Olhe, você está sendo roubado

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Claro que seria saudável se o exemplo do primeiro-ministro islandês Sigmundur David Gunnlaugsson fosse seguido por Eduardo Cunha. Sobre ambos, pesa um fato praticamente idêntico: contas em paraíso fiscal.

O fato de Cunha agarrar-se ao cargo enquanto o premiê islandês renuncia é toda uma enciclopédia sobre a diferença de costumes políticos entre um país civilizado e um primitivo. Mas a renúncia de Gunnlaugsson nem é o mais importante aspecto dos “Panama Papers”. O relevante é a exposição de um esquema relativamente antigo pelo qual os ultrarricos fogem do pagamento de impostos pela via de contas em paraísos fiscais.

É uma montanha de dinheiro roubado dos contribuintes, como o demonstra um estudo do economista Gabriel Zucman citado pelo “Financial Times”: haveria cerca de US$ 7,6 trilhões estocados em paraísos fiscais. Equivalem a 8% da riqueza mundial. Ou a 4,6 “brasis” escondidos do fisco em contas opacas.

É impossível discordar do escritor Fredrik DeBoer, quando ele escreve o seguinte para o sítio da Foreign Policy: “Você e eu pagamos nossos impostos; os ricos encontram meios de evitá-los. Para alguns, ler sobre os ‘Panama Papers’ será como ser avisado pelos pais que Papai Noel não é real: é apenas a confirmação final de uma suspeita há muito mantida, a de que o jogo é fraudado e, a menos que você seja parte do 1% global [os hiperricos], não é fraudado para ajudá-lo”.

Essa fraude é terrivelmente ecumênica, como constata José Ignacio Torreblanca, pesquisador do European Council on Foreign Relations, em sua coluna para “El País”:

“Queixamo-nos de que o capitalismo gera desigualdade. Mas na parte de baixo [da pirâmide social]. Porque na parte de cima, muito de cima, parece gerar uma identidade de interesses capaz de unir as máfias dedicadas às drogas com os políticos islandeses e a Coreia do Norte com o pai de David Cameron”.

Desnecessário acrescentar que todos os citados aparecem nos “Panama Papers”.

Uma comunidade de interesses que inclui ainda, entre centenas de outros,parentes de oito membros ou ex-membros do Politburo do Partido Comunista Chinês e o grupo Hizbullah, listado como terrorista pelo Ocidente, mas que usa os paraísos fiscais ocidentais para driblar as sanções.

O incrível nessa triste história do capitalismo global é que os paraísos fiscais são legais, ainda que muitas contas neles abertas não o sejam. Trata-se, portanto, de um roubo legalizado, em grande medida azeitado por entidades (o sistema financeiro) que são essenciais ao capitalismo.

O “Figaro” relata, em sua edição desta quarta, que os cinco grandes bancos franceses tiram um terço de seu lucro de paraísos fiscais, nos quais suas operações são 60% mais lucrativas do que no resto do mundo.

Alguma surpresa com o fato de que a “Economist” lembre que os “Panama Papers” aguçam “um sentimento contemporâneo, o de uma fundamental desconexão entre as elites globais e o resto, para o qual impostos são tão certos quanto a morte”?

crossi@uol.com.br


Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi/2016/04/1758277-olhe-voce-esta-sendo-roubado.shtml