O governo Michel Temer apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 sob o argumento de que é preciso equilibrar as contas públicas. O novo regime fiscal impõe limites aos gastos com direitos sociais, enquanto mantém intocados privilégios e injustiças. Congela despesas com saúde, educação e assistência social, que atendem à maioria da população, mas não menciona o que é pago com juros da dívida ou aquilo que o governo deixa de arrecadar, em benefício do topo da pirâmide social.
Por Joana Rozowykwiat
“A PEC 241 é o funeral dos direitos sociais da Constituição de 1988”, resume o economista Evilásio Salvador, doutor em Políticas Sociais e professor da UnB.
A proposta, que tramita no Congresso Nacional, estipula que os gastos primários do governo – que não incluem os de natureza financeira –, só poderão crescer, no máximo, o equivalente à inflação do ano anterior. Se aprovada, a regra valerá por 20 anos, mesmo que o Produto Interno Bruto (PIB) cresça, a população aumente ou governos que pensem diferente sejam eleitos.
Salvador destaca que a PEC vai contra a Carta de 1988, ao minar o financiamento para as políticas sociais e inviabilizar, assim, a concretização dos direitos assegurados pela legislação.
“Só existe a garantia dos direitos quando você assegura o orçamento e o financiamento das políticas sociais. A Constituição estabeleceu, por exemplo, as contribuições sociais, vinculadas à seguridade social, que garantem o financiamento das políticas de previdência, saúde, assistência social e do trabalho. Estabeleceu também o gasto mínimo obrigatório com algumas políticas sociais, como educação e saúde. O que a PEC faz é acabar com isso”, afirma.
Ao restringir o orçamento, o governo Temer estaria retirando a capacidade de expansão dessas políticas sociais, aponta Salvador. “Elas vão perder espaço dentro do fundo público, em nome de uma captura dos recursos públicos para pagamento de juros e amortização da dívida. Isso é a PEC”, critica.
Ao rentismo, tudo
A proposta de Temer para sanar os problemas fiscais do país se concentra nas despesas primárias, que inclui os gastos com saúde, educação, assistência social, defesa nacional, habitação, segurança, etc., e exclui o pagamento de juros da dívida. Mas, como mostra o professor de Política Social da UnB, as principais dificuldades orçamentárias do país não dizem respeito a esses direitos sociais ou a gastos com pessoal.
“Pelo contrário. Estes gastos estão mais que equilibrados. O orçamento da seguridade social mantém a mesma participação relativa dentro dos gastos totais da união há muito tempo. Os gastos com pessoal estão encolhendo em relação à receita corrente líquida. O que de fato compromete muito o orçamento público são os gastos destinados ao capital portador de juros ou aos rentistas”, indica.
O maior vilão das contas públicas seriam, portanto, os juros da dívida pública, que não estão inseridos na PEC 241. De fato, com exceção de 2014 e 2015, desde 2003 o governo vinha registrando superavit no orçamento primário. E o deficit orçamentário só acontecia por causa das elevadas despesas com o pagamento de juros da dívida pública. Só em 2015, de acordo com o Banco Central, o pagamento de juros nominais somou R$ 501 bilhões, ou 8,46% do PIB.
“As despesas financeiras são de cerca de 1/4 do orçamento. No ano passado, foram quase 25% do orçamento. É o terceiro maior pagamento de juros no mundo. Ficamos atrás apenas da Grécia, mergulhada em uma crise financeira, e do Líbano, cujas finanças são abaladas pelos custos de guerra”, compara Salvador.
Bolsa Empresário – e sem contrapartida
Além de ignorar os bilionários gastos com juros, o governo Temer também não se propôs a enfrentar os problemas do lado da arrecadação. Diversos economistas têm apontado que é possível melhorar as receitas, eliminando privilégios que beneficiam apenas as classes mais altas.
Mas o ajuste de Temer não atinge, por exemplo, os subsídios financeiros e desonerações tributárias para o setor produtivo, apelidados de “Bolsa Empresário”. O orçamento para 2017 mostra que programas de apoio à indústria devem custar cerca de R$ 224 bilhões, ou 3,4% do PIB do país. É mais de sete vezes o valor destinado no próximo ano para o Bolsa Família, que é de R$ 29,7 bilhões.
“Se quisesse verdadeiramente enfrentar a questão fiscal, o governo atacaria as renúncias tributárias, que ficaram de fora da PEC. (…) Não cortaram subsídios, eles estão intactos pela proposta orçamentária”, diz Salvador.
Segundo ele, boa parte das receitas de que o governo abriu mão – sob o argumento de estimular a economia e garantir emprego e renda – saíram das contribuições que incidem sobre a folha de pagamento e que são usadas para financiar previdência, assistência social, saúde e seguro-desemprego.
“Só de renúncia tributária nas contribuições sociais, que mantêm a seguridade social, em 2010, eram R$ 83 bilhões; em 2014, subiu para R$ 144 bilhões. Isso é um acréscimo de R$ 60 bilhões. E, em 2015, você tirou R$ 168 bilhões da seguridade social”, contabiliza, citando que quem se beneficia com isso é o grande capital – os mesmos empresários que apoiaram o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. De acordo com ele, há 51 setores da economia desonerados nas folhas de pagamento.
O economista cita que o governo faz toda a sorte de renúncia tributária. “Você tem, por exemplo, as organizações sociais, que são ditas não lucrativas, mas na realidade são grupos empresariais fortíssimos, que atuam na área educacional, de saúde, que vivem desses recursos do orçamento público. Funciona como um financiamento indireto”, classifica.
Salvador critica o fato de que não é cobrada nenhuma contrapartida para os gastos tributários e tampouco há acompanhamento, por parte do governo, da aplicação desses recursos. “Quando se concede uma renúncia de folha de pagamento, não há um ‘olha, vai ter que manter um percentual de empregos’. Não há nenhuma vinculação entre dar a renúncia e a geração de empregos. Em geral, o que a renúncia termina sendo é um privilégio para um determinado setor econômico. E isso ajuda na recomposição da taxa de lucro do setor, não necessariamente na manutenção de empregos ou coisa do tipo”, aponta.
Tira aqui, falta ali
O professor da UnB menciona ainda a falta de transparência e debate popular sobre a concessões desses benefícios. “Teria que se discutir claramente com a sociedade, se ela prefere mais gasto com saúde ou mais carro zero na rua”, coloca.
“Porque se você concede desoneração de IPI, metade da arrecadação do IPI federal vai compor o Fundo de Participação de Estados e Municípios. Os municípios e estados têm gastos mínimos com educação e saúde. Se eu reduzo a base de recursos desse orçamento, tem que deixar claro para a população: ‘estou reduzindo IPI, mas, por outro lado, o seu município vai receber menos verba para abrir posto de saúde, garantir médico, etc.”, completa.
Segundo Salvador, o mesmo ocorre, por exemplo, com a seguridade social. “Você concede uma brutal desoneração na folha de pagamento e depois diz: ‘ah, na previdência social falta dinheiro’. Mas essa relação não é posta claramente.”
Vale ressaltar que os partidos de oposição ao governo Dilma costumavam criticar um alegado descontrole das despesas, muitas vezes condenando a chamada “Bolsa Empresário”. O próprio ministro da Fazenda atual, Henrique Meirelles, assumiu com o discurso de que cortaria os subsídios a empresários. “Vamos mexer nos privilégios daqueles que não precisam”, prometeu, à época. Mas, no orçamento de 2017, a realidade é bem outra.
Ricos pagam pouco
“Outra questão na qual não se mexe é no fato de você não tributar corretamente os mais ricos. A tributação sobre patrimônio e renda é praticamente insignificante no Brasil. E não se quer mexer nessa situação”, condena Evilásio Salvador.
No Brasil, 71.440 pessoas têm renda superior a 160 salários mínimos ou ganham mais de R$ 1,3 milhão por ano. Desse número, 51.449 pessoas recebem por lucros e dividendos e são, portanto, isentos de imposto de renda. Desde 1995, uma lei do governo Fernando Henrique Cardoso instituiu tal isenção.
“Se quisessem de fato enfrentar o problema fiscal, poderiam começar a tributar essas pessoas”, sugere Salvador. “Você tem 726 mil pessoas que têm um patrimônio de R$ 5,8 bilhões, com baixa tributação. Há caminhos para enfrentar isso, mas a PEC não faz absolutamente nada disso. Prefere atacar os direitos sociais, as políticas sociais”, condena.
Imposição para próximos governos
O professor destaca que, ao contrário do que diz o governo, caso a PEC 241 seja aprovada, áreas como saúde e educação irão, sim, perder recursos e terá início uma disputa por verbas.
“Se despesas como saúde e educação quiserem crescer, vão ter que tomar recursos das outras áreas todas do governo: organização agrária, direitos humanos, despesas com pessoal, transferências para estados e municípios, Forças Armadas, tudo. E, além disso, a conta da previdência, dada a transição demográfica, vai crescer e tende a disputar recursos nisso”, prevê.
Para o economista, soma-se a tudo isso o fato de que uma regra fiscal tão restritiva pode ser aprovada sem um debate mais aprofundado com a sociedade. “Eles vão implantar o deficit nominal zero sem a discussão com o povo, sem um debate popular. Isso não é uma proposta referendada. O maior agravante é do ponto de vista político, porque está se discutindo uma proposição ideológica, de um grupo de centro-direita, com pensamento conservador e reacionário, como se fosse uma proposta balizadora para o país”, critica.
Salvador destaca que a PEC engessa a atuação de governos nas próximas duas décadas e deve se tornar insustentável. “Você vai impor para os próximos governantes uma situação que vai se tornar irreal. O próximo presidente eleito vai ter que alterar novamente a Constituição para poder governar, porque a política fiscal está engessada para os próximos 20 anos, está capturada pelo capital portador de juros. Aí você junta lei de responsabilidade fiscal e desvinculação de receitas da união, está feito.”
Dogma neoliberal
Desde que tomou posse, o atual governo deixou claro que a busca de superavit primário é prioridade. Para Salvador, contudo, a perseguição ao superavit é “um dogma neoliberal”, flexibilizado pelo mundo afora.
“Isso é algo ideológico, que esconde o real interesse, que é privilegiar o setor financeiro da economia, os rentistas, que vivem sem produzir um grão de arroz. Não há nada de técnico, é uma opção política”, opina.
“Se você pegar o quadriênio fechado em 2013, só teve cinco países no mundo que fizeram superavits primários seguidos. O Brasil foi um deles. Não é uma realidade no mundo inteiro. É muito mais um dogma mesmo”, completa.
Salvador classificou como “conversa fiada” o discurso contido na propaganda oficial do governo, que compara as contas do país à da dona de casa para afirmar que não é possível gastar mais do que se arrecada.
“Isso não vale nem para a dona de casa. Se uma família não fizer investimentos para comprar uma casa e um carro acima de seu salário mensal, jamais vai ter um imóvel e um carro. Então não é verdadeiro nem do ponto de vista doméstico. Além do mais, um governo tem responsabilidades que ultrapassam as perspectivas de uma família, o governo precisa fazer investimentos”, defende.
Saída é tributar ricos
Questionado sobre quais seriam as alternativas ao ajuste proposto por Temer, Salvador foi rápido na resposta. “Tributar rico”, propôs. Em seguida, enumerou medidas que significariam milhões de reais a mais nos cofres públicos, sem a necessidade de cortar recursos da área social.
“Tem imposto de renda sobre lucros e dividendos para fazer, tem Imposto de renda sobre remessa de lucros e dividendos ao exterior, tem as renúncias tributárias para rever, tem o imposto sobre grades fortunas que nunca foi regulamentado, o imposto sobre herança e patrimônio cuja arrecadação é ridícula, e tem a dívida ativa da união, que são R$ 250 bilhões já transitados em julgado e que não são executados”, listou.
Para Salvador, o corte de recursos da área social é uma escolha ideológica. “Não é uma posição técnica, é uma posição ideológica de um governo que não tem voto nas urnas. Porque esse projeto jamais seria referendado nas urnas”, encerrou.