pela Ford no mercado interno é sujeita ao pagamento ICMS, IPI, PIS e COFINS, tributos que incidem em cascata e encarecem o produto. Só que, a redução do Custo Brasil depende de medidas que enfrentem o sistema tributário altamente regressivo, em que as classes mais altas pagam muito pouco tributo e os mais pobres destinam seus escassos rendimentos ao pagamento de impostos embutidos nos preços das mercadorias e serviços que consomem, fazendo com que sejam excluídos do mercado de consumo de bens duráveis, como veículos.
Após a decisão da Ford, notícias compararam o preço do veículo produzido nos Estados Unidos com aquele vendido no Brasil e justificaram a diferença na carga tributária. Convenientemente, só esqueceram de mostrar ao consumidor que pagamos mais pelo automóvel porque não tributamos nossa elite.
A complexa tributação incidente sobre bens e serviços produzidos pelas empresas apenas é necessária porque a elite brasileira não admite ser tributada como seus pares estrangeiros. Qualquer proposta que busque maior justiça tributária, seja ela a criação do IGF, a tributação de dividendos, o aumento da progressividade no imposto de renda, o aumento da base e das alíquotas da tributação sobre herança, a tributação de aeronaves e iates, o aumento do IPTU e o fim de privilégios concedidos a determinados profissionais de elite, como o ISS uniprofissional, é logo contestada por um batalhão sócios de escritórios/ professores de Direito Tributário. Usam e abusam do Direito para justificar, por exemplo, que um advogado que receba exatamente a mesma quantia que um faxineiro pague muito menos tributos sobre o mesmo rendimento. Seguindo à risca a estratégia do grande jurista e juiz da Suprema Corte americana, Lewis Powell, conquistaram concomitantemente a academia e os principais cargos jurídico/empresariais para perpetuar uma ideologia de dominância da elite (Powell, 1971). Reproduzem no Brasil, na área jurídica, o casamento que ocorreu nos Estados Unidos na área financeira e ajudou a gerar a crise mundial do subprime em 2008 (vejam o documentário vencedor do Oscar Inside Job, disponível na Netflix).
A grande questão é que passa despercebido que juristas que prestam ao mesmo tempo consultoria tributária para empresas e para indivíduos/famílias, causam um nó estrutural. Ao sempre contestarem a tributação sobre indivíduos, impedem a redução dos tributos sobre produtos e a atividade empresarial. Fornecem subsídios jurídicos para opiniões como a exarada recentemente pelo Ministro da Fazenda, Paulo Guedes, que se posicionou contrariamente ao IGF alegando que o tributo poderia gerar fuga de capitais, perda de novos investimentos e, consequentemente, mais desemprego. O Ministro simplesmente reproduziu a batida tática de usar infundadas greves de investimento para evitar mudanças tributárias que cobrem tributos da elite (Charles Lindblom, 1977; Bell e Hindmoor, 2014), mas no Brasil há sempre um argumento legal para acompanhar a perpetuação da injustiça tributária.
Não é que a elite não seja ciente das suas regalias tributárias. Conhece seus privilégios, mas atribui apenas ao Estado a responsabilidade pela diminuição da desigualdade e não admite que a solução venha por meio de alterações na carga tributária (Scalon, 2007, pp. 146, 147). É um problema sociológico brasileiro que serviu de alicerce para construir a narrativa de economistas e juristas de que bastará a simplificação e unificação de tributos para melhorar o ambiente de negócios no Brasil, uma clara falácia, simplesmente porque a conta não fecha.
Existem propostas que de fato reduziriam o Custo Brasil e modernizariam o sistema, como aquelas constantes na campanha “Tributar os Super-ricos para Reconstruir o País”. Entre elas, a proposta para a criação do IGF para indivíduos com patrimônio acima de R$ 10 milhões. A estimativa de arrecadação é de R$ 40 bilhões por ano e o novo imposto atingiria apenas 59 mil pessoas, ou seja, 0.028% da população. Como na Argentina, seria um imposto cobrado apenas dos realmente ricos, o que difere do modelo praticado na Europa, de base mais universal. Assim, no Brasil e na Argentina, muito mais que na Europa, o IGF teria condições de atingir a sua real finalidade, que é a de reduzir desigualdades.
E aí vem a pergunta fundamental: o que o IGF e a tributação sobre a renda e patrimônio têm a ver com reduzir o Custo Brasil? Vamos à resposta: o governo sempre precisa de receita e a carga tributária brasileira, aproximadamente, 34% do PIB, é considerada adequada às necessidades do País. Se o governo não pode cobrar dos indivíduos, cobra das empresas, num ciclo perverso de perpetuação estrutural do Custo Brasil.
É emblemático que a Ford tenha escolhido sair do Brasil e investir US$ 580 milhões na Argentina, onde manterá sua atividade industrial. Nossos vizinhos são governados por Alberto Fernandes, que implementa inúmeras medidas amplamente criticadas pela elite brasileira, como a proibição de demissão durante a pandemia e a criação do IGF.
Na escolha entre um país que abertamente prioriza sua elite (usando um fictício Custo Brasil como desculpa) e outro que, atualmente, tem maior visão de longo prazo, escolheu o último. Ainda que os desafios na Argentina atual sejam enormes, a perspectiva de melhora do cenário econômico pareceu à Ford melhor. A elite brasileira, ao contrário da argentina, raramente perde suas batalhas. É abertamente predatória, progressivamente antidemocrática – e vencedora. Políticas de longo prazo que patrocina, como o chamado teto de gastos, impedirão investimentos em infraestrutura, segurança, educação, saúde, proteção das fronteiras, entre outras funções essenciais para o desempenho empresarial. A reforma tributária que defende não reduz em nada seus privilégios. Nos últimos anos apoiou sem ruborizar um projeto obscurantista de governo que ameaça a democracia brasileira constantemente. A Ford certamente levou tal cenário de longo prazo em consideração.
Os defensores das reformas estruturais recentemente implementadas alegam que a decisão da montadora faz parte do mercado globalizado. Ignoram o básico: a competição do Brasil não era com todos os países do mundo. Era apenas com a Argentina e o Uruguai. Mesmo com um mercado interno muito superior, perdemos. É a tal coisa: quando o leão está solto, não é preciso correr mais rápido que o animal para se salvar – basta correr mais rápido que seu vizinho. É claro que fatores como a queda de demanda e a concorrência dos veículos asiáticos e europeus tiveram peso na decisão, mas no fundo isso não importa. Bastava ao Brasil dispor de condições melhores que a Argentina e o Uruguai, nossos companheiros do Mercosul. Nem isso as políticas patrocinadas por uma elite cada vez mais predatória consegue mais. A Ford não foi a primeira, nem será a última a tomar tal decisão. Seguiu a Mercedes Benz e outras mais virão enquanto não mudarmos a mentalidade dos que hoje comandam as empresas, escritórios e a política nacional e determinam o rumo do país.
Márcio Calvet Neves – Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal, advogado tributarista e mestre em ciência política e políticas públicas
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