O Instituto Justiça Fiscal (IJF), em parceria com a ANFIP e a FENAFISCO, realizou o Seminário Reformas DESestruturantes do Estado de Bem-Estar Social, nos dias 15 e 16 de agosto de 2019, em Porto Alegre. O objetivo foi debater a natureza das reformas em curso e seus efeitos na configuração do modelo do Estado.
Na tarde de quinta-feira, dia 15 de agosto, foi realizado um painel interno para auditores fiscais, diretoria de entidades sindicais e convidados para debater a “Conjuntura e as transformações do mundo do trabalho”. Os painelistas foram os professores da UFRGS Antonio David Cattani, da IESP-UERJ Adalberto Moreira Cardoso, da Unicamp Denis Gimenez e o advogado trabalhista Rogério Viola Coelho. O debate foi na sede da Delegacia Sindical do Sindifisco Nacional, na Cidade Baixa.
Concentração de renda é uma tendência internacional
Primeiro a falar, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do IJF Antonio David Cattani destacou que o aumento da concentração de renda é uma tendência internacional. E, segundo ele, desde o início dos anos 1980, esta concentração vem batendo recordes sucessivos. “No Brasil, apesar de políticas públicas alternativas adotadas a partir de 2003, ocorre o mesmo. Ano após ano, as grandes fortunas aumentam em ritmo superior ao crescimento do PIB”, avalia o professor, que lançou recentemente os livros “Ricos, podres de ricos” e “Carí$$imos Ricos, do qual é organizador.
Para Cattani, esse fenômeno tem duas dimensões articuladas. “A primeira concerne às grandes empresas de vários setores: alta tecnologia, agronegócio, grandes indústrias e grandes bancos e financeiras. A parte mais expressiva é designada pelo acrônimo GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft). Apenas quatro grandes empresas possuem capacidade operativa e valorização nas bolsas de valores em volume e importância superiores ao PIB de dezenas e dezenas de países.” Já a segunda dimensão relevante, explica, é o crescimento dos patrimônios pessoais. Uma centena de multimilionários está conseguindo ampliar rendas e propriedades em volumes estratosféricos.
“Crescimento e concentração da renda articulados na esfera das empresas e nas esferas pessoais se traduzem em poder econômico e político com resultados nefastos para a economia e para a política”, destaca. Conforme Cattani, entre vários outros aspectos, é possível salientar a destruição de empresas concorrentes e o enfraquecimento da inovação tecnológica. “Nos últimos anos, apenas os gigantes GAFAM compraram centenas de empresas, eliminando milhares de empregos, mas, também, tirando do mercado firmas que desenvolviam tecnologias mais avançadas.”
Como alerta o professor, o gigantismo empresarial, em alguns casos, verdadeiros oligopólios predadores, estão na origem de processos de grande impacto: “destituição de governos nacionais (Iraque,2003); imposição de preços abusivos (especulação com o preço do arroz em 2008, provocando fome no extremo Oriente); alteração de legislações nacionais (liberação dos agrotóxicos na agricultura no Brasil em 2019); e perda da soberania nacional (entrega do Pré-Sal no Brasil a partir de 2016)”. De extrema gravidade também, continua ele, a capacidade de burlar o fisco. “O (in)civismo fiscal, sonegação associada à evasão fiscal, faz com que, anualmente, centenas de bilhões de dólares transitem por esconderijos fisco-criminais (designados pelo eufemismo de Paraísos Fiscais).
Não bastassem essas dimensões predatórias e abusivas, Cattani denuncia que grandes empresas multinacionais e seus proprietários atuam politicamente impulsionando a extrema-direita. “Koch Brothers, Robert Mercier e centenas de outros financiam institutos, influenciadores nas redes sociais, partidos e grupos extremistas que promovem a desqualificação da política e o enfraquecimento da democracia.”
“Atualmente, a concentração de renda não encontra barreiras. Com poder decisivo sobre governos, sobre o judiciário, sobre a grande mídia, multimilionários atuam de forma diligente na destruição do Estado de Bem-Estar, na privatização dos serviços de saúde e educação, e na apropriação do patrimônio público e dos bens comuns”, concluiu.
Nosso principal problema: a desigualdade em todas as dimensões
O professor do IESP-UERJ Adalberto Moreira Cardoso fundamentou sua análise no grave problema da desigualdade e na urgência de uma reforma tributária solidária, em contraponto à visão amplamente disseminada pelos empresários e grande imprensa de que se paga muito imposto no país.
Adalberto apresentou as propostas mais recentes de reforma apoiadas pelas entidades empresariais (PEC 45 e PEC 110). “Estas propostas prevêm neutralidade e eficiência, simplificação tributária, fim da Guerra Fiscal, melhoria do ambiente de negócios e redução da carga tributária.”
Na sua avaliação, os principais problemas das PECs do mercado são a simplificação contra a Seguridade Social, contra a autonomia dos estados e municípios, contra a progressividade (aumento da carga indireta e esvaziamento da seletividade) e, ainda, a simplificação a favor dos grandes interesses (proponentes e interessados).
Já a proposta construída pelo movimento social, de uma Reforma Tributária Solidária busca a redução das desigualdades sociais. O documento contou com a contribuição de 42 especialistas e conta com 39 artigos e 804 páginas. “Nossa proposta propõe uma redistribuição, regulação e capacidade contributiva, o fortalecimento do financiamento das políticas sociais e o desenvolvimento econômico e social”, salienta.
Segundo Adalberto, são propostas da Reforma Solidária: Isonomia e reestabelecimento da progressividade do IRPF; Tributação da riqueza – IGF; Tributação das heranças; Diversificação das fontes de financiamento da Seguridade Social (Contribuição Social sobre Altíssimos Rendimentos, CVA, CSMF, CSLL); Cide Ambiental; IVA (em substituição ao ICMS e ISS); ITR – Imposto Territorial Rural; imposto de exportação e combate à evasão tributária. “O principal objetivo da reforma é alterar a distribuição do ônus tributário”, explicou.
A íntegra da proposta pode ser acessada em https://plataformapoliticasocial.com.br/justica-fiscal-e-possivel-subsidios-para-o-debate-democratico-sobre-o-novo-desenho-da-tributacao-brasileira/
Mudanças econômicas e tecnológicas no mundo contemporâneo
As mudanças econômicas e tecnológicas e seus impactos no mundo do trabalho foi o tema desenvolvido pelo professor Dr. Denis Maracci Gimenez, do Instituto de Economia da UNICAMP. Ele dividiu sua exposição em três partes: 1. Globalização e o ambiente das transformações econômicas; 2. Transformações tecnológicas e a manufatura avançada; e 3. Os impactos sobre o trabalho e as especificidades brasileiras.
Para o professor, o protagonista do processo da Globalização é a grande empresa americana e sua expansão para o mundo. E citou Belluzo que fala de “globalização americana”. Para ele, “globalização significa, sobretudo, a generalização e a intensificação da concorrência protagonizadas pela grande empresa transnacional”.
Gimenez destaca que a Globalização e a intensificação da concorrência geram três grandes “efeitos colaterais”: 1 – finanças globalizadas; 2 – deslocalização produtiva; 3 – novas ondas de inovações tecnológicas. “Essa é a gênese de uma nova gestão empresarial e a formação de ‘cadeias globais de valor’, uma nova governança corporativa desenvolvida sob o ‘império do acionista’ (geração de caixa e resultados rápidos), e gestão de recursos humanos submetida a essa dinâmica. Além de um processo de fusões e aquisições, com brutal concentração de capital.” Mas, segundo ele, a América Latina e o Brasil são “espaços marginais” do processo de globalização, consequência de um triplo movimento, que de forma sintética pode ser resumido em função da crise da dívida externa na década de 1980, desorganização econômica na década de 1990 e o caráter passivo de corte neoliberal da integração latino-americana e retomada do crescimento no ciclo de commodities nos anos 2000. “O que chama a nossa atenção? Em condições diferentes, são três décadas de perda de espaço no mundo num ambiente de intensificação da concorrência”, avalia.
Sobre as transformações tecnológicas, apresentou como hipótese a tese de James Beniger de que as revoluções industriais respondem a crises de controle. “Na II Revolução Industrial e o advento da grande empresa, o novo, de forma imediata, foi a matriz energética e novos setores: petróleo, eletricidade, automobilística… De fato, surgiu uma nova forma de organização capitalista, com a grande empresa atuando em escala nacional e internacional com enormes dificuldades de organização e controle das atividades. Qual é a reação? a burocratização. Grandes burocracias privadas, emprego de “colarinho branco” e uma nova classe média. Mas qual é a novidade vista em meio ao dinamismo do pós-guerra? O processo de internacionalização da grande empresa. Beniger mostra o avanço de uma “crise do controle” no interior de estruturas empresariais em profunda transformação e expostas a crescente concorrência. A resposta tradicional foi ampliar os controles sobre a burocracia da empresa.
Mas, segundo Gimenez, a realidade mostra algo mais complexo. “Processos simultâneos como internacionalização dos negócios, financeirização da empresa e deslocalização produtiva ampliam os desafios e mostram que ampliar o controle sobre as enormes estruturas burocráticas montadas na II Revolução Industrial parece insuficiente.” Então, vem uma radicalização do processo com a incorporação das novas tecnologias da Terceira Revolução Industrial, como computadores e microprocessadores (centralidade da informação processada) e a redução drástica das burocracias (emprego de classe média). “Os impactos atingiram brutalmente as ocupações rotineiras e repetitivas e as ocupações associadas ao “controle burocrático” (escritório é simbólico), com uma tendência de ‘polarização’ da estrutura social e do mercado de trabalho”, salienta.
Essas transformações trazem enormes dificuldades para projetar o futuro do trabalho, na avaliação de Gimenez. Mas vários estudos apontam tendências importantes. “Oxford Marin School, sob responsabilidade de Carl-Benedikt Frey e Michael Osborne, calcularam que 47% dos empregos existentes nos Estados Unidos são suscetíveis à automação (Frey e Osborne, 2013). A consultoria Mckinsey – entre as principais tendências, aponta que tecnologias de automação, incluindo Inteligência Artificial e Robótica, afetarão 60% das ocupações no mundo, considerando que pelo menos 30% do trabalho constituinte de atividades poderá ser automatizado até 2030.”
Conforme Gimenez, os estudos indicam mudanças históricas superiores a transições anteriores que atingiram a agricultura e a manufatura. “Os cenários construídos sugerem: em 2030, 75 a 375 de trabalhadores (3 a 14% da força de trabalho global) precisarão mudar de categorias ocupacionais. É incipiente o fenômeno da Indústria 4.0 na América Latina, onde os mais importantes países da região ainda não alcançaram as capacidades mínimas em cinco tecnologias habilitadoras da indústria 4.0, como: conectividade, infraestrutura de armazenamento de dados, computação em nuvem, análise de big data, internet das coisas. O Cepal aponta para o risco de que a diferença aumente em comparação aos países desenvolvidos.”
Em síntese, conclui Gimenez, a combinação da estratégia em curso no Brasil, com a reforma trabalhista e a projeção do país para competição em setores de “bens salários”, intensivos em mão de obra barata (alimentos e bebidas, têxteis, calçados etc.), e o que está acontecendo no mundo indica o aumento das desvantagens brasileiras na divisão internacional do trabalho.
“Precisamos defender a Constituição de 1988”
Último a falar, o advogado trabalhista e também integrante do IJF Rogério Viola Coelho enfatizou a urgência de se defender a Constituição de 1988. “Eu proponho que andemos com a Constituição debaixo do braço, como se fosse a nossa Bíblia”, brincou. Segundo ele, a reforma da Previdência foi encaminhada pelo governo através de emenda constitucional porque o direito à Previdência está positivado na Constituição de 1988 de uma forma completa. “Além de consagrado entre os direitos fundamentais, no título segundo, foram positivados na parte orgânica da Constituição, as garantias institucionais destinadas a concretizar o direito. A principal delas é a própria instituição da Previdência Social e o Regime Geral, além dos regimes próprios para os servidores públicos”, explicou.
Conforme Viola, a PEC insidia na regulação existente ampliando requisitos e reduzindo o cálculo dos direitos, de forma a reduzir os gastos sociais para alcançar a economia de R$ 1 trilhão nos próximos 10 anos. “Mas, além disso, a PEC deslocava a regulação posta para legislação ordinária e, de outra parte, autorizava a criação de um regime de capitalização individual, para previdência geral e para os regimes próprios dos servidores. O regime de capitalização, anunciado como Nova Previdência, foi afastado da versão aprovada pela Câmara, assim como o deslocamento para lei complementar da própria regulação do Regime Geral, mas o governo anuncia que voltará a propor esse regime de forma que ele viria a substituir o regime geral existente gradativamente e os regimes próprios dos servidores.”
Para Viola, este regime representaria a abolição do direito, com a dispensa das obrigações de financiar a Previdência conferidas ao empregador e a toda a sociedade, através de tributos. Caberia ao próprio trabalhador fazer uma poupança forçada mediante desconto mensal de seu salário de um percentual a ser investido no mercado financeiro, gerido não pelo próprio, mas por empresa privada de previdência. “Essa proposta afastaria a incidência do princípio da solidariedade consagrado na Constituição, princípio este que gera as obrigações fundamentais para os obrigados eleitos pelo constituinte. Este princípio, que é um princípio jurídico, gerador de obrigações, é considerado fundando do Estado Social. Ele aparece pela primeira vez ainda no século XIX, quando é instituída pela primeira vez a Previdência Social. No Brasil, a Previdência Social nasce nas primeiras décadas do século XX e a obrigação de financiar a Previdência foi imputada a toda a sociedade através de tributos e aos empregadores desde a Constituição de 1934, seguindo na de 1946 e 1969.”
Fica evidenciado assim, conclui o advogado, que o propósito maior do governo ultraliberal de Bolsonaro é chegar à abolição do direito fundamental à Previdência, conquistado pelos trabalhadores, através do afastamento do princípio da solidariedade, que se traduz nas garantias institucionais plasmadas na própria Constituição. “Naturalmente, a resistência ao programa máximo do governo deve se apoiar nos mecanismos de defesa plasmados na própria Constituição.”
O Seminário Reformas DESestruturantes do Estado de Bem-Estar Social prosseguiu, no dia 16 de agosto, das 9 às 18 horas, no Auditório Ana Terra, na Câmara Municipal de Vereadores de Porto Alegre.