por Maria Regina Paiva Duarte
A tragédia que vivenciamos no Rio Grande do Sul em 2024 é, sem dúvida, a maior catástrofe climática de uma região metropolitana do hemisfério sul. Segundo o professor titular do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rualdo Menegat, trata-se de um fenômeno hidrogeoambiental e socioambiental complexo, que precisa ser visto como um alerta para toda a comunidade global[1].
Na avaliação deste especialista, a produção da catástrofe está relacionada a cinco fatores:
- precipitação extraordinária (800 mm em cinco dias)
- situação geomorfológica (convergência fluvial e lacustre no mar de dentro)
- serviços ecossitêmicos (como a água escoa pela superfície)
- condições infraestruturais (colapso dos serviços essenciais)
- defesa civil e educação (falta de um plano de prevenção)
Para além das palavras e terminologia que teremos que conviver nos próximos anos, todas relacionadas às alterações climáticas que, é preciso dizer, não são novidade, serão necessárias medidas preventivas da parte do poder público, de forma a salvar vidas e minimizar danos e prejuízos. Também a comunidade precisará conhecer melhor o tema e se apropriar do lugar onde vive para exigir que estas medidas sejam efetivamente colocadas em prática.
Ainda que a precipitação tenha sido extraordinária, acarretando uma elevação muito acima do nível das bacias hidrográficas; as águas tenham confluído de forma muito rápida, inundando as terras e cidades do entorno; o transbordamento tenha se deslocado para regiões como a metropolitana, ainda assim, as consequências das chuvas seriam outras, se os alertas emitidos fossem considerados e se as enchentes anteriores tivessem bastado para as providências terem sido tomadas.
As alterações nos ecossistemas e o uso da terra de forma especulativa, destruindo matas, campos e espaços nativos para construções de prédios e empreendimentos imobiliários e para o plantio de monoculturas como a soja, não são espontâneas: decorrem das ações humanas.
A catástrofe não é somente climática, como bem aponta o professor. Decorre também do colapso dos serviços essenciais, ou seja, da atuação insuficiente das estruturas e órgãos públicos, cada vez mais precarizados na esteira da visão neoliberal do Estado. Antes de tudo, o equilíbrio fiscal, a redução dos gastos e investimentos públicos, a diminuição dos serviços oferecidos à população.
E quem é mais afetado pela ausência de políticas e serviços públicos? As comunidades mais pobres e periféricas. A cidade de Porto Alegre sofre com alagamentos frequentes há muitos anos. Moradores de bairros como Humaitá, Vila Farrapos, Sarandi, Navegantes, por exemplo, sofrem desde sempre com as chuvas que transtornam suas vidas, somando-se às várias dificuldades que já enfrentam no dia a dia.
Em janeiro deste anoa capital gaúcha foi severamente castigada por tempestade e vendavais que deixaram muitos bairros alagados e sem luz por vários dias. Justamente a capital do Rio Grande do Sul, terra de José Lutzenberger e da Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente Natural (Agapan), uma das mais antigas organizações não governamentais, onde vicejou o Orçamento Participativo, modelo para várias cidades do mundo e palco de várias edições do Fórum Social Mundial por alinhar todas essas virtudes.
Uma noite de chuva intensa, em um mês de memórias e acontecimentos marcantes, foi suficiente para causar danos impressionantes. A companhia de energia elétrica, privatizada por um valor irrisório no governo do estado na gestão do governador Eduardo Leite (PSDB), não deu conta de atender as demandas da população que ficou muito tempo às escuras e sem previsões de melhora.
Em 2016, também no mês de janeiro, não faz tanto tempo assim, uma tempestade assolou a cidade, devastou parques, atingiu moradias, causou alagamentos. Esses dois fenômenos foram extremos, mas não únicos. E o fato de a cidade ter experimentado os transtornos não serviu para que as autoridades (local e do governo estadual) revisassem o que precisavam revisar, fizessem o que deveria ser feito.
O Observatório das Metrópoles, juntamente com seu núcleo na UFRGS, fez um levantamento da relação entre inundação e renda na região de Porto Alegre. O resultado da pesquisa mostrou que a população menos favorecida foi a mais afetada. Bairros mais pobres, como Humaitá e Vila Farrapos, onde a maioria ganha até um salário mínimo, foram mais alagados, enquanto bairros com população de renda mais alta, como Moinhos de Vento e Rio Branco, tiveram desabastecimento de água e falta de luz, mas não sofreram com alagamentos[2].
Ou seja, os fenômenos climáticos, e esse em especial, embora tenha afetado milhares de pessoas, impactou de maneira mais dolorosa quem ganha menos, quem já foi empurrado em gentrificações, que vive nas periferias das cidades e que, historicamente, sofre consequências mais pesadas.
Aos já conhecidos bairros mais atingidos pelas chuvas, como a região das ilhas, cujas águas transbordam de maneira acentuada, inundaram outros bairros cujas casas de bomba não conseguiram empurrar a água da cidade em direção ao lago Guaíba. Com esse colapso no sistema de bombas, os bairros Menino Deus e Cidade Baixa precisaram ser evacuados.
As ruas viraram cenário de filme de apocalipse, de destruição de cidades por algum fenômeno catastrófico, com engarrafamento para sair dos bairros, sobrevôo de helicópteros, sirenes de ambulância, caminhões do exército e muita gente caminhando e empurrando malas, carregando travesseiros e animais de estimação.
O sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre entrou em colapso. Diques, casas de bomba e o muro da avenida Mauá deveriam suportar níveis de até 6 metros de elevação do Guaíba.
O colapso não foi apenas nesses dois bairros que não inundavam há anos, mas na cidade como um todo. Menos mal que, apesar disso, várias regiões puderam ser evacuadas. Houve tempo para que as pessoas saíssem ou fossem resgatadas, mas, a verdade é que foi tudo muito dramático e custoso em termos materiais, humanos, ambientais, urbanísticos e de saúde. Não teria que ser assim.
Engenheiro agrônomo e especialista no tema, Carlos Atílio Todeschini, diretor do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) em 1997 e do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) entre 2001 e 2004, em artigo publicado no site “aterra é redonda”[3], afirma que “Porto alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil, composto por diques, casas de bombas, pelo Muro da Mauá, por comportas de superfície e gravidade, e ainda pela estrutura predial da Usina do Gasômetro. É considerado um minissistema holandês”.
E a pergunta que fazemos é: por que não funcionou um sistema que deveria ter contido as inundações? Ainda que o engenheiro Todeschini afirme que o evento climático é inédito, com aspectos e consequências ainda a serem analisadas, o sistema poderia ter funcionado se tivesse havido manutenção no sistema.
Várias bombas deixaram de funcionar porque não tiveram a devida manutenção. Foram ignoradas recomendações de técnicos e especialistas. De 23 casas de bombas, apenas quatro estavam funcionando na primeira semana de inundação. As comportas de superfície ou gravidade (submersas) ao longo do muro da Mauá, feitas para serem abertas e fechadas conforme a necessidade de escoamento da água, foram deixadas às intempéries e à corrosão. Não tiveram manutenção e, se lembramos de declarações do governador Leite e do prefeito Sebastião Melo (MDB), nos perguntaríamos para que fariam manutenção e investiriam na prevenção se queriam acabar com o muro?
Em relação à defesa civil, nada é mais revelador que os parcos recursos destinados a ela no orçamento do Estado. Atuaram na medida de suas capacidades e limitações e salvaram vidas, sem dúvida, mas é preciso estar melhor preparado para atuar não somente no limite, quando nada mais pode ser feito.
Órgãos importantes e estratégicos, como a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) e a Secretariado Meio Ambiente do município de Porto Alegre (SMAM), foram desmanteladas. Houve sucateamento não só das estruturas, mas também do conhecimento e da experiência acumulada que, juntamente com a flexibilização da legislação ambiental, fizeram com que a condução estratégica das ações para enfrentar a crise climática tenha sido frágil e insuficiente.
As prioridades tanto do governador quanto do prefeito eram outras. Escolhas que custarão muito caro aos cofres públicos. Bilhões de reais deverão ser investidos na reconstrução e amparo da população atingida. E assim deve ser: o Estado precisa atuar especialmente nos momentos de crise, gastar e investir mais. E não o contrário.
A questão climática, que não se reduz às previsões meteorológicas, vem sendo subdimensionada e inadequadamente tratada por anos. Não foi por falta de aviso. Afinal, desde a década de 70 do século passado, o cientista José Lutzenberger já alertava e apresentava estudos e referências para ampliar a consciência ecológica. Os movimentos de preservação ambiental e cuidados com a natureza vem crescendo e se tornando indispensáveis para enfrentar as catástrofes climáticas.
Agora, precisamos muito mais que consciência ecológica. Sabemos que a generosidade e a solidariedade do povo brasileiro com os gaúchos são inestimáveis. Foram (e ainda são) essenciais para salvar vidas, alimentar e abrigar pessoas necessitadas. Por outro lado, precisamos fortalecer as estruturas estatais, as políticas e serviços públicos garantindo recursos para isso.
A desigualdade influi diretamente na vida das pessoas atingidas. Quanto mais pobres, mais afetadas serão. Algumas organizações da sociedade civil lideram uma campanha pelo Auxílio Calamidade Climática no valor de R$ 1.400,00 por 24 meses para maiores de 18 anos e mais R$ 150,00 por criança e adolescente, conforme inscrição nos programas de governo como Cadúnico, bem como um auxílio de R$ 20 mil para empreendimentos de economia solidária, agricultura familiar e ecológica [4].
Segundo cálculos apresentados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) para a campanha, se estivesse em vigor, o auxílio custaria aos cofres públicos R$ 59 bilhões em dois anos, mais R$ 2,4 bilhões para empreendimentos solidários e de agricultura familiar e ecológica. E de onde podem vir esses recursos?
Os recursos podem ser obtidos tributando altas rendas, grandes fortunas e heranças, cuja insuficiente taxação têm relação direta com a desigualdade alarmante no Brasil. Estudo efetuado pelo instituto Justiça Fiscal (IJF)[5]indica que as classes mais ricas deixaram de pagar de imposto aproximadamente R$ 650 bilhões, entre 2007 e 2018, por conta da regressividade das alíquotas efetivas do imposto de renda para as altas rendas.
A constatação não chega a surpreender. Afinal, a maior parte das altas rendas é isenta por conta da não tributação dos lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas de empresas. Entre 2007 e 2028, conforme o estudo, os contribuintes com rendas mensais superiores a 320 salários mínimos–representam somente 0,1% do total de contribuintes! – possuem aproximadamente 90% de suas rendas isentas.
Será imprescindível ampliar o gasto público para tratar devidamente as consequências desta calamidade. A intervenção do Estado, em seu papel regulador, é fundamental para estabelecer regras e diminuir o aumento da concentração de renda e riqueza. A política tributária deve ser um instrumento por excelência para atuar na redução da desigualdade, assim como a política de gastos sociais. Ambas precisam atuar redistribuindo renda e diminuindo a desigualdade.
Setores empresariais, representados pela Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), tradicionalmente defensores da contenção do gasto público, solicitaram R$ 10 bilhões ao governo federal para a recuperação industrial. Exatamente isso: solicitaram que o governo despenda recursos para recuperar o setor e estimular a economia e a manter empregos.
O mito da “gastança” dificulta e muitas vezes impede o Estado de realizar o que precisa. Felizmente, o governo federal atuou em várias frentes para garantir repasse de recursos de forma emergencial ao Estado e aos municípios afetados, e isso está sendo extremamente importante. Há também iniciativas dos governos estaduais e municipais, mas a situação é extremamente complicada, em função da Lei de Responsabilidade Fiscal que limita os gastos e investimentos públicos.
Já tivemos experiência na pandemia. Agora mais uma vez o Estado terá que aumentar os investimentos e gastos públicos, seja auxiliando pessoas na forma de Auxílio Calamidade por dois anos entregando recursos para pequenos negócios, ou auxiliando setores econômicos como a indústria.
De outro lado, o momento é mais que oportuno para que a tributação dos super-ricos seja levada adiante. O Brasil, que preside o G20, está defendendo uma proposta de taxação anual de 2% sobre as fortunas dos bilionários para financiar ações de enfrentamento das questões climáticas e redução de desigualdades. A previsão de arrecadação é de US$ 250 bilhões, sendo que a proposta está por ser votada nos próximos dias na reunião do G20.
A campanha Tributar os Super-Ricos[6], apoiada por 70 entidades, entre elas o Instituo Justiça Fiscal, tem propostas para tributar mais a renda dos mais ricos, corrigindo distorções como a não tributação de lucros e dividendos distribuídos nas pessoas físicas; correção da tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, com ampliação de alíquotas para faixas de renda mais altas; tributação de grandes fortunas; elevação da tributação sobre heranças e doações; instituição de uma contribuição social para altas rendas, entre outras. Enfim, um conjunto de medidas que tem um potencial de arrecadar em torno de R$ 300 bilhões, recursos que, além de diminuírem a concentração de renda e riqueza no lado da tributação, poderiam ser utilizados para enfrentar a desigualdade do nosso país e auxiliar na reconstrução do Rio Grande do Sul.
E voltamos às causas apontadas pelo professor Menegat, em especial a educação. Para enfrentar os desafios das questões climáticas, precisamos conhecer o lugar onde vivemos. Para isso, é preciso envolver a comunidade, as organizações da sociedade civil, sindicatos e, fundamentalmente, as escolas, onde os alunos e alunas terão a chance de lidar, a partir de suas vivências, com os desafios desta (não tão) nova realidade trágica, que veio para ficar. E, claro, também falar de justiça fiscal, para que as desigualdades sejam minimizadas, se consiga cobrar mais de quem pode pagar mais, como está na Constituição Federal.
Maria Regina Paiva Duarte
Da direção do Instituto Justiça Fiscal e da coordenação da campanha Tributar os Super-Ricos, auditora fiscal aposentada
[1]https://red.org.br/noticia/a-producao-da-catastrofe-no-rs-fatores-climaticos-ambientais-e-descasos-da-gestao-publica/
[2]https://www.ihu.unisinos.br/categorias/639626-desigualdades-se-refletem-em-tragedia-no-rio-grande-do-sul
[3]https://aterraeredonda.com.br/o-negacionismo-ambiental-e-a-inundacao-de-porto-alegre/
[4]https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/organizacoes-sociais-defendem-criacao-de-auxilio-calamidade-climatica
[5]https://ijf.org.br/concentracao-de-riquezas-no-brasil/#:~:text=O%20valor%20m%C3%A9dio%20do%20patrim%C3%B4nio,representam%20quase%2080%25%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o.
[6]https://ijf.org.br/tributar-os-super-ricos/