Professor titular de Sociologia da UFRGS e associado ao IJF, Antonio David Cattani explica como os(as) milionários(as) influenciam, de forma predatória, a política, a economia e a sociedade brasileira
João de Barro – De que forma a liberdade do capital resultou no aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas em escala mundial?
Antonio Cattani – Nos últimos 30 anos, ocorreram vários fenômenos que configuram o atual quadro socioeconómico: a) fim dos controles estatais sobre o setor financeiro; b) redução de barreiras à circulação do capital produtivo e financeiro especulativo; c) deslocamento de mega empresas industriais para países do Terceiro Mundo (especialmente para a China); d) crescimento da dívida pública. Nesses e em outros processos secundários, o que conta é a questão da escala dos empreendimentos e das transações. Rapidamente, as empresas internacionais se transformaram em mega corporações com capacidade de deslocar plantas industriais e transferir bilhões de dólares num curto espaço de tempo. Os paraísos fiscais se transformaram em refúgio seguro, garantindo isenção de impostos e agilidade para essas operações. A globalização é efetiva para os grandes grupos cada vez mais dominados pelo setor financeiro. Um CEO de uma mega corporação tem hoje mais poder do que presidentes de dezenas de países. Concentração de riqueza se traduz em concentração de poder. Os multimilionários reforçaram sua participação no controle da grande mídia, passaram a eleger parlamentares, governadores e presidentes. Com isso, conseguiram reduzir ou mesmo eliminar impostos sobre suas rendas e patrimônios. Proporcionalmente, a classe média, os trabalhadores e os mais pobres pagam mais impostos recebendo cada vez menos serviços públicos qualificados. Dados comprovam: 1% e, sobretudo, o 0,1% da população teve seus ganhos multiplicados por três em poucas décadas, enquanto mais de 80% permaneceram no mesmo patamar de rendimentos. Em países como os Estados Unidos, em torno de 10% da população está mais pobre do que há 30 anos.
JB – Em seu livro “A riqueza desmistificada”, o senhor defende que, para que tenhamos uma sociedade mais equilibrada, precisamos compreender o papel dos ricos. De acordo com os seus estudos, como os ricos e os super-ricos influenciam a política, a economia e a sociedade brasileira?
AC – Existe um total desconhecimento sobre a riqueza desmedida. De modo geral, aparecem apenas informações positivas sobre os multimilionários: sua capacidade empreendedora, o lado glamoroso da sua vida social etc. Pouco se sabe a respeito das práticas escusas dos grandes negócios, sobre as fortunas construídas graças à sonegação e privilégios fiscais. Os recentes escândalos de corrupção de agentes públicos desviam a atenção sobre crimes mais graves. Por exemplo, as pessoas ficaram indignadas com o que aconteceu com a Petrobrás: milhões e milhões de reais subtraídos da empresa para financiar partidos políticos. O montante dos desvios corresponde a menos de 1% da sonegação empresarial. Segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, em 2015, o montante sonegado atingiu 388 bilhões de reais. Mais de 70% desse valor é de responsabilidade de grandes empresas. A dívida previdenciária é da ordem de 400 bilhões, também grande parte devida por mega corporações.
A influência dos multimilionários sobre a economia é decisiva. A lógica financeira impera no Brasil há muito tempo. Os juros altíssimos inviabilizam negócios e penalizam os consumidores. Quem ganha com isso? Rentistas, banqueiros, especuladores. Quem está no comando do Ministério da Fazenda e do Banco Central? Prepostos do setor financeiro. O mesmo ocorre no Congresso Nacional. A bancada ruralista, das grandes corporações e, de novo, do setor financeiro, controla 3/4 dos parlamentares. O lobby das grandes empresas impede qualquer reforma tributária que retire privilégios dos setores dominantes.
Embora gravíssimas, essas distorções não revoltam a maioria da população. Qualquer tentativa de denunciar esses crimes e injustiças é logo tachada pela grande mídia como atentado ao “livre mercado”, como penalização do esforço empresarial. As pessoas são exploradas, pagam mais impostos do que os milionários e, mesmo assim, acham que todos merecem o que têm.
JB – O senhor afirmou que é muito difícil estudar os ricos, pois os dados são fracos e as fortunas são escondidas. Como o senhor conseguiu desenvolver a sua pesquisa em um terreno tão espinhoso?
AC – É óbvio que os multimilionários não têm nenhum interesse em revelar o montante e a forma de obtenção das suas fortunas. Os censos estatísticos não conseguem captar o fenômeno da concentração de renda e de como ela é transmitida. A Receita Federal reconhece que mesmo as declarações para o imposto de renda são subestimadas. Há muito tempo que não é feita a atualização do patrimônio, declarado pelo seu valor histórico. Por exemplo, um terreno urbano que consta por R$ 1.000,00, hoje pode estar valendo R$ 1.000.000,00, mil vezes mais. Outro exemplo: é notório que brasileiros multimilionários possuem propriedades no exterior (Punta del Este, Miami, Londres etc) e, sobretudo, contas em paraísos fiscais. Nada disso aparece para o fisco e menos ainda para o pesquisador. Por isso, é necessário trabalhar com dados indiretos, estudos internacionais, inclusive muitos deles produzidos por bancos e agências especializadas (Merril Lynch, Capgemini e Allianz para os serviços financeiros, Knight Frank sobre o mercado imobiliário de luxo, Crédit Suisse sobre fortunas). Cada vez que estoura um escândalo do tipo Mossack Fonseca, UBS, HSBC e outros, dezenas de brasileiros estão nas listas. O Tax Justice Network e o Instituto Justiça Fiscal (ijf.org.br) divulgam regularmente informações sobre os privilégios das grandes fortunas e sobre o incivismo fiscal dos poderosos.
JB – Mesmo o Brasil tendo se destacado no combate à pobreza nos últimos anos, a distância entre ricos e pobres continuou crescendo. Como isso é possível? E por que a desigualdade é um problema tão grave quanto a miséria?
AC – As políticas públicas aplicadas até 2015 conseguiram retirar milhões de pessoas da miséria. Mas nada foi possível fazer para taxar as grandes fortunas ou para reduzir privilégios indevidos. A riqueza concentrada nas mãos de poucos permite ganhos consistentes e, como veremos a seguir, em percentuais mais elevados do que a renda salarial ou os ganhos do pequeno e médio empresário. Tomemos o exemplo de um trabalhador ganhando R$ 1.000,00 por mês. Caso ele consiga negociar um aumento de 10% além da inflação, ele receberá R$ 100,00 a mais por mês ou R$ 1.200,00 no final de um ano. Um rentista que ganha 10 milhões por mês, mesmo que a taxa de retorno seja de 6% a.a., no final de um ano terá ganho 600 mil. A distância entre os dois aumentou. Não bastasse isso, conforme demonstrou Thomas Piketty (O capital no século XXI), quem tem grandes volumes de capital aplicado consegue rendimentos muito superiores às taxas normais do mercado. Com os seus 10 milhões, o hipotético rentista citado poderá ter no final de um ano um ou dois milhões a mais.
Existem incontáveis estudos demonstrando que quanto maior a desigualdade maior é a incidência de problemas sociais gravíssimos: violência, incivilidade, falta de confiança, fraco desempenho escolar, aumento de problemas mentais. Sob os aspectos econômicos, a riqueza desmedida não gera empregos, torna os investimentos cada vez mais especulativos e predatórios.
JB – Em julho passado, o Congresso Nacional aprovou a Reforma Trabalhista proposta pelo Governo Temer. De que forma a nova lei deve aprofundar a desigualdade social no País?
AC – Todos os estudos internacionais comprovam que as desregulamentações do tipo aprovado no Congresso tendem a reduzir ganhos salariais. A equação é simples: muitos perderão, poucos serão beneficiados. Concentração de renda junto com menos rendimentos leva a menos consumo e menos empregos, fomentando um ciclo desastroso para o País.
Disponível em http://www.apcefrs.org.br/upload/paper/JB-09-2017.pdf