Por Maria Regina Paiva Duarte*
Toda e qualquer renúncia de receita, tanto da União quanto dos Estados e Municípios, deve ser precedida por lei. É a previsão que conta em nosso ordenamento jurídico, mas não só. As renúncias, caso interfiram no resultado fiscal, devem ser acompanhadas de medidas de compensação por meio de aumento de receita, seja aumentando alíquotas, ampliando base de cálculo, majorando ou até mesmo criando tributo ou contribuição, além de contrapartidas claras de aumento de produção, investimentos e empregos, com fiscalização subsequente.
De acordo com o Tribunal de Contas da União, os benefícios tributários, ou renúncias tributárias, somaram R$ 519 bilhões em 2023, dos quais R$ 68 bilhões foram provenientes de 32 desonerações concedidas neste mesmo ano. Mas, de fato, esse elevado montante de recursos renunciados pelo Estado compensa?
Além de carecer de transparência e de comprovação de resultados, as políticas de desoneração, que não deveriam ser permanentes, acabam transformando-se em instrumento de pressão que setores empresariais que não querem abrir mão de receber esse benefício, mesmo que as contrapartidas se mostrem insuficientes.
Vejamos o exemplo da desoneração da folha de pagamento. É uma renúncia tributária que vigora desde 2012. Segundo informava o governo à época, contribuiria para reduzir custos de produção e gerar empregos, estimulando a formalização do mercado de trabalho e aumentar os investimentos produtivos.
É importante observar que, no começo dos anos 2000, havia uma preocupação bastante elevada quanto à informalidade do trabalho nacional e, em maio de 2011, tomou corpo a proposta de substituir a contribuição previdenciária patronal por uma contribuição sobre faturamento, que aliviasse a carga tributária das empresas, mas que não diminuísse as receitas previdenciárias.
Prevista para um número reduzido de setores, a desoneração da folha de pagamento gradativamente passou a alcançar outros ramos de negócios, incluindo o setor de serviços. Sendo uma das principais fontes de financiamento (mas não a única) do sistema de seguridade social, no qual o regime geral da previdência social faz parte, a política de substituição de uma contribuição patronal sobre salários por uma contribuição sobre faturamento das empresas deveria estar acompanhada de estudos e análises que evidenciassem os efeitos desta política adotada pelo governo.
De fato, desde a sua implementação, o tema da desoneração da folha de pagamento vem sendo debatido em diferentes espaços, especialmente no meio acadêmico. A questão principal a ser analisada era se esse gasto (renúncia) teria efeitos na produção e emprego ou não. Porém, os trabalhos que analisam a questão ou são inconclusivos ou não demonstram efeitos significativos sobre o emprego, os salários e a competitividade, conforme demonstrado em artigo publicado em 2022 (Freitas e Paes).[1]
Os autores deste artigo fizeram uma revisão bibliográfica sobre os trabalhos apresentados e entre eles, ressaltamos o que segue:
Em 2012, foi estimado o impacto da desoneração da folha sobre a formalização do mercado de trabalho e sobre a realocação entre setores de atividade econômica, sendo que os resultados não evidenciaram impacto nos itens analisados.
Em 2014, um trabalho de pesquisa indicou que das quatro seções analisadas, apenas a de Informação e Comunicação gerou resultado positivo relevante tanto para emprego quanto para os salários. Ou seja, a política de desoneração não surtiu o efeito pretendido na maior parte dos setores econômicos avaliados.
Já em 2018, outra pesquisa avaliou quantitativamente o efeito da política de desoneração sobre o volume de emprego e não foi encontrado efeito sobre o emprego formal.
Em 2019, foram avaliados os efeitos sobre as variáveis econômicas e também os efeitos da reoneração conferida pela Lei 13.161/2015. A constatação foi de que a política de desoneração, no longo prazo, foi neutra sobre o emprego no longo prazo, mas, por outro lado, houve a constatação de que a política de reoneração produz uma redução do emprego.
Os valores de renúncia da arrecadação tributária foram de, aproximadamente, R$ 3,6 bilhões (2012), R$ 12,2 bilhões (2013) e R$ 7,8 bilhões (2014).
Considerando as limitações que os estudos realizados enfrentaram, Freitas e Paes avançaram na metodologia e analisaram também a variável competitividade, extremamente importante na política de desoneração da folha de pagamento.
A principal constatação deles foi que a política surtiu efeito quando foi implementada e gradativamente esse efeito de melhoria no emprego foi se atenuando e se tornando praticamente nulo. Com relação à competitividade industrial, somente no período entre 2015 e 2016 houve resultados significativos, com ganhos das empresas desoneradas. Observa-se, porém, que nesse período o Brasil atravessava uma forte crise econômica e os empregos diminuíram muito.
A divergência de resultados nas pesquisas e estudos, inclusive considerando todo o período da desoneração, é considerável a ausência de eficiência global da medida, que tenha gerado benefícios à toda sociedade e não somente para grupos empresariais e/ou setores isolados.
No exame das contas do governo federal realizado pelo Tribunal de Contas da União, o relator, Vital do Rego, afirmou em seu voto que a política de desoneração da folha poderia ser explicada se houvesse comprovação inequívoca dos resultados positivos. Quer dizer, se fosse acompanhada das compensações almejadas. Disse ainda que pode ter havido ganhos nas primeiras fases da desoneração, mas que, ao longo do tempo, a política de desoneração passou a afastar-se dos seus objetivos principais de fortalecer a competitividade, reerguer setores específicos, fortalecer relações trabalhistas e gerar empregos e renda (Voto do Relator na apreciação das contas do governo federal – TC 010.005/2024-2, junho de 2024).
Ao longo dos anos, a política de desoneração, que deveria ser efetivamente avaliada e monitorada, foi se modificando. A partir de 2015, começa a haver um movimento para limitar o uso dessa política corrigir algumas distorções, além de aumentar a alíquota sobre o faturamento de 1% para 2,5% e de 2% para 4,5%, conforme o setor.
Em 2018, foi fixada uma data final para a desoneração da folha de pagamento, 31/12/2020. Mas, em 2020, houve prorrogação do prazo até 31/12/2021 e, posteriormente, o prazo foi estendido até 31/12/2023.
Eis que então chegamos à atual polêmica: ao final de 2023, a desoneração da folha foi novamente prorrogada até 31/12/2027, mas essa prorrogação foi vetada pelo presidente Lula. No retorno ao Congresso Nacional, o veto do presidente foi derrubado e foi promulgada a Lei 14.784/2023, mantendo a desoneração.
Na sequência, o governo federal publicou a medida provisória 1.202/2023 que revogou a integralidade da Lei 14.784/2023 a fim de impedir o recolhimento das contribuições previdenciárias patronais usando como base de cálculo a receita bruta auferida e reonerou de forma gradual as contribuições sobre salários para várias atividades econômicas.
A preocupação com as contas públicas foi o que levou o governo a editar a MP 1.202. Afinal, a desoneração da folha significa, na prática, uma perda de arrecadação de R$ 26 bilhões no ano de 2024.
Ocorre que diante de protestos dos setores afetados e após negociações entre governo e Legislativo, o governo federal recuou e publicou a MP 1.208/2024, revogando os artigos da MP 1.202/2023 que reoneravam a folha de pagamentos, mantendo, assim, a desoneração da folha para 17 setores da economia (a desoneração será discutida no Projeto de Lei 493/2024). Importante observar que a renúncia tributária decorrente da prorrogação da folha não foi considerada na estimativa de receita da União para o exercício de 2024.
Neste ínterim, e tendo em face a perda iminente de arrecadação, foi impetrada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 7633) em que a Advocacia Geral da União, que representa o presidente, alegou que as renúncias fiscais contempladas na Lei 14.784/2023 não foram acompanhadas de demonstrativo do impacto financeiro e orçamentário[2].
Em decisão monocrática, posteriormente referendada pelo pleno do STF, o relator considerou que a Lei 14.784/2023 não apresentou a avaliação do impacto financeiro e orçamentário para criação de despesa obrigatória, conforme disposto no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suspendeu a eficácia da prorrogação da desoneração da folha, pelo menos até que seja cumprido o artigo 113 ou seja, julgada a ação em definitivo.
De fato, o ministro relator determinou o prazo de 60 dias para que governo e Congresso chegassem a um acordo e, até esse prazo, permanece suspensa a desoneração da folha de pagamento.
Ainda na estratégia de compensar as perdas de arrecadação da desoneração da folha de pagamento, o governo federal editou, no início de junho, a MP 1227/2024, restringindo o uso de benefícios fiscais para empresas. Apelidada de “MP do fim do Mundo”, a medida teve forte rejeição no Congresso Nacional, com sérias críticas ao governo.
Para o governo federal, quando da apresentação da MP 1227/2024, o custo da desoneração da folha atingiria R$ 26,3 bilhões em 2024, o que tornaria indispensável apresentar medidas compensatórias e de correção das distorções na sistemática de compensações. Ainda segundo o governo, o acúmulo de créditos de PIS/Cofins estaria fora da normalidade, posto que este acúmulo deveria ser uma exceção e o ressarcimento em dinheiro uma raridade.
Mas não é o que vem ocorrendo: as empresas acumulam créditos e quando se trata de ressarcimento por créditos presumidos, recebem do governo em dinheiro, uma espécie de benefício ou subvenção.
O que ocorre de fato: praticamente metade das compensações de débitos previdenciários, em 2023, foram com créditos de PIS/Cofins. No entanto, cerca de 86% das compensações foram decorrentes de compensação cruzada e somente 14% com a própria contribuição previdenciária.
Já para os débitos de IRRF, as principais fontes são créditos de Ação Judicial e de Pis/Cofins. Também 86% das compensações são de créditos diversos, enquanto 14% são de IRRF.
A MP 1227/2024 manteve a possibilidade de compensação em sistema de não cumulatividade, mas sem compensação cruzada, ou seja, somente com débitos de PIS/Cofins. O direito à compensação no sistema da não cumulatividade foi mantido, mas é preciso que haja tributo a ser pago. Ainda manteve a possibilidade de ressarcimento em dinheiro, dependendo de análise pela administração tributária.
Com relação ao crédito presumido de PIS/Cofins, onde atualmente existe previsão legal que impede o ressarcimento em dinheiro, a MP apenas estendeu esse impedimento a oito casos que permanecem recebendo em espécie, representando R$ 20 bilhões.
No entanto, o presidente do Congresso e do Senado, Rodrigo Pacheco, anunciou ainda em junho que rejeitava sumariamente e considerava como não escritos os incisos que limitavam a compensação dos créditos de PIS e Cofins, ou seja, não haverá tramitação desta parte da MP 1227/24. Os demais dispositivos, em vigor, serão analisados pelo Legislativo.
O que vemos é uma disputa acirrada: de um lado o governo tentando equilibrar as contas para gerar receitas e manter o arcabouço fiscal. De outro, setores empresariais e pessoas da classe dominante empurrando os tributos para as classes menos favorecidas. Já que não abrem mão das benesses fiscais e é necessário que se “pague a conta”, dando como alternativa “menos Estado” – mesmo sendo eles próprios os que mais obtém vantagens.
*Auditoria fiscal aposentada, dirigente do Instituto Justiça Fiscal e integrante da coordenação da Campanha Tributar os Super-Ricos
[1] “Impactos da Desoneração da folha de pagamentos sobre o emprego formal e a competitividade industrial: Uma aproximação pelo método de Difference in Differences com Propensity Score Matching”, de Carlos Eduardo de Freitas e Nelson Leitão Paes, publicado na Estud. Econ., São Paulo, vol.52 n.2, p.281-316, abr.-jun. 2022.
[2] A ADI 7633 teve sua última movimentação em 24/06/2024. O prazo para que Governo Federal e legislativos chegassem a um acordo era de 60 dias a contar de 26/04/2024, ou seja, expirou, sendo que até o momento não se conhece o acordo.