por Élida Graziane Pinto
“Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
(…) Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.
(…) Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado. (…) Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador .
Termino com as palavras com que comecei esta fala.
A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança” (Ulysses Guimarães)
Neste 32º aniversário da Constituição de 1988, o discurso proferido por ocasião da sua promulgação pelo saudoso Ulysses Guimarães merece ser resgatado.
Desde 1988, a nação tem mudado, mas não tanto quanto desejava Dr. Ulysses. A pandemia da Covid-19 desnudou a persistente desigualdade brasileira, que se revela, entre outras facetas, na falta de acesso dos cidadãos invisíveis [1] ao ciclo orçamentário.
“Bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria” continuam a nos desafiar mesmo passadas mais de três décadas daquele emocionante e paradigmático discurso que pedia mudança por meio de um novo pacto constitucional civilizatório.
A bem da verdade, sequer são vistos pelo Estado brasileiro cerca de 42 milhões de seres humanos. Tamanha miopia faz com que o conceito da cidadania como “quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa” siga sendo tratado, infelizmente, como quimera distante.
Por outro lado, se em 1988 havia 30,401 milhões de brasileiros analfabetos, chegamos a 2020 com ainda chocantes e espantosos 11 milhões de indivíduos cuja cidadania ainda não começou pelo alfabeto.
Se constitucionalizar é civilizar, seguimos majoritariamente descrentes da nossa própria capacidade de conter a barbárie orçamentário-financeira que acomoda e naturaliza tanta desigualdade. Eis a razão pela qual defender direitos sociais na realidade brasileira daquela época e de hoje soa como esforço quixotesco e ingênuo, quando não é rotulado tão somente como fiscalmente irresponsável.
Oportuno resgatar, aliás, a comparação feita por Wolfgang Streeck [2]:
“A assimetria fundamental da Economia Política consiste no fato de as reivindicações de remuneração do capital serem consideradas condições empíricas de funcionamento de todo o sistema, enquanto as correspondentes reivindicações do trabalho (e por igualdade social) são consideradas fatores de perturbação”.
Fato é que, no Brasil, o alargamento do exercício da democracia prometido pela Constituição de 1988 se ressente da inércia e do antagonismo do Estado, a pretexto de limites fiscais intransponíveis. Vale notar, contudo, que aludidas restrições incidem iníqua e seletivamente apenas sobre as despesas primárias que amparam as políticas públicas encarregadas de cumprir os ditames daquela.
Cínicos fiscais alegam a impossibilidade de assegurar recursos públicos suficientes para avançar “no campo das necessidades sociais”, enquanto nenhuma contenção é efetivamente erigida em face das despesas financeiras e da regressiva matriz tributária brasileira.
A mudança almejada em 5 de outubro de 1988 tem sido frustrada, porque sempre há os que alegam que nossa Constituição Cidadão não cabe no orçamento. Mas aqui cabe retrucar acerca da existência de orçamento legítimo fora dos compromissos constitucionais. A indagação estruturante, do ponto de vista normativo, resume-se a: o que é conteúdo e o que é continente nessa relação entre Constituição e orçamento público?
Eleger prioridades e calcular as necessidades sociais para que sejam consideradas como norte de reflexão do orçamento público é papel sistêmico do planejamento setorial de cada política pública para fins de cumprimento intertemporal da Constituição. Não se trata de voluntarismo irresponsável pretender que as leis orçamentárias sejam aderentes ao planejamento setorial e resguardem-lhe recursos suficientes para a execução das suas metas e estratégias ao longo do tempo.
A bem da verdade, exigir que a execução orçamentária seja aderente ao planejamento setorial das políticas públicas e pretender que o ciclo orçamentário seja destinado — intertemporalmente — ao cumprimento dos ditames constitucionais é consequência de vivermos sob a égide de um Estado democrático de Direito.
Irresponsável é a pretensão de esvaziar nosso arcabouço constitucional, invertendo [3] a relação entre Constituição e orçamento para quase sempre ampliar os espaços de captura patrimonialista e manter intocadas nossas iniquidades fiscais.
Neste 5 de outubro de 2020, a pauta nuclear deveria ser exatamente a de identificar o custo de cumprimento dos planos setoriais como conteúdo substantivo do orçamento impositivo, a que se refere o artigo 165, §º10, da Constituição.
Um bom exemplo a esse respeito pode ser visto no esforço empreendido pela sociedade organizada na nota técnica denominada “LDO/LOA 2021 e PEC 188: Piso mínimo emergencial para serviços essenciais, desmonte do Estado pela PEC do Pacto Federativo e necessidade de mudanças urgentes nas regras fiscais” disponível aqui.
Todo esse complexo contexto demonstra bem como é imperativa a necessidade de mudança nas regras fiscais brasileiras, até para que seja respeitada a prioridade alocativa dos direitos fundamentais, assim como para que haja o fortalecimento efetivo da federação.
Precisamos assumir, com honestidade e pragmatismo, a necessidade de revisão do teto dado pela Emenda 95/2016 como o núcleo do debate no projeto de orçamento para 2021. Se, em 2020, vivemos sob o Orçamento de Guerra, no próximo ano precisaremos pautar políticas públicas seguindo a cautela típica do pós-guerra.
Um plano bienal de enfrentamento da calamidade pública traria fôlego temporal e racionalidade fiscal para debatermos a necessidade de equalizar a continuidade do custeio da renda básica emergencial em 2021, sem colocarmos em risco outras políticas públicas igualmente relevantes.
Planejar a transição, sobretudo diante da frágil capacidade de arrecadação de todos os entes da federação, é esforço de justiça fiscal que pode ser feito de forma transparente e equilibrada até para que seja resguardado o custeio dos serviços públicos essenciais.
Se já fomos capazes de rever o teto na Emenda 102/2019 e de adotar prontamente o Orçamento de Guerra por meio da EC 106/2020, não podemos interditar reflexão equitativa sobre nossas regras fiscais e, sobretudo, acerca do regime jurídico da nossa dívida pública.
Um bom ponto de partida para isso seria resguardar sustentação dos repasses federativos — na forma do artigo 107, §6º, inciso I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — em patamar suficiente para custear serviços públicos essenciais, caso a estimativa de arrecadação tributária dos diversos entes políticos siga frustrada ao longo de 2021. Os parâmetros estreitos previstos na Lei Complementar 173/2020 poderiam ser revistos, em diálogo com a exceção ao teto já vigente naquele dispositivo acima citado.
Tal medida fixaria o piso de proteção social no federalismo brasileiro para resguardar a continuidade dos serviços públicos. Trata-se de ler o artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal pelo prisma do periculum in mora reverso. Estamos a propor, diante da frustração da arrecadação tributária em qualquer dos entes da federação ao longo de 2021, que seja vedada a redução do custeio que implique risco de descontinuidade em áreas sensíveis como saúde, educação, coleta de lixo, segurança pública etc. Ao invés disso, defendemos financiamento nacional dos serviços públicos inscritos no anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento na lei de diretrizes orçamentária de cada ente.
Assim, haveria ampliação qualitativa das transferências obrigatórias para que os fundos de participação dos estados e dos municípios (FPM e FPE) passem a se comportar não apenas como mecanismos de repartição de tributos, mas que também equalizem responsabilidades de custeio de despesas nucleares. Aliás, essa é a lógica do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica Obrigatória e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb,) renovado pela Emenda 108/2020.
Considerando que somente a União pode emitir moeda e contrair dívida pública, cabe chamá-la, pois, à responsabilidade solidária na consecução dos serviços que amparam direitos fundamentais, mediante revisão do escopo da LC 173/2020, para que promova uma excepcional regulamentação do artigo 107, §6º, I, do ADCT.
Afinal, no suposto confronto entre a Constituição (em seu 32º aniversário) e o orçamento regido pelo teto da EC 95, devemos nos lembrar que o orçamento e o próprio teto só são legítimos em face daquela. Talvez, precisamente por isso, o maior desafio do PLOA/2021 de todos os entes políticos seja responder — de forma desnudada e dramática — qual é a razão de ser do Estado brasileiro.
Para enfrentar todas essas dúvidas e penumbras interpretativas, precisamos prosseguir no caminho dado pela Constituição, até para que ela siga a ser nossa “luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados”.
Não podemos abdicar do pacto civilizatório que ousamos celebrar ali, até porque, como bem concluíra Dr. Ulysses, “a Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”. Que essa mudança comece a partir da nossa percepção fiscal acerca dos invisíveis e da desigualdade ainda tão naturalizada por dentro do ciclo orçamentário.
Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
publicado originalmente em https://www.conjur.com.br/2020-out-06/contas-vista-32-anos-civilizatoria-luz-lamparina-noite-desgracados
[1] Tal como bem relatado por Simone Rego em https://revistaforum.com.br/debates/os-invisiveis-na-pandemia-por-simone-rego/.
[2] STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Lisboa: Actual, 2013, p. 103.
[3] BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Fernando. A Constituição dirigente invertida: a blindagem da Constituição financeira e a agonia da Constituição econômica. Boletim de Ciências Econômicas XLIX, p. 2/23, Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.