PEC 241: UMA RUPTURA NO ESTADO SOCIAL

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Dão Real Pereira dos Santos*
Sempre que partimos de premissas equivocadas, chegamos a soluções equivocadas. A PEC 241 parece ser um destes casos. A premissa é de os gastos sociais cresceram de forma acelerada, acima da inflação, produzindo um quadro de agudo desequilíbrio fiscal e determinando um aumento da dívida pública federal. Diante desta situação, o governo está propondo, como única alternativa, o congelamento dos gastos primários por 20 anos.
Não há dúvidas de que os efeitos desta proposta impõem uma drástica redução do tamanho do Estado, no que se refere às garantias sociais, para as próximas duas décadas. O congelamento dos gastos com saúde, educação, assistência, segurança, etc., cujos valores só podem ser corrigidos pelo índice de inflação, significará de fato uma redução destas rubricas, na medida em que a população deve crescer em torno de 10% neste período e a população idosa deve duplicar. Mesmo a alternativa de converter o teto em piso, para saúde e educação, não altera os efeitos, pois os gastos gerais não poderão superar os gastos do ano anterior acrescidos do IPCA. Assim, para garantir aumentos superiores à inflação para saúde e educação, será necessário corrigir outras rubricas abaixo da inflação ou até reduzir outros gastos, como pagamentos de salários, por exemplo.
É indiscutível que ainda estamos longe da implantação definitiva do estado de bem-estar social previsto na Constituição Federal. Este é um processo em construção que exige um esforço continuado de aumento real na alocação de recursos nas áreas sociais. A redução das desigualdades sociais depende do aumento de qualidade das políticas públicas. Não se pode esperar excelência da educação pública, por exemplo, enquanto o gasto público por aluno na escola pública for quatro vezes inferior ao gasto médio por aluno numa escola particular.
Assim, a proposta de redução dos gastos sociais significa a ruptura do processo de construção do estado de bem estar, previsto na Constituição de 1988.
Voltando ao início, será que a premissa justificadora da PEC é realmente verdadeira? Vejamos como se comportaram os gastos nos cinco últimos governos (FHC I, FHC II, LULA I, LULA II, DILMA I). Utilizando dados do FMI, de 1995 até 2014, Grazielle David (INESC) demonstra que o crescimento das despesas totais do setor público, considerando cada período governamental de forma agregada, esteve estabilizado, em torno de 7,7%, em média, tendo apenas um período de pico, com crescimento de 10,16%, de 2007 a 2010, e que se refere às políticas anticíclicas adotadas pelo governo para enfrentar a crise de 2008. Quando se analisam os gastos primários do governo federal, percebemos claramente uma forte tendência de queda no seu crescimento, saindo de um crescimento de 10,17% do PIB no período de 2003 a 2006, chegando a 9,1% do PIB no último período considerado, de 2011 a 2014.
Por outro lado, o crescimento da arrecadação total do setor público e da arrecadação primária do governo federal está diminuindo de forma expressiva, saindo de cerca de 7% para 5,4%, no último período governamental. O crescimento das receitas primárias, em torno de 11% em cada período, patamares superiores ao crescimento das despesas primárias, simplesmente teve uma redução drástica, de mais de 50% no último período considerado. Segundo a economista Laura Carvalho (USP), somente no ano passado as despesas caíram mais de 2%, enquanto a arrecadação caiu 6%, já descontada a inflação.
Portanto, a premissa de crescimento descontrolado das despesas não é verdadeira. O desequilíbrio fiscal é fruto muito mais de um grave problema de redução de receitas públicas. Também não é razoável atribuir ao simples crescimento de gastos sociais acima da inflação um fator de desequilíbrio fiscal, pois num estado social em construção é razoável imaginar que este tipo de gastos devam experimentar crescimentos reais, pois respondem a demandas relacionadas com os próprios objetivos fundamentais da República previstas no Artigo 3º da Constituição Federal. Foi nesse sentido que, desde 2006, o salário mínimo passou a ser corrigido pela inflação acrescido da variação do PIB dos últimos anos.
A falta de receitas, por outro lado, decorre de vários fatores conjunturais, tais como a crise econômica, desonerações fiscais, falta de investimentos na administração tributária, estrutura administrativa e jurídica que dificulta a cobrança dos créditos tributários. Até mesmo o descaso do governo na solução da grave crise na Administração Tributária Federal, há quase dois anos mergulhada numa paralisia injustificável, é fator que concorre para este quadro. Estima-se que somente nesse período mais de R$ 11 bilhões deixaram de ser arrecadados.
Ora, se o problema são as receitas públicas e têm natureza conjuntural, porque atribuir ao crescimento dos gastos sociais a razão principal para as políticas de ajuste fiscal, e propor soluções de natureza estrutural? Parece claro que objetivo principal é reduzir o tamanho do Estado.
Não fosse assim, as medidas mais adequadas para vencer os desequilíbrios fiscais seriam o combate eficaz à sonegação, a modificação do sistema tributário de forma a tributar as altas rendas e riquezas e a implantação urgente de medidas eficazes para tornar efetiva a cobrança dos créditos tributários lançados.
Focar o problema somente nas despesas ofusca as graves distorções do sistema tributário, que desde 1995, isenta do Imposto de Renda, as rendas obtidas da distribuição de lucros e dividendos, o que, via de regra, beneficia as classes mais ricas do país. Somente com a revogação desta isenção já seria possível ampliar a arrecadação em cerca de R$ 50 bilhões. Segundo dados do Sinprofaz, cerca de R$ 450 bilhões estariam sendo sonegados todos os anos. Há mais de R$ 1,5 trilhão inscrito em dívida ativa, dos quais cerca de R$ 240 bilhões já estariam em condições de serem efetivamente cobrados.
Os valores das desonerações fiscais também são alarmantes. De 2007 até 2015, as desonerações saltaram de 3,95% do PIB para 4,93% do PIB, de R$ 168 bilhões para R$ 282 bilhões.
Diversos estudos do IPEA demonstram a natureza regressiva do sistema tributário brasileiro. Neste contexto, os gastos públicos têm sido essenciais na mitigação dos efeitos perversos da tributação regressiva sobre as rendas das camadas mais pobres. São as transferências de renda, via previdência social e assistência, e os investimentos em saúde e em educação públicas, os principais fatores que têm promovido à redução das desigualdades no Brasil, embora sejamos ainda um dos países com maior concentração de renda do planeta.
Fica evidente que o debate não pode ficar restrito a uma simples questão matemática de ajuste de contas. O que está em jogo é o modelo de Estado. Para combater o desequilíbrio fiscal, mantendo o Estado de Bem-Estar em construção, as soluções passam por recuperar a capacidade de arrecadação, modificar o sistema tributário e interferir de forma decisiva nos gastos financeiros, responsáveis pela maior parte dos gastos do setor público.
 
*membro do Instituto Justiça Fiscal, Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil