O Brasil não precisa reduzir sua carga tributária. Precisa é de um sistema progressivo, em que renda e patrimônio dos que possuem mais sejam também atingidos pelo fisco. Por Jaciara Itaim, na Carta Maior
Muito espaço tem sido dedicado pelos órgãos de imprensa, ao longo dos últimos tempos, ao debate a respeito da política fiscal do governo. Nos tempos da hegemonia esmagadora absoluta do pensamento neoliberal, falar em Estado era sinônimo de heresia e desastre. Assim, quando se mencionava a política fiscal, tudo se resumia à recomendação de que houvesse a transferência dos ativos públicos para o setor privado, por meio dos processos de privatização. E que a retirada da administração pública da atividade econômica se combinasse com a busca da meta do Estado mínimo, com a consequente redução da sua necessidade de arrecadação. Tudo parecia incrivelmente simples, naquele mundo onde imperava o viés reducionista de forma generalizada.
A política fiscal, porém, é um fenômeno muito mais complexo e mais intrínseco à própria forma capitalista de organização de nossa sociedade do que supõem os protofilósofos do liberalismo, travestidos de um pseudolibertarianismo conservador. Afinal, o desenrolar da crise econômica internacional – deflagrada a partir da quase pulverização do sistema financeiro norte-americano em 2008 – demonstrou que a ação e a presença do Estado são essenciais, inclusive para a própria sobrevivência do capital.
De uma forma sintética, pode-se caracterizar a política fiscal como sendo o resultado de políticas públicas envolvendo a realização das despesas estatais e a arrecadação de receitas a serem administradas pelo ente estatal. No entanto, há um extenso leque de tipos distintos de recursos, assim como de dispêndio público.
Existem as receitas orçamentárias no sentido estrito do termo, às quais se somam os valores obtidos, por exemplo, pelos lucros auferidos pelas empresas estatais.
Pelo lado das despesas, convivem os gastos correntes com pessoal e as necessidades de investimento em infra-estrutura. Desde aqui, assim, já podemos adiantar o enorme equívoco de se tratar de forma homogênea e linear formas econômicas que apresentam natureza tão distinta.
POLÍTICA FISCAL: INSTRUMENTO DE POLÍTICA ECONÔMICA
Outro aspecto relevante e pouco mencionado nesse debate refere-se à característica federativa de nossa organização política. O modelo resultante da Assembleia Nacional Constituinte de 1988 foi um federalismo que conferiu poderes expressivos inclusive para os entes das esferas municipal e estadual. Assim, além da União, os estados e os municípios também podem exercer uma atividade econômica relevante. A eles foi conferida a capacidade de tributação, de endividamento e de realização de despesas orçamentárias, bem como a possibilidade de constituírem suas próprias empresas estatais. Em razão disso, a capacidade de implementação da política fiscal da União ganhou um grau de dificuldade adicional, pois passou a depender também das regras de sua articulação com as finanças dos poderes subnacionais. Essas são, aliás, as bases do desenho institucional de nosso federalismo fiscal, um modelo carregado de particularidades e sensibilidades a toda prova.
Assim como a política monetária ou a política cambial, a política fiscal é um dos instrumentos fundamentais para o exercício da política econômica em qualquer nação do mundo. Em tese, a busca de algum grau de equilíbrio entre receitas e despesas no plano das finanças públicas seria uma tendência recomendável, uma meta que se poderia sugerir em nome do princípio da razoabilidade. Ocorre que a macroeconomia de um país não pode ser comparada de forma tão primária e simplista – como querem fazer alguns neoconvertidos ao liberalismo de manual – às regras da economia familiar ou das finanças domésticas. Apesar disso, em sua sanha raivosa e colérica contra qualquer tipo de presença do Estado na economia, os representantes do financismo e parte dos colunistas a serviço da banca lançam mão de verdadeiras pérolas do “non sense” a esse respeito. Raciocínios com cuja lógica nem eles mesmos estão de acordo, mas que parecem fazer sucesso junto ao grande público desinformado. São frases do tipo “não se pode gastar o que não tem”, “assim como fazemos em casa, o governo deve poupar antes de investir” e outras do gênero.
Esse tipo de populismo demagógico e rasteiro trabalha com as dificuldades de se compreender a dinâmica da macroeoconomia. Ora, uma das grandes diferenças entre a capacidade econômica do Estado e a dos indivíduos, famílias ou empresas reside justamente em sua soberania. O ente público tem uma capacidade muito especial de atuar na dinâmica da economia. Por um lado, ele pode emitir a moeda nacional, de livre circulação e reconhecida por todos os atores como o meio de troca. Por outro lado, ele tem o reconhecimento e a legitimidade para constituir mecanismos de endividamento, a exemplo do lançamento dos títulos de seu tesouro. Finalmente, ao contrário dos demais agentes econômicos, o Estado pode lançar mão dos tributos de forma impositiva sobre o conjunto da sociedade. Vem daí, aliás, a origem do termo “imposto”.
AUSTERIDADE FISCAL PARA QUEM?
Isto posto, vem a questão de tentar compreender um pouco mais a fundo a tão propalada necessidade de se conferir maior “austeridade na condução da política fiscal”. Belas palavras, ótimas intenções. Mas qual o seu significado de fato, para a implementação da política econômica? Se o sentido de tal interpretação do conceito de “austero” for a simplificação reducionista de que o Estado não pode gastar mais do que aquilo arrecada de tributos a cada exercício, logo veremos que se trata de uma postulação carregada de más intenções em sua origem. Isso porque, como vimos, há formas específicas de obtenção de receitas, assim existem despesas de qualidade diversa das demais.
O Estado pode obter receitas extraordinárias por meio de endividamento, por exemplo. Ao lançar novos bônus e vender esses títulos aos interessados, ele troca um papel com uma promessa de pagamento futuro por dinheiro líquido no momento presente. Caso esses recursos sejam utilizados em investimento a ser realizado pela administração pública, por exemplo, é provável que esteja bem justificado o cumprimento dos serviços financeiros embutidos nas cláusulas da dívida constituída para esse fim.
Pela ótica da despesa, cabe raciocínio semelhante. Quando o Orçamento destina valores expressivos para rubricas vinculadas a benefícios para a previdência social, por exemplo, estamos frente a um fenômeno em que mais de 40% dos gastos voltarão automaticamente para os cofres públicos em um horizonte muito curto de tempo. Tendo em vista a característica acentuadamente regressiva de nossa estrutura tributária, as camadas de renda mais baixa contribuem proporcionalmente mais para os cofres públicos do que as de renda mais alta.
Como os impostos que incidem sobre o consumo de bens e serviços são universais, toda a renda dos setores mais próximos da base da pirâmide social estará sujeita à tributação chamada indireta. É o que acontece no momento em que o indivíduo vier a comprar um litro de leite, adquirir uma geladeira, utilizar o transporte público, consumir energia elétrica, usar seu telefone celular e assim por diante.
QUESTÃO FISCAL: ENTRE ESSÊNCIA E APARÊNCIA
Porém, nos tempos mais recentes o discurso da austeridade fiscal não vem sozinho. Ele está muito mal acompanhado da exigência do cumprimento da meta de superávit primário. Isso significa que não apenas é necessário um “equilíbrio” nas contas públicas. Trata-se de uma malandragem retórica, com finalidades muito bem definidas. De acordo com tal proposição, os responsáveis pela política econômica devem exigir um enorme esforço da sociedade, passando a promover cortes e contingenciamentos nas rubricas orçamentárias vinculadas às despesas sociais e aos investimentos. Com o pequeno “detalhe” de que os gastos relacionados ao pagamento de juros e demais serviços da dívida pública não sofrerão nenhum tipo de limitação. Ou seja, corta-se nas despesas essenciais para que sobrem recursos do orçamento para cumprir os contratos “imexíveis” com o sistema financeiro.
Assim, há aspectos múltiplos envolvidos na tão famosa questão fiscal. Os mesmos setores que reclamam do suposto exagero dos gastos públicos ou do excesso de endividamento em relação ao PIB são os mesmos que divulgam os impostômetros da vida e propõem que o Estado reduza sua carga tributária. Postulam por menos gastos e brigam por menores receitas. Ora, esse modelo é exatamente o mesmo daquele que antes eles enchiam a boca com orgulho para recomendar: Estado mínimo. Isso porque não haverá condições financeiras para a administração pública manter os direitos sociais constitucionais previstos, tais como saúde, educação e previdência social, para ficar apenas nos mais conhecidos. O caminho fica aberto para a via do aprofundamento ainda maior da privatização já em marcha.
A busca de um novo modelo de equilíbrio da questão fiscal passa necessariamente pela melhoria do gasto público, disso não resta a menor dúvida. No entanto, não me parece que o Estado deva gastar menos; ele precisa gastar melhor e oferecer serviços de qualidade mais elevada para a população. O Brasil não precisa reduzir sua carga tributária. A estratégia passa pela introdução de um sistema de impostos mais progressivo, onde a renda e o patrimônio dos que recebem e possuem mais sejam também atingidas pelo fisco. Estão aí na agenda há décadas itens como: i) a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas previsto no art. 153 da Constituição; ii) alíquotas progressivas sobre as rendas mais elevadas; iii) IPVA sobre jatos particulares e iates; iii) imposto sobre transações financeiras; iv) atualização da cobrança do Imposto Territorial Rural; entre tantos outros mecanismos de maior justiça social e tributária.
O debate proporcionado pelo ano eleitoral deveria ser uma excelente oportunidade para que tais questões sejam levantadas e discutidas por toda a sociedade. Com a palavra, os candidatos.
Jaciara Itaim é economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.
Disponível em http://ttfbrasil.org/noticias/index.php?id=193