Crônica de uma boa receita de reforma tributária

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por Maria Regina Paiva Duarte

Quando o telefone tocou e Dona Juju atendeu, nem acreditou no que estava ouvindo. Sim, queriam que ela voltasse a apresentar os seus programas de culinária. A princípio ela ficou receosa, afinal, estava afastada destas atividades, mas o pessoal que a procurou, do governo, foi bem convincente: precisamos da senhora, os seus programas eram ótimos e, melhor, para as mulheres.

O programa de Dona Juju era do tipo “raiz”. Não havia ainda espaço gourmet, master chef, muito menos homens na cozinha. Ela conversava diretamente com o público feminino, não havia essa “ideologia de gênero” atual, nem se falava em trabalho de cuidado, ora, as mulheres fazem tudo por amor. Nem trabalham, apenas se dedicam ao lar, à família.

Dona Juju voltou à ativa e seus programas, agora não mais em televisão, afinal os tempos modernos estavam aí, com novos veículos de comunicação, e o canal começou a bombar na internet, nas redes sociais, o maior sucesso.

Estava muito feliz, o Brasil um país com muita produção de grãos, alimentos, o agronegócio em plena atividade, ela queira mesmo colaborar com receitas ótimas e econômicas. Sim, econômicas, não somente ótimas, ela lembrou bem do Ministro falando que precisava economizar, inclusive os pobres. Se até domésticas estavam viajando para a Disney, é porque economizavam. Apesar que nesta parte ela ficava um pouco pensativa, com os preços dos ingredientes subindo, os salários diminuindo, como economizar… mas ela não se entregava. Ou melhor, entregava o máximo de si para ajudar as mulheres a fazerem boas receitas com bons ingredientes e muita economia.

Um dia, porém, Dona Juju recebeu o roteiro do programa e ficou apavorada. Teria que apresentar uma receita de reforma tributária. Alguém, no governo, havia trocado os roteiros, esse era do Ministro da Economia, que deveria apresentar sua proposta ao Congresso Nacional e à sociedade.

Mas não havia tempo, o programa iria ao ar em seguida, era ao vivo mesmo, como nos velhos tempos.

À medida que ia lendo o roteiro, pensava no que falar. Não estava fácil, mas não queria desapontar as pessoas que a haviam convidado a estar outra vez apresentando seu programa. Após fazer uma leitura minuciosa, ela usou da criatividade e começou:

Olá, muito bom-dia a todas!

Minhas queridas, hoje nossa receita será diferente, mas muito boa, como todas as outras. Vou falar de reforma tributária. Para uma boa reforma, comece escolhendo os melhores ingredientes. Há centros de cidadania, institutos independentes, consultorias e economistas influentes que poderão fornecer tudo que precisamos. É preciso escolher bem, os ingredientes não poderão estar muito passados, por exemplo. Tampouco poderão estar misturados, muita bagunça nas prateleiras não deve ser aceita. Também precisamos encontrar ingredientes simples, que façam com que todas possamos organizar bem os pratos. Mesmo que a vida seja complexa, não devemos complicar muito. Deixem isso para os conselheiros, desembargadores e juízes decidirem. Eles sabem muito mais que nós e contam com gente muito boa e especializada para assessorar. As empresas são tudo de bom também, elas sabem como agir nesses casos. Inclusive são bem generosas e ajudam a formar os melhores produtos para as nossas receitas. Sempre com ótimas intenções, claro. Elas existem para promover essa riqueza que temos no Brasil, dizem até que o mercado, da qual fazem parte, é o que pode resolver todos os problemas e as dificuldades que tivermos.

Nesse momento, Dona Juju lembrou de quando estava na casa de uma amiga e apareceu uma sobrinha dela. Enquanto as amigas conversavam, a sobrinha estava vendo no computador um professor falar “pessoal, existe um verdadeiro butim das elites empresariais, o andar de cima está lucrando cada vez mais. Nosso problema não é o jeitinho brasileiro, não, é o jeitão destas classes dominante e da mega burguesia”. Não, este professor não poderia estar falando o correto e ela deixou de lado a lembrança.

Já bastava ouvir que o orçamento da dona de casa não é igual ao do Estado e que este pode e deve gastar. O país não vai quebrar, é soberano na sua própria moeda e deve investir em saúde, educação, na sua gente. Dona Juju também se perguntava, intrigada, de onde havia saído o dinheiro para pagar auxílio emergencial que o governo dizia que não existia. Era um detalhe que ainda escapava à sua compreensão.

Mas deixando as lembranças de lado, Dona Juju passou a explicar o modo de fazer da receita de reforma tributária. Agora ela precisava muitos de seus recursos de imaginação para mostrar que após escolher bem os ingredientes, havia que separar uma parte importante que era o povo brasileiro. Talvez deixar em banho maria, ou cozinhando em fogo muito lento, ela não havia definido como tratar essa questão.

Avançando, ela disse: bom, agora que já temos os nossos ingredientes, vamos levar aos deputados para fazer a receita. No caminho, porém, começaram a surgir pessoas interessadas em não arcar com a conta da reforma tributária. Sim, minhas amigas, os tributos são necessários para que o Estado possa ter recursos para fazer política pública e, mais importante ainda, redistribuir renda. E alguém tem que pagar por isso, de preferência os mais ricos, né? Quem tem mais paga mais, parece um raciocínio muito coerente e inclusive, me disseram, e vocês podem acreditar, está na Constituição Federal! Mas lembrou que essas pessoas, tinham se recusado a pagar tendo muito dinheiro. Isso desacomodou o pensamento de Dona Juju, ela ficou um pouco perturbada até, mas agora já tinha falado e não cabia se arrepender.

Lembrou ter visto no jornal que essas pessoas muito influentes estavam dizendo que nossa reforma não é “neutra” como deveria ser; que vai desestimular investimentos, que o dinheiro vai embora do país; que as empresas há 25 anos distribuem lucros e dividendos livres de impostos nas pessoa física e, do nada querem começar a tributar, ah!, não pode. Curioso, pensou ela, por que não cobrar dos mais dos ricos?

E a taxação das grandes fortunas? Dona Juju ouviu dizer que nem adiantava cobrar, é muito pouco o que se arrecada. Além disso, muitas amigas já haviam manifestado apreensão por ter um carro do ano e uma boa casa para morar, imagina, cobrar sobre isso. Mas ela ficou pensando que não seria isso uma grande fortuna… uma grande fortuna seria bem mais, então ela tranquilizou suas amigas. E no programa disse mais, esse ingrediente seria muito bom usar, porque ele poderia fazer nossa receita ficar muito mais importante, mostrando à sociedade que o governo se importava com sua gente.

Vamos aumentar o limite mínimo de isenção, mas bem pouquinho, só para R$ 2.500,00, hoje ele está em R$ 1.900,00. Não importa a defasagem da tabela, os muitos anos em que não é corrigida… Dona Juju pensou que o povo teria que ser muito mais beneficiado do que isso, mas resolveu não comentar para não azedar a receita. O importante é assinalar que mais pessoas vão ser desoneradas, vão pagar um pouco menos. E isso é bom, não é? Sim, muito bom, mas atenção, não vamos desbalancear nossa receita. O desconto simplificado, aquele de 20%, que muitas pessoas usam na sua declaração, agora é só para quem ganha até R$ 40.000,00 por ano. Não fiquem tristes, minhas amigas, afinal, estamos acostumadas a sobreviver, não é? E não podemos ganhar sempre.

Nessa altura, Dona Juju já estava bem empolgada, inclusive ela viu que após colocar no forno a receita, havia outra coisa importante para falar. Vejam, disse ela, agora que já estamos com a receita em andamento, é preciso cuidar para que seja cozida, temos que ligar o forno! Por isso serão incluídas medidas para fiscalizar mais, são as tais medidas antielisivas. Não se preocupem com o termo técnico, é bem simples entender. São medidas para evitar que o pagamento dos impostos escape ao controle e que os famosos planejamentos tributários (termo elegante que significa como pagar menos impostos ou simplesmente não pagar) façam desandar nossa receita.

Aproximando-se do final do programa, Dona Juju, que era experiente em culinária e modo de fazer as coisas, comentou: nossa receita está ótima e nosso prato vai ficar bom e saboroso. Vamos aprovar as medidas e viveremos muito melhor com essa receita de reforma tributária.

Mas a dúvida estava plantada na cabeça de Dona Juju. Nem ela se convenceu de que a reforma seria boa para todos. A receita estava ali, mas ela estava com muita dificuldade em acreditar que seria melhor para o povo.

Nossa personagem de ficção, Dona Juju, quando apresentou o programa, nem sabia das alterações (para pior) que o relator da proposta no Congresso havia feito. Muito menos que o presidente da Câmara está querendo votar essas medidas assim que terminar o recesso parlamentar, muito pouco tempo.

Assim como ela duvidou, nós também pensamos que fica difícil acreditar que a reforma tributária, se é que se pode falar de reforma, fará a necessária inversão do ônus tributário dos mais pobres aos mais ricos. O principal problema do Brasil é a desigualdade e a concentração de renda e riqueza. E tributar os mais ricos é fundamental para superar esse problema. Junto com gastos bem direcionados, investimentos para gerar emprego e renda, a tributação dos mais ricos é essencial para sairmos da crise econômica em que nos encontramos com menos desigualdade e mais inclusão.

Dados divulgados pelo Banco Central no final do mês de julho dão conta que o valor que pessoas físicas e jurídicas dispõem em paraísos fiscais chegou a mais de R$ 1 trilhão em 2020. Estes recursos, que podem inclusive estar subdimensionados, pois referem-se ao que foi declarado pelos contribuintes, são enviados aos paraísos fiscais para pagar menos impostos no Brasil. Outro motivo é proteger o patrimônio e garantir a sucessão, o que significa pagar menos impostos sobre herança também.

São recursos que poderiam estar sujeitos à tributação e, portanto, contribuir para o financiamento das políticas públicas. Até Dona Juju ficaria confusa, afinal, se essas empresas e pessoas ricas sempre querem o bem do país, por que razão estariam fugindo dos impostos? Não faz sentido, pensaria ela.

O que faz sentido, então? Pesquisa realizada pela Oxfam com Datafolha no ano de 2019 constatou que 77% dos entrevistados defenderiam o aumento de impostos para os mais ricos para financiar políticas sociais e 94% concordavam que o imposto pago deveria ser usado para beneficiar os mais pobres.

Na última pesquisa, de 2021, 84% concordaram com aumento dos impostos de pessoas mais ricas para financiar políticas sociais no Brasil. É um dado extremamente importante e se somou a ele outro resultado muito significativo: 86% afirmaram que o progresso do Brasil está condicionado à redução da desigualdade entre ricos e pobres.

Portanto, há motivos éticos, de justiça, e econômicos para tributar os super-ricos. Também existe vontade popular, conforme mostrou a pesquisa. E projetos de lei já existem e estão aguardando tramitação no Congresso Nacional. É o caso da Campanha Tributar os Super-Ricos. Os 8 projetos de lei, que foram apresentados em agosto de 2020, podem arrecadar aproximadamente R$ 300 bilhões anuais, mas precisam tramitar e serem aprovados. Tributar os Super-Ricos, esse é nosso ingrediente fundamental para começar uma boa reforma tributária.