O que se esconde por trás do congelamento dos gastos?

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Dão Real Pereira dos Santos*
Na economia e na política os problemas normalmente não têm apenas uma solução. A escolha de uma entre várias soluções possíveis, sem que as demais sejam sequer cogitadas, revela, na maior parte das vezes, justamente o que tenta esconder. Ou seja, revela que a escolha da solução é mais importante do que a solução para os problemas. Aliás, o problema pode ser apenas um pretexto. O ajuste fiscal proposto pelo governo parece encaixar-se perfeitamente nesta lógica, pela forma fechada e pouco transparente como este tema tem sido apresentado.
A repetição insistente de que o problema do país é a gastança descontrolada do governo em políticas sociais, associada à ideia já consolidada, também pela insistência, de que a carga tributária é muito alta e de que as pessoas já não suportam mais pagar impostos, cria no senso comum a ideia fixa de que só existe uma única solução: cortar os gastos sociais. Mas será que realmente os governos estão gastando demais? Será que o problema são os gastos sociais? Será que a carga tributária realmente é muito elevada? Estas questões parecem estar fora de pauta, o que nos dá uma clara sensação de que a questão central talvez não seja o ajuste fiscal, mas sim a redução dos gastos sociais ou, dito de outra maneira, a diminuição do Estado.
O Congresso Nacional, sob o pretexto de corrigir o suposto desequilíbrio fiscal, acabou de fato inviabilizando o elemento essencial da Constituição Federal, que é a sua estrutura de proteção social.
O Brasil é um Estado Social em construção desde a promulgação da Constituição Federal (CF), em 1988, quando foram fixadas as bases para a implementação do nosso estado de bem-estar, implicando a necessidade de ampliação progressiva dos gastos públicos, sobretudo daqueles voltados à proteção e à seguridade social.
Com uma carga tributária próxima a 34% do PIB, o Estado brasileiro, nas suas três esferas de governo, dispõe de pouco mais de U$ 4 mil por ano para investir em cada cidadão, o que representa cerca de 3 a 4 vezes menos recursos do que dispõem os governos da Alemanha, Reino Unido ou Espanha. Isso explica, em parte, a lentidão com que avançamos na construção do nosso estado de bem-estar. Aliás, os estados de bem-estar europeus, que serviram de base para o nosso, começaram a ser implementados no final da década de 40, ou seja, pelo menos 40 anos antes do Brasil.
A PEC 55, aprovada no dia 13 de dezembro de 2016 pelo Senado, congela os gastos primários pelos próximos 20 anos. Gastos primários são todos os gastos públicos, menos os gastos financeiros, ou seja, são os gastos que materializam as funções primordiais do Estado, como saúde, educação, assistência, previdência, infraestrutura, etc.
Por esta PEC os gastos primários não poderão ser corrigidos acima da inflação, o que significa que, a longo prazo, estes gastos serão de fato reduzidos, tanto em relação ao PIB quanto em relação à arrecadação. Além disso, o gasto público por cidadão, que é o que efetivamente importa, será também reduzido já que, segundo o IBGE, a população deverá crescer em torno de 10% neste período e a população idosa deverá duplicar.
O congelamento dos gastos, portanto, modifica a estrutura da Constituição Federal, pois torna inviável a realização dos principais objetivos da República, previstos já no seu Artigo 3º, quais sejam: de construir uma sociedade livre, justa e solidária; de erradicar a pobreza, a marginalização; e de reduzir as desigualdades. A PEC torna esses objetivos inviáveis na medida em que limita justamente os gastos públicos capazes de produzir esses resultados.
A solução para o problema do desequilíbrio fiscal, tendo por premissa a vontade soberana do povo, materializada pelos constituintes de 1988, de construir um Estado Social, deveria comportar, no mínimo, uma abordagem sobre as receitas públicas e outra sobre os gastos financeiros.
Aliás, as medidas de austeridade fiscal promovidas por outros países que adotaram o congelamento de gastos, e que serviram de exemplo na exposição de motivos pelo governo e seus representantes, foram todas implementadas por prazos bem inferiores aos 20 anos propostos no Brasil e incluíram também os gastos financeiros, como foram os casos da Holanda e do Canadá, por exemplo. Diga-se de passagem, países já com seus estados de bem-estar muito bem consolidados.
A opção por reduzir gastos sociais, sem considerar outras alternativas, promoverá de fato a interrupção do processo de construção do Estado Social. Enquanto isso, são gritantes as demandas por mais e melhores serviços públicos; a educação e a saúde clamam por mais investimentos; a segurança pública está um caos; e há falta de recursos em todas as áreas sociais. O congelamento dos gastos sociais significa uma clara opção política de transferir a conta do suposto desequilíbrio fiscal aos mais pobres, que, justamente em períodos de crises, mais precisam do Estado.
Segundo os economistas Paulo Kliass e José Celso Cardoso Jr (Congelamento de Gastos e Retrocesso Social – Carta Capital de 07/10/2016), as despesas públicas realizadas com políticas sociais e com os investimentos, por exemplo, apresentam um elevado multiplicador positivo para a renda. Isso significa que cada real gasto com saúde ou educação oferece um retorno maior em termos de crescimento da economia. O mesmo ocorre com as despesas contabilizadas pela previdência social ou por programas de investimento público. São exatamente estas as áreas que foram congeladas.
Segundo artigo publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI diz que Políticas Neoliberais Aumentaram as Desigualdades – G1.globo.com, 31/05/2016), as políticas de austeridade, que frequentemente reduzem o tamanho do Estado, não somente geram custos sociais substanciais mas também prejudicam a demanda, além de aprofundar o desemprego. De acordo com os autores deste artigo, “o aumento da desigualdade prejudica o nível e a sustentabilidade do crescimento”.
Por outro lado, as premissas largamente difundidas de que os gastos sociais teriam saído do controle são absolutamente equivocadas. Os dados demonstram que o crescimento dos gastos está há muito tempo sob controle, numa média de 7,7% ao ano desde 1995, com tendência de redução nos últimos anos (Grazielle David, Inesc, A PEC 241 e a Opção da Justiça Fiscal – Carta Capital de 10/10/2016).
Na verdade, são os gastos financeiros que estão fora de controle. O pagamento dos juros da dívida pública, por exemplo, vem crescendo de forma descontrolada. O economista Ladislau Dowbor (Quem Quebrou o Estado Brasileiro – Outras Palavras, 22/11/2016), analisando dados publicados pelo Banco Central, deixa claro que o resultado primário, ou seja, as receitas tributárias menos os gastos primários, foi superavitário até 2013, passando a ficar deficitário somente em 2014 e 2015, e ainda assim em valores perfeitamente normais, cerca de 2% do PIB – na União Europeia, déficits de 3% do PIB são considerados normais.   Já o percentual do PIB brasileiro gasto com juros da dívida saltou de 3,2%, em 2010, para 6,7%, em 2015, ficando evidente, portanto, que foram os gastos com juros, e não os gastos com as políticas sociais, que mais contribuíram para o déficit fiscal em que nos encontramos.
Além disso, o déficit primário que se observa nos últimos dois anos aconteceu muito mais pela redução abrupta das receitas a partir de 2013 do que pela elevação dos gastos, como demonstra o gráfico abaixo elaborado pelo economista Marcelo Lettieri, com dados do Tesouro Nacional.
 
Lettieri - gráfico do superávit fiscal

Fonte: elaborado por Marcelo Lettieri (Instituto Justiça Fiscal) com dados da Secretaria do Tesouro Nacional

Estamos arrecadando menos, por conta da queda da atividade econômica, do elevado nível de sonegação fiscal, com crescente utilização dos paraísos fiscais pelas grandes empresas, e de uma estrutura de administração tributária e de cobrança de dívida absolutamente debilitadas e desvalorizadas. Passamos a arrecadar menos também porque ampliou-se exageradamente a concessão de benefícios fiscais, com desonerações que saltaram de 3,6% do PIB em 2010 para 4,93% do PIB em 2015, beneficiando especialmente as classes mais ricas.
Diante de um quadro de profundas carências nas áreas sociais e de falta de recursos para as funções mais básicas do Estado, não seria mais prudente tratar primeiro de medidas que permitam a recuperação das receitas?
Estima-se que aproximadamente 27,6% de tudo o que se arrecada é sonegado (Sonegômetro – Sinprofaz), o que dá um valor de mais de R$ 400 bilhões ao ano (cerca de 8,6% do PIB). Somente na esfera federal, há mais de 11% do PIB (cerca de R$ 600 bilhões) em fase de contencioso administrativo, que significam tributos e multas decorrentes de fiscalizações realizadas pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal e confirmados por julgamento colegiado de primeira instância, mas que estão sendo discutidos, em grau de recurso, no âmbito do CARF (Conselho de Administração de Recursos Fiscais). Para se ter uma comparação, a média dos valores em contencioso administrativo dos países da OCDE é de aproximadamente 1,7% do PIB. Em dívida ativa, que se refere às dívidas tributárias definitivamente constituídas e prontas para serem executadas, temos um estoque de mais de R$ 1,5 trilhão.
Além disso, o Brasil possui um sistema tributário profundamente regressivo, ou seja, cobra mais tributos dos mais pobres e menos dos mais ricos, basicamente por estar alicerçado predominantemente em tributos sobre o consumo (mais da metade de tudo o que se arrecada), sendo muito brando na tributação sobre renda e patrimônio, o que privilegia os mais ricos. Somente com a correção destas distorções, implementando medidas progressivas na forma de arrecadar tributos, já teríamos a possibilidade de elevação substancial na arrecadação total acompanhada da desoneração para as camadas mais pobres da população.
Mas o presidente da República, logo após a aprovação da PEC, declarou publicamente que fora preciso coragem para propor o congelamento dos gastos. Parece, no entanto, ter-lhe faltado justamente a coragem para contrariar os interesses dos mais ricos. Sob o pretexto da austeridade, ao invés que criar medidas para recuperar as condições de ampliação das receitas ou de redução das gigantescas transferências de recursos públicos para os bancos e outros intermediários financeiros, via taxas exorbitantes de juros, o governo preferiu propor uma ruptura no processo de construção do Estado Social, com a retomada do Estado mínimo, neoliberal, mediante o congelamento dos gastos primários nos próximos 20 anos.
Nas próximas duas décadas, portanto, os avanços sociais obtidos desde a promulgação da Constituição de 1988 cairão por terra, inclusive a valorização real do salário mínimo. Segundo o economista Pedro Rossi (Austeridade e Retrocesso – setembro de 2016), os gastos primários, que representam hoje cerca de 20% do PIB, em 2036, com a PEC 55 em vigor, considerando um crescimento do PIB de 2,5% a partir de 2018, representarão cerca de 12% do PIB, que era o que se gastava no final da década de 80, antes da atual Constituição.
Pedro Rossi - gráfico
 

Elaboração: Pedro Rossi – Unicamp

Em termos sociais, trata-se de uma verdadeira ponte para o passado. Mesmo que a economia volte a crescer e as receitas públicas se recuperem, mesmo que se promova um efetivo combate à sonegação, os gastos sociais estarão condenados à estagnação. Os gastos financeiros, no entanto, poderão continuar crescendo, significando que o Estado não só deixará de atuar na redução da pobreza, como se transformará num poderoso instrumento de acumulação e concentração de riquezas.
Estudos demonstram que o crescimento dos gastos públicos em níveis superiores à inflação, especialmente em relação a saúde, assistência e educação, ao lado da valorização real do salário mínimo, tem sido o principal fator de redução da pobreza e das desigualdades sociais.   Essa redução da pobreza e das desigualdades sociais fez com que o Brasil passasse a ser considerado um exemplo a ser copiado internacionalmente.
Segundo Philip Alson, Relator Especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos (https://nacoesunidas.org/brasil-teto-de-20-anos-para-o-gasto-publico-violara-direitos-humanos-alerta-relator-da-onu/), os planos do governo de congelar o gasto social no Brasil por 20 anos são inteiramente incompatíveis com as obrigações de direitos humanos do Brasil, pois isso violaria o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que o Brasil ratificou em 1992, que veda a adoção de medidas deliberadamente regressivas.
Para além do ajuste fiscal, a PEC 55, de fato, modifica a estrutura do país. Representa a imposição de outro projeto de país, incompatível com a Constituição de 1988 (Pedro Rossi – Austeridade e Retrocesso – 2016).
O desequilíbrio fiscal, problema de natureza conjuntural, tal como em todos os países que sofreram os efeitos da crise 2007/2008, é apenas um manto que serve para esconder um projeto de desestruturação do Estado Social, fundado pela Constituição de 1988, que passa, não só pelo congelamento dos gastos sociais por duas décadas, já implementado pela PEC 55, mas também pelas reformas previdenciária, trabalhista e tributária, todas colocadas em caráter de urgência, evitando, assim, o debate social, para que consigam mudar o Brasil antes que ele volte a crescer. Afinal, tudo se resume a uma disputa pela apropriação da renda e da riqueza que o país vai produzir daqui para a frente.


 
*membro do Instituto Justiça Fiscal