Todos podem ser juízes

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Com ampla divulgação da mídia nacional, ocorreu um verdadeiro “feito”. Um ex-lavador de carros, tornou-se juiz federal. Isso foi possível, segundo o informado, porque ele dedicou-se ao estudo de resumos e manuais de direito emprestados por uma ex-colega. Segundo a notícia “O novo juiz federal acumulou, durante o tempo que levou para se tornar magistrado, aproximadamente 200 kg de folhas de estudo, xerox e resumos. Um material impressionante. Ele afirma que a disciplina rígida para estudar veio justamente da condição difícil de sua família. Ao se juntarem rumo ao mesmo objetivo, os cinco irmãos conseguiram ingressar em uma faculdade de Direito distante 250 km da casa deles. As mensalidades eram pagas com o trabalho de fazer bordados e costurar cortinas e edredons” (Diário de Pernambuco 06/05/2015).

Realmente, uma história que impressiona. Resta aplaudir alguém com tamanha tenacidade, coragem e capacidade. Uma história impressionante que foi nacionalmente reproduzida e que poderá tornar-se um livro.

No entanto, há uma subliminar armadilha, contida neste feito.

Primeiro, comprova algo que vem sendo denunciado no meio jurídico (por todos, Prof. Lenio Streck). Quem é aprovado em nossos concursos públicos? Quem é aprovado na seleção para integrar a Ordem dos Advogados? Resposta única é óbvia: aquele que conseguir, a exemplo do juiz empossado, ler/decorar resumos, manuais etc.. Aquele, cujo cérebro for capaz de armazenar a maior quantidade de informações, em especial texto de normas jurídicas. Para tanto, as Faculdades de Direito são impelidas a tornarem-se meros “cursinhos preparatórios” para futuras seleções. Salvo honrosas exceções, tornam-se verdadeiros “cursos técnicos de legislação”, com professores empenhados em estimular a memória fotográfica e auditiva, mediante algumas técnicas teatrais que chegam ao ponto de infantilizar os alunos.  Isso é tudo, menos estudar DIREITO!

Segundo, bem ao sabor da mídia nativa, exalta-se o fato de que, qualquer cidadão pode “chegar lá”. Basta o esforço individual que, qualquer pessoa poderá romper com o ciclo de pobreza material que o prende ao meio no qual surgiu. Tese bela e perfeita, porém contraditória com a realidade. Ora, só o fato de o brilhante gaúcho tornar-se manchete nacional, é suficiente para desmontar tal tese, pois o ocorrido é justamente a exceção, que só confirma a regra. Neste país, o destino de cada qual é muito mais determinado pela resposta a duas perguntas: Onde você nasceu? Quem são seus pais? Invariavelmente, é isso que determina o sucesso ou o fracasso de cada qual. Nesse processo, alguns conseguem superar esta perversa sentença que lhes é aplicada ao nascer. São pessoas excepcionais e todos nós conhecemos louváveis exemplos. Porém, não correspondem à regra.

Ao se a exaltar às exceções, esquece-se a regra. Quantas crianças nascidas na periferia deste país conseguirão um dia “chegar lá”? Em cada dez crianças, quantas alcançarão tal feito? Com isso, comodamente, o Estado/Sociedade desincumbe-se da sua tarefa de assegurar a todos algo básico em qualquer país (mesmo nos liberais): a igualdade de oportunidades. Sem acesso ao conhecimento básico de qualidade, vivendo em locais esquecidos/violentos e desprovidos de afeto, como dizer que o sucesso ou o fracasso desta criança dependerá só de seu próprio esforço?

Pobre país este que, quando alguém “de baixo” é aprovado em um concurso para juiz, torna-se manchete nacional! Triste país, que nega a singela igualdade de oportunidade para os deserdados de expectativas e os culpa pelo insucesso de suas vidas! Afinal de contas, quem mandou não se esforçarem!!! O discurso, pois, serve apenas para legitimar a chaga da desigualdade, com a qual se vive como se ela não existisse. 


Marciano Buffon Advogado Tributarista, Doutor em Direito. Professor da UNISINOS. marciano@buffonefurlan.com.br