Previdência: mídia e banqueiros contra-atacam

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Proposta do governo desgasta-se na sociedade e no Congresso. Jornais e TVs tentam salvá-la. Veja, ponto por ponto, como seus argumentos são questionáveis

Por Glauco Faria

Já é público que os deputados estão enfrentando inúmeras pressões para se posicionarem contra o projeto de “reforma” da Previdência proposto pelo governo Temer. Levantamento do Datafolha mostrou que a maioria dos parlamentares da Comissão Especial que analisa o tema discorda dos principais pontos da PEC 287. A insatisfação popular cresce, como deixaram claro as manifestações vistas em um período que costuma ser só festivo, o Carnaval.

Mas é apenas do governo o interesse em desmontar a Previdência pública. As instituições financeiras também contam com a aprovação da PEC;, obviamente, a mídia tradicional, que já estava a favor da proposta, intensifica seus esforços. Em seu editorial desta quinta (2), o jornal O Globo afirmava no título que “as reformas precisam se sobrepor à crise”, enquanto, no dia anterior, o Estadão estampava sua opinião no título “O fatal rombo da Previdência”. No mesmo dia, o colunista Celso Ming alertava sobre aqueles que contestam a “reforma” governista com o título “Aposentadoria sob risco”. Aliás, o editorial de O Estado de S. Paulo foi tão ao gosto do Planalto que o perfil do Twitter do Portal Brasil, oficial do governo, o citou para defender a PEC 287 (ver imagem acima).

Na Globo News, no programa Em Pauta desta quarta-feira (1), a comentarista de economia Mara Luquet falou sobre “mitos” relativos à “reforma” da Previdência. A suposta desconstrução deles feita pela jornalista, favorece, é claro o governo. Ela invocou um seminário realizado na semana passada na fundação Getúlio Vargas para fundamentar seu ponto de vista. Mas quais seriam esses “mitos” desvendados?

1. Há déficit ou não?

“Você tem até um filme rolando na internet dizendo que não existe déficit na Previdência. Todos os que tavam lá concordam que existe déficit, mesmo os contrários, mesmo pessoas que defendem esse vídeo que está na internet. Qual a divergência? A divergência é de onde vem o déficit. Tem especialistas que dizem que o déficit vem do próprio sistema da Previdência, outros dizem que não, que o déficit vem da renúncia fiscal que foi feita e por conta da DRU”, diz Luquet.

O filme a que se refere a jornalista é um vídeo feito pela Anfip. A peça irritou tanto alguns deputados governistas que dois deles teriam sugerido ao governo que fosse à Justiça pra censurá-lo. Mas, curiosamente, entre os especialistas que ela diz concordarem com o déficit está Denise Gentil, economista da UFRJ – justamente uma das principais vozes que desmente o conceito de déficit alegado pelo governo. Difícil imaginar que ela diga que o “rombo” existe, não?

No seminário, Gentil falou: “Vou tentar mostrar que os gastos com a Previdência e os demais gastos sociais não são gastos que atrapalham o investimento público e, mais ainda, que o suposto déficit de que o governo fala não é necessariamente assim. É como um copo com água pela metade, ele pode estar meio vazio ou meio cheio, depende de quem olha pro copo”. Não parece uma afirmativa de quem concorda que existe déficit, ainda mais quando se usa o adjetivo “suposto” antes do substantivo.

Em entrevista ao Previdência, Mitos e Verdades, a economista falou sobre o conceito de “rombo” no sistema previdenciário. “É uma estratégia de ataque amplamente difundida pela mídia, que tem um grande interesse em divulgar que há déficit na Previdência. E por que? Porque os principais patrocinadores da grande mídia no Brasil são os bancos, que têm um grande interesse em desmontar a Previdência pública não só para ampliar o espaço de suas carteiras de previdência privada, mas para ter o total controle sobre o orçamento público”, afirmou.

O déficit apresentado pelo governo é um conceito baseado em duas estratégias. A primeira é separar a Previdência da Seguridade Social, sendo que o artigo 194 da Constituição diz, com todas as letras, que a “seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.” Ou seja, isolar o sistema previdenciário do resto da seguridade é um artifício contábil que viola o texto constitucional.

A partir daí, vem a segunda estratégia. Simplesmente se ignora o restante das receitas que financiam a Previdência, restando somente as contribuições de empregados e empregadores. Ou seja, não entra a parte do governo, que compreende Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); Contribuição Social Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Contribuição para o PIS/Pasep, Contribuições sobre concurso de prognósticos e receitas próprias de outros órgãos e entidades que participam do orçamento, entre outros.

2 – A “reforma” prejudica os mais pobres

“Não, os números mostrados lá dizem o seguinte: os mais pobres, ela [a “reforma”] afeta menos. As pessoas que se aposentam por idade são justamente as mais pobres, e os homens se aposentam com 66 anos, a idade mínima proposta é de 66 anos. Quem sofre na verdade com a idade mínima? É quem se aposenta com 55 anos, mas esse pessoal na verdade está na camada mais rica, pessoal que recebe os benefícios maiores.”

Essa é uma ideia muito interessante já expressa anteriormente pelo Estadão, em uma matéria cujo título dizia “Idade mínima no INSS deve reduzir desigualdades regionais, mostra estudo”. O raciocínio é fantástico: para “reduzir desigualdades”, o importante não é melhorar as condições de quem tem mais dificuldades para acessar os benefícios previdenciários, mas sim “dificultar para todos” a possibilidade de se obter o direito. Nivelamos por baixo.

Mas a “reforma” não trata só de idade mínima. Ela tem muitos outros pontos. Ao igualar os gêneros, ela vai fazer com que as mulheres mais pobres, que hoje se aposentam por idade, tenham que trabalhar mais para receber o benefício. Isso sem contar com a aposentadoria rural. Hoje, é necessário que o trabalhador rural cumpra o requisito da idade mínima de 60 anos para homens e 55 para mulheres e ter tempo de contribuição de 15 anos, feita por alíquota sobre a produção. Caso as novas regras sejam aprovadas, a contribuição passa a ser individual, com mínimo de 25 anos, valendo a mesma idade proposta para a aposentadoria urbana, 65 anos para ambos os gêneros. Milhões de pessoas ficarão excluídas da Previdência Social. Vale lembrar que a população do campo é uma das mais vulneráveis socialmente.

Ainda é preciso destacar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que atende a idosos e deficientes com renda familiar inferior a 1/4 de salário mínimo por pessoa. A PEC 287 pretende aumentar a idade para a concessão desse benefício de 65 para 70 anos, além de realizar sua desvinculação do salário mínimo. As pensões também serão desvinculadas do piso nacional, caso aprovada a PEC. Atualmente, 55% do total de 7,41 milhões de pensionistas da Previdência Social ganham o valor do piso nacional. Com a desvinculação, estarão desprotegidos, podendo ganhar menos que o mínimo.

Em relação aos novos pensionistas, o benefício será equivalente a 50% do valor da aposentadoria mais 10% por cada dependente. Se a viúva não tiver filhos, passa a receber 60% do valor. Caso seja um salário mínimo, vale a mesma regra.

Ainda é preciso considerar que a PEC 287 veda a acumulação de pensão e aposentadoria. Imagine, por exemplo, um casal que ganha, cada um, o correspondente ao piso nacional. Em caso de morte do cônjuge, a renda familiar cai de dois para um salário mínimo. Tal regra é tão cruel que foi alvo, no citado seminário da FGV, de críticas de um dos históricos defensores da “reforma” da Previdência, o economista Fabio Giambiagi. “A proposta do governo é bastante extrema no sentido de que há uma vedação da possibilidade de aposentadoria e pensão. Isso me parece algo que caberia repensar”, disse.

Fica difícil dizer que a proposta do governo não vai prejudicar os mais pobres…

3 – A importância de cobrar os sonegadores

Nenhum especialista contrário à “reforma” disse – ao contrário do que afirma Mara Luquet – que basta cobrar os sonegadores para acabar com o calote à Previdência pública. O que diversos economistas têm criticado é a incoerência do governo: diz que um setor tem déficit e, ainda assim, abre mão de receitas…

No estudo Reformar para excluir?, o que se pede é que os artigos 194 e 195 da Constituição sejam cumpridos, garantindo que as receitas da Seguridade Social sejam aplicadas… na Seguridade Social. Sem incidência, por exemplo, das Desvinculações das Receitas da União (DRU), que tiram 30% do montante.

O documento mostra que o valor subtraído da Previdência por meio do não pagamento do Confins, CSLL e PIS-Pasep chegou a R$ 157 bilhões em 2015. Já as isenções alcançaram o total de R$ 11,393 bi em 2016. Elas beneficiam setores poderosos. Um exemplo: o agronegócio, responsável por 52,5% do valor total das exportações brasileiras em 2015, participou com apenas 0,5% na arrecadação da Previdência Social somente 0,5% em 2016.

Sim, ainda temos a dívida ativa. Entre 2011 e 2015 o estoque dos valores devidos e não pagos à Previdência passou de R$ 185,8 bilhões para R$ 350,7 bilhões. Apenas 0,32% desse total foi recuperado. A sonegação estimada só no caso da Previdência em 2015 é algo em torno de R$ 47 bi.

Ou seja: o governo faz corpo mole com quem deve e continua sonegando – mas mira nos direitos dos trabalhadores.

4 – Os 49 anos de trabalho para se aposentar

“Na verdade, mesmo hoje, ninguém se aposenta com benefício integral. Só quem se aposenta com benefício integral são os mais pobres, que recebem o salário mínimo, porque abaixo do salário mínimo não pode ficar. Esse pessoal recebe o benefício integral. Os mais ricos já não recebem o benefício integral. Por que? Porque estão se aposentando aos 54, 55 anos e são mordidos pelo fator previdenciário. Aliás, a questão do benefício integral, as pessoas não se aposentam com benefício integral nem mesmo no exterior, em outras economias”, alegou Mara Luquet.

A questão não abordada pela jornalista é que o endurecimento das regras não atinge apenas quem quer ter o direito à aposentadoria integral. As mudanças propostas praticamente impedem que boa parte da população tenha direito ao benefício previdenciário.

“O trabalhador só terá direito à aposentadoria integral aos 65 anos, se ele entrar no mercado de trabalho formal aos 16 anos, que é idade mínima legal para o trabalho, e contribuir ininterruptamente por 49 anos. Sabendo-se que raramente algum trabalhador permanece empregado continuamente por tanto tempo, dadas a alta rotatividade, a informalidade e o desemprego prolongado, diminui a possibilidade de vir a gozar de aposentadoria, assim como reduz o valor do benefício (em relação às suas contribuições). Essas condições não são exigidas sequer em países desenvolvidos, pois implicariam aposentadoria apenas aos 72 anos de idade, para quem tenha ingressado aos 23 anos no mercado de trabalho”, diz o documento “Previdência: Reformar para excluir?”.

Nesta reportagem, o professor de Economia da FEA-USP, José Roberto Savoia, afirma que nem em países desenvolvidos a regra para se chegar à aposentadoria integral é tão dura. Na Alemanha e França, por exemplo, é possível obter os 100% da média de contribuições em 43 anos. A propósito, na Alemanha, a expectativa de vida dos homens é de 77 anos, enquanto no Brasil é de 71,9.

Ainda há outro problema a se considerar, mais grave para as classes mais baixas. Hoje, para se aposentar por idade, é necessário comprovar 15 anos de contribuição. Se a “reforma” for aprovada, o trabalhador só poderá se aposentar com 25 anos comprovados, o que torna muito mais difícil o acesso à aposentadoria – parcial ou integral – para a população mais pobre, vítima da precarização do trabalho.


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