Reflexões sobre a democracia do "capitalismo selvagem", por Leandro Ferrari

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O país inteiro parece estar falando de democracia, democracia…
Acho importante refletir sobre como isso se opera em nosso país e em muitos outros.
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Cremos que democrático é quando podemos votar no Governante. Mas seria bom relembrar que adotamos uma repartição de poderes, cláusula imutável da Constituição Federal, que é o documento basilar da nossa nação.
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Então democrático é também quando votamos no Executivo e no Legislativo. Mas e o Judiciário? Primeira pausa para reflexão. O Governante não precisa ser letrado, os legisladores também não, mas o Judiciário sim. O Judiciário precisa conhecer o Direito? E quem faz as leis não? Quem as executa não? Repartição de poderes? Os três com os mesmos níveis de poderes, mas escolhidos diferentemente? Um tanto contraditório na condução de uma nação. Uma série de argumentos já vem à mente tentando justificar o que já temos. Isso não é reflexão.
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Passado esse ponto, analisemos a nossa “democracia”. Cremos que exercemos a democracia quando elegemos nossos representantes para o Executivo e para o Legislativo. Mas quem elegemos? Aqueles que conhecemos, quando conhecemos, se é que chegamos a conhecer.
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Democrático, nessa pequena análise, seria ter a oportunidade de conhecer todos os candidatos, e que todos tivessem a mesma oportunidade de serem conhecidos. Democracia pela metade não é democracia. Por exemplo, se você tem de votar entre duas opções, deve-se ter a oportunidade de conhecer e compreender ambas, concorrência em pé de igualdade. Conhecer somente uma das opções é escolher induzido, não é democracia. Qualquer rápida lida em estratégias de manipulação é o suficiente para saber que as pessoas podem ser facilmente induzidas e mesmo assim acharem que estão no controle da decisão, o que dirá em condições desiguais de concorrência.
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Na nossa nação o conhecimento dos candidatos ocorre com a divulgação, com as propagandas favorecidas pela campanha eleitoral, que é financiada por doações de atores privados, empresas ou pessoas físicas. Aliás, cabe uma observação: sindicatos não podem fazer doações.
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Vendo os dados sobre as doações de campanha de 2014 no endereço de Internet http://donosdocongresso.com.br/, projeto levado a cabo pelo Instituto Justiça Fiscal (https://ijf.org.br/), podemos fazer os seguintes levantamentos:
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1. Houve quase 2 bilhões em doações, R$ 1.943.414.915,22
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2. Houve 208.137 doadores, sendo dividido em:
a. 14.328 pessoas jurídicas, doando R$ 1.154.973.344,28 (59.43% );
b. 193.809 pessoas físicas, doando R$ R$ 788.441.570,94 (40.57%)
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3. A média de doação de pessoas físicas resulta em R$ 4.068,14. Porém, analisando melhor, se computarmos as doações acima de RS 200.000,00 (mais de 227 vezes o salário mínimo atual) veremos que temos cerca de 30,49% de todas as doações de pessoas físicas concentrado em 452 indivíduos, isto é, R$ 240.429.538,84, cuja média resulta em surpreendentes R$ 531.923,76, logo, mais de meio milhão por pessoa física, o que equivaleria a mais de 604 salários mínimos por um único doador.
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4. Em contrapartida, o restante das doações de pessoa física, R$ 548.012.032,10, foi doado por 193.357 indivíduos, resultando em uma média de R$ 2.834,20, equivalente a pouco mais de 3 salários mínimos.
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Com isso posto, outra pausa aqui seria bem-vinda para uma reflexão a respeito das doações de pessoa física. O montante de doações individuais acima de R$ 200.000,00, mais o total de doações de pessoas jurídicas representam mais de 71% do total destinado para a campanha eleitoral de 2014, ou seja, mais de dois terços do total vieram do meio empresarial e de pessoas que dispõem de recursos muito acima do que poderia suportar a maior parte dos brasileiros.
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Sobre as doações de pessoas jurídicas, entra-se em uma análise mais intrincada. Milton Friedman, Prêmio Nobel em Ciências Econômicas, diz não acreditar em democracia em um certo sentido, no sentido da democracia da maioria, o que seria a tirania da maioria, conforme diria Alexis de Tocqueville e outros antes dele. Se as pessoas jurídicas patrocinam em mais de 59,43% a campanha eleitoral, o conhecimento dos candidatos por parte dos eleitores é em maior parte induzido pelas escolhas das pessoas jurídicas.
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O endereço de Internet donosdocongresso.com.br é mais claro quando detalha que, de um total de 25.363 candidatos, somente 5.125 candidatos foram beneficiados pelas doações, sendo que menos de 4% desses receberam mais de 50% do total de doações.
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Mas o que uma pessoa jurídica intenta ao doar para um candidato?
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É sabido que a pessoa jurídica busca incessantemente o lucro, é uma diretriz fundamental das corporações, base de sua própria existência. As corporações tomaram a forma jurídica de pessoa, com direitos garantidos como o da privacidade, um ser com amparo legal que tem como fundamento agir em interesse próprio, sendo esse o imperativo legal.
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Para maximizar sua diretriz fundamental, uma corporação precisa reduzir ao máximo às intervenções que um governo poderia exigir, por exemplo exigências relacionadas à conservação do meio ambiente, a garantias de direitos trabalhistas, direitos humanos e sociais, além é claro da tributação.
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O premiado livro e documentário “The Corporation: The Pathological Pursuit of Profit and Power” (“A Corporação: a patológica busca do lucro e poder”, 2003), de Joel Bakan, traça um diagnóstico, chegando à conclusão que uma corporação é um psicopata. Como um psicopata é uma pessoa incapaz de sentir preocupação por outra pessoa, incapaz de sentir empatia, de sentir culpa, de sentir remorso, além de ter a ausência de noção de obrigação moral de respeitar a lei e convenções sociais, classificar o comportamento de uma corporação com o de um psicopata não é exagero – e o documentário é muito esclarecedor quanto a isso.
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Portanto, quando a maior parte das doações de campanha eleitoral provém de pessoas jurídicas, os cargos eletivos da nação se tornam ferramentas de uso das corporações para que estas conquistem sua diretriz fundamental. Aparentemente as pessoas pelo Brasil inteiro escolhem livremente os candidatos, mas na verdade são escolhidos predominantemente via indução de campanha eleitoral, que é majoritariamente financiada por corporações, ou psicopatas, visto de outro ângulo.
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Para ilustrar melhor, poderia citar alguns exemplos aqui no Brasil onde a política a favor das corporações prevaleceu em detrimento da sociedade, como o caso do amianto, até hoje em produção, ou dos agrotóxicos (agora eufemisticamente chamados de produtos fitossanitários), ou então da obrigatoriedade dos airbags, que só em 2014 ocorreu, ao passo que desde 1992 existia projeto de lei para isso (PL nº 3.375), ou da revogação da Lei Ferrari (Lei nº 6.729, de 1979), conforme solicitado pelo Ministério Público Federal em agosto de 2013, à Presidência da República, subsidiado por um amplo estudo e após muita queixa da população sobre os lucros das montadoras.
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No entanto, trago dois exemplos da dita “maior democracia do mundo”, os EUA. O primeiro é sobre os retardantes de chamas e o segundo é sobre o gás de xisto.
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A fim de reduzir o número de incêndios nos EUA, a indústria química foi favorecida pela exigência governamental de que todos os tecidos vendidos deveriam receber o tratamento de retardantes de chamas, polibrominato difenil éter ou PBDE, com respaldo legal em um boletim técnico (TB 117). Com o passar dos anos o número de pessoas diagnosticadas com câncer teve um aumento significativo em decorrência do contato direto que as pessoas tinham com uma infinidade de produtos domésticos, de sofás a pijamas para crianças, muitas mortes ocorreram. A batalha legislativa para derrubar o TB 117 foi longa e árdua. O lobby das empresas químicas era grande, ocultado até mesmo por uma ONG (Citizens for Fire Safety Institute), que se revelou pertencer às maiores fabricantes do mundo de retardantes de chamas. Pela revelação de todo o caso, o jornal Chicago Tribune ganhou um prêmio Pulitzer.
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Em meados de 2009, a geopolítica dos EUA em relação ao petróleo tomou outro rumo com o aumento da exploração do gás de xisto. Propagandeado como solução ecológica e barata, se mostrou tão poluidora quanto qualquer outro combustível fóssil e barata porque as externalidades não entram no cálculo, isto é, a técnica do fraturamento hidráulico (fracking) para a extração do gás de xisto consiste na perfuração de um poço vertical, no qual, uma vez alcançada a profundidade desejada, a broca é girada 90°, perfurando agora em sentido horizontal, até uma distância que pode chegar a 3000 metros. A seguir uma mistura de água, substâncias penetrantes e químicas, que podem chegar a 600 substâncias, é injetada no terreno sob alta pressão. Além das substâncias poluírem todo o lençol freático imediatamente acima, o gás metano é liberado para a superfície. No Estado da Pensilvânia (Campo de Xisto de Marcellus), inúmeros habitantes estão sendo obrigados a abandonarem suas terras devido à alta poluição das reservas de água, sendo que inclusive perderam judicialmente o direito de receberem água potável de outras fontes, por vias de indenização.
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Em resumo, o que chamamos por “democracia” está muito mal formulado, o mínimo que devemos fazer nos tempos atuais é refletir bem sobre essa questão. Uma nação que é grandemente influenciada por corporações, é influenciada por um ser que age sem moral, um ser amoral, um ser que se abstrai das consequências de seus atos. Ainda que os exemplos dos EUA pareçam distantes, é fato corriqueiro em nosso país, basta lembrar da recente barragem da mineradora Samarco, que aliás, no dia 12/04/2016, houve audiência na Câmara dos Deputados para tratar da responsabilização pelos danos do desastre e a audiência estava praticamente vazia, em contraste com toda a movimentação em torno da questão do impeachment da presidente.
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Ressalto que, conforme o próprio Joel Bakan pondera, não se trata de extinguir as corporações, mas o fato é que se concedeu direitos e poderes em demasia, a ponto de que, por exemplo, elas podem livremente circular em paraísos fiscais, longe da tributação das nações, moverem suas fábricas para países com menos exigências trabalhistas, gerando desemprego no país de origem e subemprego no outro país, abusarem dos recursos naturais, provocarem desastres ambientais e continuarem afetando negativamente uma sociedade sem sequer serem confrontadas.
[Recomendo os documentários Limite Tóxico (Toxic Hot Seat, 2013) e Terra do Gás 2 (Gasland 2, 2013)]

Leandro Ferrari é Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil