Previdência – mais uma versão do "me engana que eu gosto"

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Que este é um país que gosta de mentiras parece não haver dúvidas. Agora estamos diante de mais uma, ou melhor, de muitas delas sobre o tema da previdência. A questão tem preocupado estudiosos e autoridades responsáveis desde que ficou clara a brusca mudança demográfica pela qual estamos passando e suas consequências sobre as duas pontas da pirâmide etária: menos jovens para serem educados e passarem a produzir e, por outro lado, muito mais velhos a exigir amparo estatal (e privado) no sistema de saúde e previdenciário.

Nosso sistema previdenciário público é o de repartição em que os trabalhadores da ativa são responsáveis pela arrecadação que vai suportar os gastos com os inativos. Diferentemente do regime de capitalização, em que cada trabalhador arrecada para formar um fundo que vai financiar sua própria aposentadoria, o sistema de repartição impõe uma espécie de solidariedade inter geracional; os mais novos sustentam os mais velhos, que, por sua vez, já fizeram o esforço de sustentar “os seus velhos” e assim sucessivamente. Por detrás da nobre ideia de solidariedade há uma conta, bem objetiva, que depende de muitas variáveis para fechar. Depende, obviamente, da relação entre o número de aposentados e o de trabalhadores da ativa, mas também, da relação entre os salários médios da ativa e o rendimento médio das pensões e aposentadorias, da inflação, dos aumentos de produtividade, do crescimento do PIB, da expectativa de vida e, sem esgotar a lista, da regra de aposentadoria. Esta inclui, principalmente, o tempo de contribuição, a idade mínima para se aposentar – se existir tal regra – e o cálculo do valor da aposentadoria em função das contribuições passadas.

Pois bem, estamos vivendo a ebulição do debate sobre a modificação da regra (alterada pela última vez no final dos anos 1990, com a entrada em vigor do chamado fator previdenciário) em plena vigência da mudança demográfica. Como se não bastasse, e não por acaso, tal discussão se dá em meio ao processo de fragilidade política da Presidente Dilma, com total descontrole de sua base parlamentar. Há cerca de dois meses o Congresso propôs a retirada do fator previdenciário, que prejudicava os trabalhadores ao colocar um redutor sobre o valor da aposentadoria, e em seu lugar estabeleceu uma regra discutida há anos que soma a idade com o tempo de contribuição para validar as aposentadorias; a soma deve ser no mínimo igual a 85 para as mulheres e 95 para os homens, com o que o valor da aposentadoria alcançará um valor sem redutores.

Feitas as contas, ficou claro que esta nova regra beneficia os trabalhadores e aumenta o déficit da Previdência. O Governo reagiu com uma proposta que aumenta a tal soma, progressivamente no intervalo de poucos anos, até ela atingir 90 para mulheres e 100 para homens. Com isso, joga o problema para frente e o coloca no colo de sabe-se lá que governante. Refeitas as contas, se a proposta de Dilma passar no Congresso, verifica-se que seu Governo e os três seguintes terão até mesmo vantagem, pois os trabalhadores tenderão a postergar sua aposentadoria para se beneficiar de uma regra que vai lhes garantir rendimentos mais altos na velhice. Assim, durante mais alguns anos a Previdência arrecada e não gasta, constituindo a vantagem. Mas, a partir de 2030, com uma relação menor do que cinco trabalhadores ativos para cada aposentado – e considerando-se que esta relação hoje é de cerca de nove e será rapidamente decrescente ao longo do tempo –, a conta vira e o déficit previdenciário aumenta muito e depressa.

Uma boa maneira de evitar este problema seria contar com uma economia maior e com trabalhadores mais produtivos, em que a arrecadação previdenciária crescesse, seja pelo aumento do PIB seja pelos salários maiores. Observe-se, portanto, que este não precisa ser obrigatoriamente um jogo de soma zero, em que para as aposentadorias crescerem, o déficit da previdência tem que aumentar.

Ainda que se considerem todas as outras variáveis que influenciam o cálculo, o que será que vai acontecer daqui a somente quinze anos? Se não tiver ocorrido uma evolução política importante no País – e nada indica que deva ocorrer –, a maioria do Congresso vai votar uma nova regra. Se esta nova regra será contra ou a favor do governo, depende do jogo de forças do momento. Mas o que realmente importa é que a grande tensão política atual em torno da questão previdenciária tem muito pouco a ver com uma preocupação genuína com a aposentadoria dos trabalhadores, e sim com a mesquinha disputa política do presente. Logo ali na frente, se convier, muda-se novamente a lei. E teremos mais uma mentira para contar para os jovens que estão nascendo, ou seja, que a regra discutida duramente em 2015 não vale mais.

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Flávio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.


Disponível em http://www.sul21.com.br/jornal/previdencia-mais-uma-versao-do-me-engana-que-eu-gosto/