por Marcelo Lettieri e Paulo Gil *
Sob o pretexto justo de reduzir impostos pagos pelos muito pobres, Congresso quer continuar sobretributando o consumo, o que afeta uma população muito maior. E pode esvaziar a parte que interessa do projeto – ou seja, colocar ricos no IR
O principal problema do sistema tributário brasileiro é a sua regressividade, caracterizada pelo fato de se cobrar proporcionalmente menos tributos das camadas de renda mais abastadas da sociedade do que o cobrado das classes desfavorecidas. Em outras palavras, os tributos acabam pesando mais sobre os contribuintes mais pobres, ao passo que os mais ricos são poupados.
Há, porém, dois olhares distintos para a regressividade da estrutura tributária brasileira. Podemos dizer que a característica de regressividade reside na elevada concentração da incidência em tributos indiretos, de aproximadamente 50% da carga tributária bruta. Somente o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência estadual, e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), de competência da União, representam 22% e 9% das receitas tributárias totais do país, quase 2/3 da carga indireta. Uma vez que esses tributos incidem sobre o consumo de bens e serviços, afetam de forma mais intensa a população mais pobre, que destina praticamente toda a sua renda ao consumo básico. Por esta ótica, entretanto, vemos uma consequência do problema, não a sua causa original.
Por outro olhar, a regressividade será encontrada na baixa participação relativa da tributação sobre a renda e o patrimônio no Brasil, quadro agravado a partir das reformas neoliberais da década de 1990. Em 1995, foram criadas duas formas de eximir os sócios e acionistas das empresas em relação ao imposto de renda dos lucros e dividendos recebidos; a primeira foi a isenção, pura e simples; e, a segunda, a criação de um mecanismo de dedução de despesas financeiras fictícias denominadas “juros sobre o capital próprio” (JCP). Os benefícios valem até hoje para os empresários residentes no país ou no exterior.
As contrapartidas da desoneração desses rendimentos do capital foram o acréscimo de Imposto de Renda para os assalariados, devido à não correção da tabela progressiva, e, nos anos seguintes, a elevação significativa da carga tributária sobre os bens e serviços, com destaque para os aumentos promovidos em 1998, de 50% e 90% nas alíquotas da Cofins e da CPMF, entre outras medidas que repercutiriam substantivamente sobre o consumo da população. Em suma, deste ângulo, os pobres e as classes médias suportam uma carga tributária pesada porque os ricos, que já pagavam relativamente pouco, ainda foram desonerados para pagar quase nada.
São conhecidos os efeitos nefastos da regressividade para a sociedade, por acentuar as desigualdades econômicas e sociais e transformar a tributação num instrumento de concentração de renda, riqueza e – como lembra Noam Chomsky, em Réquiem para um sonho americano – de poder.
Inconformado com esta injusta realidade, o presidente Lula foi preciso ao afirmar a necessidade de “colocar o pobre no orçamento e o rico no Imposto de Renda”! Deveríamos fazer o percurso inverso ao daquela reforma dos anos 1990 e apontar agora para a progressividade. Contudo, por diversas circunstâncias, a reforma tributária se iniciou pela tributação indireta, sob as premissas da “simplificação tributária e da “neutralidade”.
A atual proposta de reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados (PEC 45), meramente substitui 05 dos tributos indiretos (ICMS, ISS, PIS, COFINS e IPI), por 03, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e o IS (Imposto Seletivo), trazendo tímidos e incertos avanços na tributação do patrimônio, a depender de regulamentação futura.
Sobre a tributação do consumo, além da reforma não enfrentar o problema da regressividade, pode agravá-la. Isto porque amplia a base de incidência dos novos tributos ao abranger os bens materiais, imateriais e os direitos, não somente as mercadorias e os serviços, como hoje. Prevê uma alíquota única para todas as operações enquanto a reduz para alguns setores específicos e retira a possibilidade de incidência mais gravosa sobre bens e serviços de luxo ou supérfluos, bem como alarga o direito aos créditos tributários para as empresas. E, ainda, promete ressarcir eventuais perdas na arrecadação dos entes federativos. A conjunção desses fatores aponta, portanto, para o aumento da carga total de tributos indiretos.
Preocupa, em especial, a modificação do critério que orienta a tributação seletiva. A proposta prevê a instituição de um Imposto Seletivo sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Mas, contraditoriamente, retira a vinculação do critério da essencialidade na aplicação da seletividade, que possibilita a incidência mais gravosa sobre bens e serviços não essenciais. A previsão, na Constituição Federal de 1988, da seletividade em função da essencialidade representa um freio à regressividade intrínseca aos tributos indiretos.
De outra parte, a proposta caminha no sentido contrário ao da justiça fiscal, quando insere na Constituição Federal o princípio da neutralidade, segundo o qual, o Estado não deve interferir nas escolhas dos agentes econômicos, inclusive, nas suas decisões sobre o que consumir. Ora, essa ideia do velho liberalismo, se aceita pelo nosso parlamento, constituirá mais um obstáculo importante ao cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, determinados no artigo 3º de nossa Constituição Federal.
Aprovadas essas duas mudanças de fundo, a reforma esvaziará o papel do Estado, em linha com as implicações verificadas nas demais reformas de natureza neoliberal, desta feita, aplicada à esfera da tributação. Ao mesmo tempo, constitucionalizará uma proteção tributária aos bens de luxo consumidos pelos mais ricos e a maior carga indireta sobre os consumidores de baixa renda.
A criação do mecanismo de cashback foi a forma encontrada pelos proponentes da reforma para, aparentemente, tentar contornar o problema. Segundo o texto aprovado pela Câmara, Lei Complementar estabelecerá as hipóteses de devolução do IBS a pessoas físicas. O mesmo dispositivo foi previsto para a CBS.
Todavia, o sistema proposto será capaz de tratar da regressividade da tributação indireta? Entendemos que não, servirá tão-somente para mitigar o peso dos tributos para os extremamente pobres.
Dois conceitos devem ser considerados na avaliação do cashback no âmbito da discussão sobre a PEC 45: a compensação e a devolução. A compensação se opera pela transferência de um valor monetário a um extrato de pessoas classificadas por sua condição de pobreza extrema. Neste caso, o cashback guardaria semelhança com programas de transferência direta de renda, como o Bolsa Família. A devolução, como indica o nome, ocorre pelo ressarcimento às pessoas selecionadas, segundo o mesmo critério, do valor do imposto incidente nas aquisições de bens e serviços realizadas, destacado nas respectivas Notas Fiscais. As duas modalidades poderiam ser enquadradas como políticas públicas de gasto focalizado.
O cashback, em tese, seria a devolução do excesso de imposto cobrado sobre o consumo, considerada determinada capacidade contributiva, de modo a corrigir a regressividade própria dos impostos dessa natureza. Na prática, a experiência internacional tem mostrado ser um mero adicional a programas do tipo Bolsa Família. Na Colômbia, por exemplo, ordenação semelhante foi instituída no ano de 2020, e funciona como programa social administrado pelo Ministério de Assistência Social.
O relatório da reforma cita como exemplo de cashback o programa “Devolve RS” do estado gaúcho. Não obstante o “Devolve RS” adotar uma sistemática adicional de efeito residual, a ação principal é entregar R$ 100,00, a cada trimestre, para as famílias registradas no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico). O valor é notoriamente insuficiente para fazer frente ao peso da tributação indireta, pois representa 2,6% de um salário-mínimo, em comparação à alíquota padrão do IBS, que pode chegar a 28%.
No caso da PEC 45, se considerarmos (i) a unificação do ICMS e do ISS na mesma base, ampliada, e com igual alíquota; (ii) a concessão ampla de créditos para empresas e na exportação, (iii) a redução de alíquotas para alguns setores; (iv) a impossibilidade de aplicação da seletividade aos bens e serviços não essenciais; e (v), devido aos fatores anteriores, a previsão de manutenção ou crescimento da atual elevada carga tributária sobre o consumo; podemos concluir por um aumento da incidência média para os contribuintes, com efeitos mais graves aos trabalhadores de baixa renda em geral, não restritos sobre os que estão no CadÚnico. Por exemplo, trabalhadores de baixa renda, como as empregadas domésticas e aqueles que ganham até 3 salários-mínimos, sofrerão aumento de carga e não estarão cobertos pela sistemática do cashback.
Nesse sentido, apesar de ter surgido como proposta de solução para corrigir o efeito de elevação da carga tributária sobre os mais pobres, na verdade, o cashback somente alcançará os extremamente pobres e a graduação dessa cobertura dependerá de como será regulamentado. Poderá transferir dinheiro para cerca de 20 milhões de pessoas do CadÚnico, enquanto a reforma avultará o peso dos tributos indiretos para um número muito maior de pessoas.
Além disso, assim que instituído, Estados e Municípios passam em certa medida a suportar parcela de um programa de assistência social que deveria ser de responsabilidade da União. Alvo de reiteradas alterações tributárias que esvaziaram suas competências e reduziram seus recursos nos 35 anos seguintes à Constituição Cidadã, serão penalizados com desembolsos adicionais para tal finalidade.
Não desconsideremos, por fim, os efeitos danosos do cashback ao funcionar como legitimador da acentuação regressiva da reforma da tributação sobre o consumo. Este mecanismo acaba sendo utilizado como argumento para tornar mais palatável o aumento da tributação sobre grande parcela dos mais pobres, em troca de alguma mitigação para os extremamente pobres. Na mesma linha, termina por servir de justificativa para reduzir a pressão sobre a outra reforma, deixada para um segundo momento: a da tributação efetivamente progressiva sobre a renda e o patrimônio.
O caminho para “colocar o rico no Imposto de Renda” sequer começou a ser trilhado, mas a aprovação da PEC 45 na Câmara dos Deputados já serve de desculpa a setores das classes dominantes brasileiras bradarem um “chega de aumento de tributos” e, assim, evitarem a reforma que verdadeiramente importa: a da renda e da riqueza.
As forças políticas progressistas ainda podem atuar para reverter os principais problemas do relatório aprovado pela Câmara. Entre as alterações imprescindíveis estão a retirada dos dispositivos da PEC que inserem o princípio da neutralidade e os que os materializam, esvaziando as prerrogativas do Estado brasileiro. É fundamental, também, vincular a seletividade na tributação indireta à essencialidade dos produtos e serviços, como ocorre atualmente, mantida no texto a vinculação, acrescida e bem-vinda, às externalidades negativas na saúde e meio ambiente. No mesmo sentido, é preciso retirar do texto todas as limitações à aplicação de tributação superior aos bens e serviços supérfluos e/ou de luxo. Segundo as razões de justiça fiscal, não há por que estabelecer apenas uma alíquota padrão. Não é demais repetir, menor carga sobre os ricos significa maior tributação sobre os pobres.
Enfim, a tributação é uma das principais arenas onde os conflitos entre as classes e suas frações se expressam com mais força. Os super-ricos não dormem no ponto. Mas os movimentos sociais organizados podem ser o ator social que fará a diferença, desde que se mobilizem.
(*) Marcelo Lettieri é Doutor em Economia e Conselheiro do Instituto Justiça Fiscal.
Paulo Gil é Mestre em Economia e Diretor de Assuntos Institucionais do Instituto Justiça Fiscal
Fonte: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/reforma-tributaria-por-que-o-cashback-nao-ajuda/