por Fátima Gondimi
A Montanha Mágicaii obra monumental de Thomas Mann é um diagnóstico impar do tempo, das esperanças dos pensamentos e equívocos que antecederam a grande tragédia que assolou a Europa de 1914 a 1945 e incita-nos a refletir sobre algumas semelhanças no Brasil de hoje.
Em seu livro Mann, por meio do jovem Hans Castorp, apresenta a vida da classe abastada europeia que absorta em seu reinar na Belle Époque não se dava conta do terror que se avizinhava. Hans, engenheiro naval, às vésperas de assumir um emprego numa empresa da família, resolve antes visitar um primo no luxuoso Sanatório Internacional de Berghof em Davos, nos Alpes Suiços. Deveria passar 3 semanas e ficou 7 anos envolvido pela paixão e pelos deleites do dolce far niente. Estava até bem de saúde desde o primeiro ano, mas não queria abandonar a vida nesse microcosmo europeu. Na ponta do lápis, sairia mais em conta viver em Berghof com a renda de sua herança, do que voltar à planície iiie trabalhar. Estávamos em 1907. Sete anos depois eclodiria a 1ª Guerra Mundial, e a vida de todos viraria de ponta a cabeça. Hans foi arrastado ao macabro baile da guerra e não se sabe se dela sobreviveu para ver essa época de confiança universal se transformar em retrocesso e trevas.
Hans Castorp, não precisava trabalhar para sobreviver, e como muitos em Berghof, se beneficiava de uma dinâmica econômica que avançava triunfante e cuja expansão concentrava renda e riqueza. No período anterior à 1ª Guerra Mundial (1914-1918) a Europa atingiu níveis inigualáveis de concentração da renda e riqueza: 1% da população mais rica detinha 20% da riqueza gerada, e quase 50% dessa riqueza ficava em mãos de 10%. Tampouco havia tributação expressiva sobre os lucros sobre a renda gerada e sobre o patrimônio, não sem razão Hans aos 22 anos, poderia viver de juros de sua cota na herança do tio Tienappel.
A vida invejável dessa elite, fruto de um sistema econômico que gerava desigualdades, tinha um alto custo social. A fatura veio cobrada anos depois na forma de revolução, fome, inflação, terror, catástrofes e crises: a grande depressão econômica dos anos 30 e a guerra, a festa mundial da morte, nas palavras de Mann, ao qual muitos foram arrastados e que durou uns vários anos de pecados.
De 1914 a 1950 houve uma forte redução da desigualdade, em parte porque parcela do capital e da riqueza se dissolveram com a guerra e a recessão de 1929; e em parte porque com o temor do avanço do comunismo, após 1945, foi atribuído ao Estado o papel fundamental de estabelecer políticas redistributivas para mitigar as desigualdades e assim reconstruir o tecido social garantindo a reprodução do sistemaiv.
Para dar suporte ao Estado de bem-estar e ofertar políticas públicas para a população mais pobre, foram cobrados da classe dominante impostos progressivos sobre os lucros do capital, as rendas e o patrimônio. No Reino Unido a taxação para as rendas mais elevadas atingiu 98% em 1940. Nos Estados Unidos, durante meio século a taxa superior do imposto federal sobre a renda foi em média, de 81%. França e Alemanha entre os anos de 1940 e 1980 aplicaram taxas superiores entre 50% a 70%. v
Com a distribuição de recursos por meio de políticas públicas e com uma taxação progressiva sobre as camadas de maior poder aquisitivo, a desigualdade caiu. Segundo Piketty: em 1950, a participação na renda gerada do 1% da população mais rica havia caído para a metade em relação ao período anterior à guerra, ou seja, para algo em torno de 10%, enquanto a do décimo superior para 35% e 40% nos países pesquisados.
Tal fato continuou até 1970 só que de forma mais lenta e moderada. Com efeito, as políticas keynesianas implementadas até início dos anos 70, chamados por Piketty de “Trinta Gloriosos” (1945 a 1975) propiciaram um período de crescimento econômico, aumento de emprego e redução das desigualdades pela consolidação do Estado do bem-estar.
O caminho virtuoso de redução da desigualdade começou a perder força no início dos anos 1970, quando a inflação se acelerou, acompanhada de um aumento do desemprego e de redução do ritmo de crescimento.
A desigualdade volta a crescer com a implementação das chamadas políticas neoliberaisvi consolidadas em 1989 pelo chamado Consenso de Washington, elaborado com base nas experiencias dos governos de Margareth Thatcher (Reino Unido) e de Ronald Regan (Estados Unidos), para ser seguido pelos países em desenvolvimento. O lema era “menos Estado e mais mercado” e com isso o Estado do bem-estar social iniciou a ser desmontado. Não surpreende que a partir de então nos EUA e no Reino Unido os crescimentos econômicos foram pífios, o desemprego aumentou, e a tributação do capital e dos mais ricos diminuiu, agravando ainda mais a desigualdade. Mesmo assim Thatcher e Regan não conseguiram desmontar o estado do bem-estar social. Tampouco a redução drástica dos impostos sobre as camadas mais ricas, decorrentes dessa política que se tornou hegemônica no mundo, obstaculizou o uso de alíquotas em patamares bem acima do que se pratica no Brasil. O imposto sobre herança do Reino Unido que tinha alíquota máxima de 80% caiu para os patamares da Alemanha e França, 40%. No Brasil, a alíquota máxima do imposto sobre a renda de pessoa física (IRPF) é de 27,5% e o imposto sobre herança (ITCDM) no máximo atinge 8%.
A desigualdade volta a crescer a partir da década de 70, mas na Europa não alcançou as marcas alarmantes do início do século, uma vez que não conseguiram destruir o estado do bem-estar pois estava de tal forma integrado à estrutura social e política das sociedades industriais, que já fazia parte de sua essência.vii
O Brasil, país com péssima distribuição de renda e sem um estado social robusto, recebeu a onda neoliberal com várias medidas que aliviaram a tributação do andar de cima, a começar pela alíquota marginal do imposto de renda das pessoas físicas que foi reduzida de 45% para 25% em 1988. Em 1995 no contexto da “reforma tributária silenciosa” ampliaram-se os benefícios para o capital e as camadas mais ricas da sociedade. Pela lei 9.249, de 26 de setembro de 1995, não somente os lucros das empresas distribuídos na forma de dividendos foram isentos de sua incidência como foi criado uma jaboticaba tributária que permite sua distribuição na forma de Juros sobre o Capital Próprio (JCP), com uma alíquota de 15%, abaixo, portanto, da tabela progressiva. Além disso, a alíquota do imposto de renda incidente sobre o lucro tributável das empresas foi reduzida de 25% para 15%, bem como os adicionais cobrados sobre as faixas de lucros superiores a determinados limites.
Em 1998, para cumprir o ajuste fiscal do FMI na esteira da crise cambial do bath tailandês, o governo federal lança o “Pacote 51” incluindo medidas para aumentar a arrecadação e assim garantir o superávit primário que em 1999 era de 3,19% do PIB e o aumento dos gastos primários. Em 1990, os gastos eram 12% do PIB, em 2000 eram 15% e em 2015 eram 20%. O incremento de arrecadação se deu com a elevação de alíquotas (COFINS passou de 2% para 3% e CPMF cresceu de 0,20% para 0,38%) e ampliação de base de incidência do PIS, ou seja, agravando a regressividade e a desigualdade de renda. Como resultado da Reforma tributária sorrateira a carga tributária sai de 24,4% em 1995 para 31,9% em 2002, incremento que recaiu sobretudo nos ombros do andar de baixo, agravando o quadro de desigualdade tributária.
O Brasil de hoje apresenta um quadro mais grave em termos de concentração de renda que a Europa no início do século XX: 10% da população fica com 55,3% da renda.
Só que diferente da situação no início do século passado, quando a grave crise econômica e social desencadeou um processo de redução da concentração de renda, os patrimônios dos mais ricos continuam crescendo mesmo em períodos de crise. Segundo estudos da OXFAM 42 bilionários brasileiros ampliaram suas riquezas em 177 bilhões de reais de março a julho de 2020, em pleno período pandêmico. Quantia superior ao orçamento do Ministério da Saúde para este ano que é de 167 bilhões de reais.
Enquanto alguns enriquecem na crise, a rede de proteção social é enfraquecida o que acelera o crescimento da desigualdade e o risco de convulsões sociais que questionam as injustiças do sistema, podendo conduzir ao seu colapso.
É preciso taxar as altas rendas e a riqueza no Brasil recuperando a progressividade da renda e do patrimônio. Afinal, como defende Piketty o imposto progressivo foi amplamente utilizado pelos países anglo-saxões na Europa reduzindo as desigualdades e fazendo justiça social sem ferir a liberdade individual. É inadmissível sermos um dos países mais desiguais do mundo e acintosamente ostentarmos o título de vice-campeões em tributação sobre o consumo. Não são sensatas portanto, propostas que aumentem a tributação dos que podem menos e que silenciem sobre a tributação dos super-ricos, sobretudo quando é de domínio público a existência de mecanismos que os permitem reduzir em até 70% a sua renda tributada. Quanto à ameaça de que “o capital fugirá do país”, parece pouco provável. Será que nossos super-ricos vão encontrar algum país do mundo civilizado que tribute a renda abaixo do Brasil? Nossa alíquota máxima é uma das menores do mundo.
De novo, volto a Mann, com uma passagem onde Naphta, o profeta do terror, explica a Hans Castorp que as ideias iluministas de Settembrini estão fora de moda e que por isso é necessário: “desculpar o desinteresse do espírito em relação à realidade, pois via de regra, os fermentos que produzem as revoluções da realidade já há muito lhe repugnam”. Já vimos no passado o preço alto que a história costuma cobrar quando não estamos atentos aos fermentos que produzem as revoluções da realidade.
i Fátima Gondim: Auditora Fiscal da RFB aposentada, membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Justiça Fiscal
ii Mann, Thomas, A Montanha Mágica, tradução Hebert Caro; revisão da tradução e posfácio Paulo Astor Soethe _1ª ed. _ São Paulo: Companhia das Letras,2016
iii Hans assim se referia a Hamburgo, sua cidade que ficava ao nível do mar, em contraponto ao sanatório que ficava em Davos, nas montanhas, a 5 mil pés de altura.
iv Castro, Jorge Abrão e Pochmann, Marcio (organizadores) – Brasil: Estado Social contra a Barbárie, in Oliveira, Fabricio, O Estado do bem-estar e as desigualdades no capitalismo, p. 58, Fundação Perseu Abramo, 2020
v Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI, 1. Ed. Ed. Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014, p.494
vi políticas altamente restritivas ao crescimento e ao emprego, acompanhadas de redução dos impostos incidentes sobre a renda, os lucros e o patrimônio
vii KING, D. O Estado e as estruturas sociais do bem-estar em democracias industriais avançadas. Novos Estudos Cebrap. São Paulo: Cebrap, n. 22, p. 53-76, Out. 1988.
Arte: Ana Cosa Lima – Os dois lados da cidade