Publicado no Conjur, em 9 de março de 2021
Recente estudo publicado pelo Instituto Justiça Fiscal sobre a concentração de riquezas no Brasil apresenta dados alarmantes sobre a realidade do país, particularmente no período mais recente. Por exemplo, entre 2014 e 2017, quando o Produto Interno Bruto teve uma queda expressiva de 8,5%, a riqueza da elite brasileira teve uma alta de mais de 20%. Ou seja, a queda do PIB afetou os mais pobres e as pequenas empresas, mas produziu resultado inverso no topo da pirâmide social, o que demonstra frieza e distanciamento da elite em relação aos problemas vividos pelo restante do país.
Na verdade, são duas faces da mesma moeda. A riqueza não existiria se não fosse a pobreza, em todas as suas dimensões. No caso brasileiro, a concentração de riqueza é maior que a concentração de renda, sendo uma das causas, como apontado no estudo do IJF, a insuficiente tributação das altas rendas e patrimônios das classes mais abastadas, o que nos leva à desigualdade extrema com a qual convivemos. Quais as saídas para reverter tal situação?
A acadêmica Cely Scalon (2007) estudou por meio de survey a percepção das elites sobre desigualdades econômicas e sociais no Brasil. O objetivo do seu trabalho foi captar os valores de justiça distributiva entre as elites e o papel de cada instituição (Estado, capital, mercado, sociedade) em combater a extrema desigualdade que assola o país. A conclusão do trabalho foi de que a elite, assim como povo, é ciente da desigualdade, mas por outro lado é cética em relação à possibilidade de reduzir desigualdades por meio apenas do esforço pessoal (apesar de advogar ardentemente pela solução perante os desafortunados). A elite, mesmo ciente de suas regalias, atribui apenas ao Estado a responsabilidade pela diminuição da desigualdade e não admite que a solução venha por meio de alterações na carga tributária, o que levou Scalon a concluir que, diante de tal cenário, não haveria saída possível.
Otimistas que somos, resolvemos encarar a tarefa de achar uma saída. Atualmente, a cultura, por vezes predatória, da elite brasileira em relação à tributação se reflete não apenas na sua vida privada e familiar, mas também na atuação dos indivíduos nas empresas e nos escritórios de advocacia. Calcados na lógica de que o contribuinte pode tudo, desde que não seja ilegal, profissionais que atuam com tributação na área privada têm contribuído para a construção e perpetuação de um sistema tributário cruel, que apresenta pouco espaço de ascensão social e econômica para os mais vulneráveis e limita o crescimento da economia como um todo.
Por mais que empresas e escritórios tenham recentemente abraçado a causa do ESG (sigla em inglês para environmental, social and governance), preferem ignorar o papel benéfico que podem exercer estruturalmente por meio da adoção de estratégias tributárias que pensem concomitantemente no negócio e na comunidade, ainda que os efeitos de uma decisão sobre pagamento de tributos possam ser até mais danosos que decisões sobre estratégia ambiental.
A classe média, que preenche boa parte dos cargos corporativos nas empresas e escritórios que lidam com tributação, legitima as decisões da elite, pois compartilha da cultura de que o Estado é inimigo da empresa e impede o progresso e desenvolvimento do país. Não vislumbra que a tributação justa pode corrigir vários dos problemas que aponta na sociedade, permitindo ao Estado investir em infraestrutura, educação, segurança, entre outras funções essenciais para o desempenho empresarial.
Assim, o que se propõe aqui é uma “remoralização” dos profissionais que lidam com tributação na esfera privada, em linha com Durkheim (1997, p. 67), segundo o qual qualquer fenômeno econômico ou comercial não pode prescindir de uma análise moral. Ideologias de administração empresarial fundamentam decisões corporativas, portanto, a aceitação de estratégias tributárias que privilegiam sempre o mercado e são contra a sociedade são legitimadas apenas porque não condenadas culturalmente (Grün, 2015; Mansur e Santos, 2019).
Entendemos que o caminho para a “remoralização” passa por inserir orientações de cunho moral e ético em códigos de conduta empresariais para definição de estratégias tributárias, solução pouco explorada, mesmo num período em que empresas e escritórios propagandeiam o ESG.
Saindo da teoria e entrando na prática, o que se propõe é que empresas passem a adotar em seus códigos de conduta cláusulas como a proposta a seguir, cuja redação foi inspirada em dispositivo similar que trata sobre questões ambientais no código de uma grande empresa:
“Buscando a tributação justa
Gerenciamos a nossa Estratégia Tributária buscando uma tributação justa e ética sobre nossos lucros, priorizando o interesse não só dos nossos acionistas, mas de nossos empregados e das comunidades onde estamos instalados. Nos territórios onde operamos, buscamos ser reconhecidos por todos que dependem das nossas atividades como agente positivo de desenvolvimento da economia e de um legado social, econômico e ambiental positivo”.
Ora, o administrador, o conselheiro de administração, o diretor e os consultores e advogados que trabalhassem para a empresa que tivesse código de conduta com a previsão acima possivelmente encarariam decisões sobre planejamento tributário ou contencioso fiscal de outra forma. Aos poucos, a ideologia empresarial de quem lida com tributação corporativa se aproximaria dos interesses da sociedade como um todo, pois mesmo normas não coercitivas impactam positivamente ao indiretamente influenciarem a atitude de indivíduos (Zamir et al., 2014).
A pandemia da Covid-19 veio para mostrar que soluções anteriormente propagandeadas pelo mundo corporativo para redução da pobreza de nada adiantam sem um sistema tributário justo que efetivamente use o Estado para transferir renda e patrimônio. Outras alternativas já tentadas, como o uso do capital social gerado pelas próprias comunidades prejudicadas, o estímulo indiscriminado ao empreendedorismo, a filantropia ou a reformulação de operações associadas ao livre mercado (tais como a concessão de micro crédito) falharam flagrantemente.
Assim, aqueles que participam de decisões sobre tributação corporativa devem refletir sobre as questões com que lidam diariamente, como propostas de reforma tributária, programas de anistia e parcelamento e concessão de incentivos fiscais, levando em consideração a realidade com a qual o país se defronta hoje, aplicando, o que poderíamos definir livremente como uma ideologia da empatia.
Ao propor a inserção de dispositivos de natureza tributária em códigos de conduta empresariais este artigo tenta achar uma solução para o dilema apresentado por Scalon de que a sociedade não se vê como solução para a redução de desigualdades. A estratégia tributária corporativa baseada na ética, na moral e na responsabilidade social ajudará integrar a sociedade na solução, atenuando o efeito político contrário causado por discussões em curso sobre o sistema tributário brasileiro.
Referências bibliográficas
— Durkheim, E. (1997). Leçons de Sociologie. Paris, Quadriage/PUF.
— Grün, R. Decifra-Me ou te Devoro: o Brasil e a Dominação Financeira. São Paulo: Alameda, 2015.
— Mansur, M. S. e Santos, R. S. P. A rede de relações socioeconômicas da Vale S.A.: uma análise estratégia corporativa e seus condicionamentos financeiros. NORUS – Novos Rumos Sociológicos, v. 7, p. 526-550, 2019.
— Putnam, R., Leonardi, R. e Nonetti, R. Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy. Princeton University Press, 1993. http://www.jstor.org.ezp.lib.unimelb.edu.au/stable/j.ctt7s8r7.
— Real, Dão. Concentração de Riquezas no Brasil. Instituto Justiça Fiscal. 24 de fevereiro de 2021. https://ijf.org.br/concentracao-de-riquezas-no-brasil/.
— Scalon, Celi. Justiça como igualdade? A percepção da elite e do povo brasileiro. Sociologias. DOI: 10.1590/S1517-45222007000200007. Dezembro de 2007.
— Zamir, E., et al. Law, Moral Attitudes, and Behavioral Change, in: Zamir, E., Teichman, D. (Eds.), The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. Oxford University Press, 2014. https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780199945474.013.0010.