por Maria Regina Paiva Duarte*
Como tratei no primeiro texto, existem vários mecanismos de dominação a que estão submetidos os países periféricos, como, por exemplo, a evasão e elisão de impostos das megacorporações e dos super-ricos, que fragilizam e submetem os Estados nacionais.
Os planejamentos tributários, a evasão de divisas e os fluxos financeiros ilícitos não são um problema apenas do Brasil, posto que estão espalhados pelo mundo e inclusive causando reações, como o plano contra a erosão da base de lucros (Base Erosion and Profit Shifting – BEPS) e a recente proposta de alíquota global mínima para as empresas para evitar maiores prejuízos com a perda de arrecadação dos países. Especificamente, o caso da conformação do sistema tributário brasileiro e das múltiplas formas de evitar pagamento de tributos é muito particular e precisa ser contextualizado. Não foi por obra divina, ou do exuberante e competitivo mercado, que chegamos, em 2020, a mais de R$ 1 trilhão de empresas e pessoas físicas brasileiras alocados em paraísos fiscais, conforme atualização do Banco Central feita a partir dos dados declarados, ou seja, pode ser muito maior. Mandar o dinheiro para esses países é uma forma de evitar a tributação no Brasil, sendo utilizada especialmente por quem possui muito dinheiro e patrimônio elevado.
E como se acumulou tamanha quantidade de recursos? Não se trata apenas de constatar que os capitais e os lucros se movem e, com isso, evitam a tributação, mas também de se perguntar como chegaram a montante tão expressivo. A justificativa podemos encontrar na baixa tributação das altas rendas, heranças e patrimônio no Brasil, acentuada conforme seguimos as diretrizes de políticas neoliberais aplicadas no Brasil desde o final dos anos 1980.
A agenda neoliberal, batizada com o nome de Consenso de Washington, tinha entre suas orientações reformas tributárias que aliviassem a tributação do capital e dos detentores de altas rendas. Essa orientação foi seguida fortemente no Brasil na década de 1990, mas, mesmo antes disso, nem bem havia sido promulgada a Constituição Federal de 1988, que se seguiu ao período de democratização do país, as mudanças já estavam ocorrendo. A tabela de alíquotas do IRPF tinha 9 faixas em 1988, com alíquotas entre 10% e 45% e, a partir de janeiro de 1989, passou a ter apenas 3 faixas, incluindo a isenta, com alíquotas de 10 e 25%. Ou seja, a alíquota máxima do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) baixou de 45% para 25%, diminuindo a efetiva progressividade do imposto de renda. Quanto mais alta a alíquota máxima, maior a capacidade de incidir justamente sobre as parcelas marginais das rendas maiores, ou seja, mais teria capacidade de cobrar mais de quem tem rendas maiores[1].
O Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), seguindo a linha da orientação neoliberal, também foi diminuído. A partir de 1980, as instituições financeiras passaram a ter uma tributação adicional nos lucros, atingindo 45% no total. Com a Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL), instituída em 1989, a alíquota total alcançou 57%, enquanto para as empresas em geral era de 48%.
Ao final dos anos 90 do século passado, a alíquota total passou a ser de 34%, acabando a diferenciação entre as empresas financeiras, altamente lucrativas, e as demais. Assim, os impostos sobre as rendas, mais progressivos, passaram a ter menor importância[2].
O Plano Real, que controlou a inflação a partir de 1994, esteve apoiado, na segunda fase, em 1999, no chamado “tripé macroeconômico”, do qual faziam parte a política cambial (câmbio flutuante, após o colapso do modelo de âncora cambial), o regime fiscal de metas de superavit primário (gerar sobra de arrecadação anualmente para pagamento de juros) e o regime de metas de inflação (controle da inflação). Combinadas com taxas elevadas de juros, essas medidas levaram o país a um baixo crescimento econômico e potencializaram o endividamento público.
Ainda que tenha controlado a inflação, o Plano Real teve consequências negativas muito importantes, inclusive no que se refere à tributação, conforme vemos na coletânea de artigos reunidos pelo Unafisco Sindical (Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal) e publicados em 2006 sob o título “10 anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil”[3].
No capítulo “Um retrato do sistema Tributário nos últimos dez anos (1996 a 2005)”, encontramos: “A política tributária foi uma determinante importante no bojo das políticas macroeconômicas que deram sustentação ao Plano Real. A engenharia macroeconômica que assegurou o relativo controle da inflação passou pela elevação do endividamento público, que assegurou a transferência de renda do setor real da economia para os detentores de excedentes financeiros, particularmente o capital bancário. A partir de 1999, por força dos acordos com Fundo Monetário Internacional (FMI), o Brasil comprometeu-se a produzir elevados superávits fiscais primários. A viabilidade dessa política foi obtida por meio do aumento da arrecadação de impostos, via modificações na legislação infraconstitucional.”
Esse aumento de arrecadação foi basicamente obtido nos tributos sobre consumo, como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), e pelo congelamento da tabela do IRPF, que confiscou aproximadamente R$ 15 bilhões dos trabalhadores entre 1996 e 2002. No período de 1995 a 2001, o imposto de renda sobre o trabalho aumentou 27% em termos reais, enquanto os impostos sobre lucros de empresas e sobre o patrimônio rural tiveram queda real.
Como em 1995 havia sido promulgada a Lei 9.249, que isentou de imposto de renda a distribuição dos lucros e dividendos na pessoa física e instituiu o mecanismo dos juros sobre capital próprio, esta última medida pioneira não só no Brasil como no mundo, havia que se buscar recursos em outras fontes. Basicamente, esses dois mecanismos reduziram a tributação do imposto de renda para o capital e favoreceram o fenômeno que ficou conhecido como “pejotização”, em que as pessoas físicas “se transformaram” em empresas para pagar menos tributos.
Assim, para compensar a diminuição do imposto sobre a renda do capital, os tributos sobre consumo e sobre a renda do trabalho foram elevados, e a carga tributária subiu de 28% para 37% no período de 1996 a 2005. O pior, não se transformou em mais bens públicos ou mais serviços para a população.
Segundo os autores, “o maior esforço de arrecadação tributária destinou-se ao cumprimento do superávit primário. Até 1998, o Brasil não registrava superávit primário em suas contas, e em 1999, após acordo com FMI, o superávit primário foi de 3,19% do Produto Interno Bruto (PIB), chegando em 2005 a 4,83% do Produto Interno Bruto (PIB). No mesmo período a Carga Tributária saltou de 32,02% para 37,2%. Portanto, o incremento de arrecadação de 5 pontos do PIB foi praticamente todo destinado a realização do superávit primário, de forma a garantir o pagamento dos juros da dívida”.
No primeiro governo Lula houve uma tentativa de reforma tributária, que conferia algum grau de progressividade nos tributos sobre o patrimônio, materializada na Proposta de Emenda Constitucional nº 41/2003. A resistência no congresso Nacional e dos entes subfederados foi enorme e a tentativa de reforma fracassou, resultando poucas medidas pontuais, como a prorrogação da CPMF.
No segundo mandato, nova tentativa, desta vez com a PEC 233/2008. Esta proposta não representou o conjunto dos interesses de movimento sociais e sindicatos em uma reforma mais justa e progressiva, ao contrário, levou em conta o interesse de setores empresariais e de prefeitos e governadores e enfrentando resistência, dessa vez dos movimentos sociais e sindicais, acabou nem sendo levada à votação. Menos mal, posto que feria de morte o financiamento da seguridade social.
No governo de Dilma Roussef, a situação econômica e política do país e a conjuntura internacional estavam muito mais complicadas e nenhuma proposta de reforma foi apresentada. Foram ampliadas as concessões de benefícios fiscais e desonerações, em atendimento ao que ficou conhecido como “pauta FIESP”.
Como resume muito bem o economista e professor da Universidade de Brasília (UnB), Evilasio Salvador, na publicação “As implicações do sistema tributário brasileiro na desigualdade de renda”[4], as alterações no sistema tributário pouco contribuíram para a redução da desigualdade. “Em resumo, no século XXI, foram pontuais as medidas adotadas no âmbito do sistema tributário que contribuíram de alguma forma para a redução das desigualdades sociais. Em grande parte, as iniciativas legislativas caminharam no sentindo da simplificação tributária, das desonerações de impostos das empresas e na busca da maior competitividade das empresas brasileiras no cenário internacional. As medidas progressivas no campo tributário, no sentido de trazer algum impacto na redução das desigualdades sociais, limitaram-se à maior progressividade do ITR, ao aumento da alíquota da CSSL dos bancos e a alguns efeitos periféricos do IOF sobre as operações financeiras. O mais grave é que, ao longo dos últimos 10 anos, não foi revogada nenhuma das medidas regressivas adotadas no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, destacadamente a isenção de imposto de renda sobre a distribuição de lucros e dividendos a pessoas físicas distribuídos para os resultados apurados a partir de 1º/01/96, seja o sócio capitalista residente no país ou no exterior.”
Ainda segundo Evilasio, “a regressividade tributária no Brasil não foi ainda devidamente analisada considerando-se as dimensões de gênero e raça, que são estruturantes das desigualdades no país. Assim, as categorias de gênero e raça têm estado ausentes do debate sobre a reforma tributária no Brasil. O critério de gênero não é considerado relevante, o que mostra que a luta por maior igualdade entre os sexos não tem sido associada à incidência tributária.”
Realizando um estudo inédito para incluir a questão da desigualdade de gênero e raça na análise da regressividade do sistema tributário brasileiro, Evilásio concluiu que “a regressividade do sistema tributário, ou seja, o financiamento das políticas públicas brasileiras quanto ao peso dos tributos recai sobre as mulheres e os/as negros/as. Os dados indicam, particularmente, que as mulheres negras pagam proporcionalmente, em relação aos seus rendimentos, muitos mais tributos do que os homens brancos.”
Passados mais de 25 anos de desoneração das rendas do capital, o Brasil chega a 2021 como um dos países mais desiguais do mundo, com elevada concentração de renda e riqueza. Somos o segundo país em concentração de renda do 1% mais rico, perdendo apenas para o Catar e na sétima posição em número de bilionários.
Ainda que o governo, à época da promulgação da Lei 9.249/95, tenha justificado a desoneração de lucros e dividendos e a dedutibilidade dos juros sobre capital próprio como forma de aumentar investimentos, gerar renda e emprego, não há evidências que isso tenha funcionado. Reduzir impostos das corporações é de eficácia no mínimo duvidosa, pois em geral essa redução acaba parando nos lucros destas empresas. Além do que, tais medidas olham apenas para a diminuição de custos, como um suposto estímulo à oferta, desconsiderando o princípio da demanda efetiva.
A verdade é que a carga tributária sobre o consumo foi se elevando porque a carga tributária sobre a renda do capital foi diminuindo. Sem contar a baixa tributação sobre patrimônio, a reduzida tributação sobre heranças e doações e a ridícula imposição sobre a propriedade rural, que seriam impostos pessoais e com caráter progressivo.
Segundo estudo publicado pelo IJF intitulado “Concentração de Riquezas no Brasil”[5], as classes mais ricas deixaram de recolher em torno de R$ 650 bilhões, entre 2007 e 2018. Isso ocorreu porque a alíquota efetiva do imposto de renda, que é a medida de quanto efetivamente a pessoa vai pagar de imposto, é muito mais baixa para as altas rendas. Não fosse a isenção de lucros e dividendos recebidos, que forma a maior parte das altas rendas, os mais ricos pagariam muito mais imposto de renda. Contribuintes com rendas a partir de 30 salários mínimos passaram a pagar cada vez menos impostos e, em contrapartida, os contribuintes com rendas mais baixas passaram a pagar mais.
Em 2021, 65 bilionários brasileiros, que possuem quase R$ 1,2 trilhão, conseguiram aumentar suas riquezas em 71%, em plena pandemia! E mais, 10 novos brasileiros entraram para o ranking dos bilionários da Revista Forbes, com patrimônio acumulado de US$ 21,2 bilhões.
Como se não fosse suficiente, o estudo do IJF aponta ainda que o valor médio do patrimônio do 0,01% da população mais rica no Brasil é 610 vezes maior do que detêm aproximadamente 80% dos brasileiros e brasileiras. É evidente e está mais que comprovado que a desigualdade no Brasil reflete a acumulação de riquezas possibilitada pela baixa tributação das altas rendas, dos elevados patrimônios e heranças; enfim, pela baixa tributação pessoal. A isso se somam as estratégias de grandes empresas para elidir e evadir impostos, que pagam proporcionalmente menos que médias e pequenas empresas e retroalimentam a concentração de poder, o que gera mais desigualdade.
Mesmo o Brasil não tendo problemas de endividamento externo, e que o pagamento do auxílio emergencial tenha mostrado que existe, sim, o dinheiro – ele não acabou -, as soluções apresentadas para os problemas brasileiros ainda estão apegadas a metas de superávit fiscal, redução de gastos, cortes em serviços públicos; enfim, políticas de austeridade fiscal que estão sendo contestadas inclusive por entidades como o Fundo Monetário Internacional.
Recentemente, o presidente Bolsonaro disse que não era crime ser rico e que não conhecia empresários socialistas, portanto, tributar grandes fortunas não era desejável, muito menos efetivo. De fato, não cabe fazer juízo moral sobre ser ou não rico, o que importa é que tributar as grandes fortunas não é punir ou aplicar sanção, mas uma forma de dar ao sistema tributário o papel que lhe cabe na redistribuição de renda e riqueza e sinalizar à sociedade que não é possível tolerar tamanha desigualdade.
Antes mesmo desta declaração de Bolsonaro, o ex-presidente Lula publicou um trecho de um vídeo, em sua conta nas redes sociais, dizendo “O problema não é taxas grandes fortunas, porque você pode taxar as grandes fortunas e elas voarem para outro país. Eu lembro que a França taxou grandes fortunas e muitos empresários foram embora. O problema é ter uma política de Imposto de Renda que seja justa, que as pessoas paguem de acordo com o que ganham”.
É verdade, precisamos de uma política de imposto de renda que seja justa, que cobre mais de quem possa pagar mais. Inclusive porque quando taxamos mais as rendas, a necessidade de taxar as grandes fortunas pode ser muito menor, pois inibe, em alguma medida, maiores níveis de concentração da renda e sua transformação em fortuna.
Mas é verdade também que a tributação das grandes fortunas é essencial para diminuir a desigualdade e os argumentos quanto à fuga de empresários e capital não se sustentam, pois muitos bens estão imobilizados e não podem ser retirados do país, a remuneração do capital (juros) no Brasil é bem mais elevada que em outros países e a tributação de renda e patrimônio é maior em quase todos outros países. Fugir para onde?
É impressionante, mas não surpreendente, que possa haver rejeição aos tributos. Não só os que poderiam atingir grandes fortunas, mas qualquer outro, especialmente os que incidem diretamente sobre renda e propriedade. Sempre que se coloca possibilidade de tributar mais as rendas, surgem reações muito desproporcionais, especialmente de setores altamente capitalizados.
O recente projeto de reforma tributária enviado pelo governo (PL 2337/2021) propôs o retorno da tributação sobre lucros e dividendos, o fim da dedutibilidade de juros sobre capital próprio, elevação do valor mínimo de incidência do imposto de renda de pessoas física e medidas antielisivas que são fundamentais para a redução da evasão e elisão fiscal, todas estas propostas importantes na direção de maior justiça fiscal.
Porém, embalado na “neutralidade” do sistema tributário, o mesmo projeto diminui imposto de renda da pessoa jurídica, prejudicando, inclusive, os Estados e Municípios, favorece as rendas do capital em relação às rendas do trabalho, não enfrenta a “pejotização” e reduz tributação sobre aplicações financeiras. E, pior, o substitutivo do relator conseguiu ser mais favorável ao capital do que o projeto original e acabou com as poucas medidas antilelisivas, o que significa que seguiremos sendo um paraíso fiscal para o capital e um inferno tributário para os trabalhadores. Melhor que nem se aprove essa reforma, tamanha descaracterização, nos substitutivos do relator, do que seria, originalmente, positivo do ponto de vista da justiça fiscal.
Que não percamos de vista nossa história de luta e resistência, muito menos a memória.
* presidenta do Instituto Justiça Fiscal
[1] Ver HICKMANN, C. M. et al. Tributação da renda da pessoa jurídica: instrumento da guerra fiscal internacional ou do desenvolvimento? In FAGNANI, E.(org). Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. Disponível em https://ijf.org.br/tributacao-da-renda-da-pessoa-juridica-instrumento-guerra-fiscal-internacional-ou-do-desenvolvimento/. Acesso em 10.ago.2021
[2] Ver INTROÍNI, P.G.H. et al. Tributação sobre a renda da Pessoa Física: Isonomia como Princípio Fundamental de Justiça Fiscal. In FAGNANI, E.(org). Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. Disponível em https://ijf.org.br/tributacao-sobre-a-renda-da-pessoa-fisica-isonomia-como-principio-fundamental-de-justica-fiscal/. Acesso em 10.ago.2021.
[3] HICKMANN, C; SALVADOR, E. 10 Anos de Derrama: A Distribuição da Carga Tributária no Brasil. Brasília: UNAFISCO SINDICAL, 2006.
[4] SALVADOR, E. As Implicações do Sistema Tributário Brasileiro nas Desigualdades de Renda. 1ª ed. Brasília: INESC, 2014.
[5] Disponível em https://ijf.org.br/concentracao-de-riquezas-no-brasil-2/