O que não é dito sobre a liberdade de impostos

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Dão Real Pereira dos Santos*

Assim como em anos anteriores, está sendo promovida novamente a campanha “Dia da Liberdade de Impostos”. Trata-se de uma campanha nacional, promovida por entidades de classes empresariais, que ocorre todos os anos sempre no mês de maio em função da expectativa de carga tributária prevista para o ano. Ou seja, se a carga tributária estimada for de 35% do PIB, isso significa que em algum dia do mês de maio, teremos o 127º dia do ano, que corresponde a 35% do período. Dizem que até esta data tudo o que produzimos de renda transformou-se em impostos e foi para o governo.

Em 2015, a mensagem veiculada era de que aquele dia marcaria a data em que os brasileiros passariam a trabalhar para proveito próprio, já que antes disso todo o valor recebido era destinado ao pagamento de tributos. Em ouras palavras, diziam que tudo o que havia sido pago em tributos teria sido perdido, já que somente a partir daquela data os brasileiros passariam a trabalhar para si.

Em todos os anos, com pequenas variações, a mensagem é sempre a mesma: “A carga tributária do Brasil é muito alta”, “Temos uma carga tributária de primeiro mundo para um serviço público de terceiro mundo”, “Temos a maior carga tributária do mundo”. Por vezes chegam a cogitar que a baixa qualidade dos serviços públicos decorre da elevada carga tributária. Esta campanha diz algumas coisas, mas não diz muitas outras.

Então, vamos ao que eles não dizem.

A carga tributária de qualquer país é custo dos bens e serviços públicos. É a parte da renda nacional que a sociedade decide transferir para o Estado para ver convertida em bens e serviços públicos. Quanto maior e mais complexo o Estado que se quer construir, mais tributos são necessários e maior será a carga tributária. O inverso também é verdadeiro, quanto menor o Estado que se quer, menos tributos. A quantidade de tributos é conseqüência do tipo de Estado que se quer. Dizer que se quer menos impostos significa dizer que se quer um Estado menor, pois significa menos recursos para a saúde, para a educação, segurança etc. Reduzir os tributos é reduzir bens e serviços públicos. Um Estado de bem-estar social é naturalmente mais caro que um Estado residual, logo terá necessariamente uma carga tributária maior.

Se a carga tributária prevista é de 35% do PIB, isso significa que gastamos em média cerca de 1/3 da nossa renda privada para financiar a educação pública para 88% de todas as crianças brasileiras, o SUS, que, com toda sua precariedade, é um dos mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, os serviços de segurança pública e de segurança nacional, todo o sistema de justiça para garantir direitos, a democracia e o sistema político nacional, a previdência social pública, a defesa civil e os serviços de combate a incêndios e salvamentos, o sistema carcerário, o saneamento, os calçamentos e pavimentações, as obras de infraestrutura, e outros tantos serviços e bens públicos que são colocados à disposição de todos.

Quando dizem que o tempo que trabalhamos para pagar tributos foi perdido e que só passamos a aproveitar os nossos recursos a partir de maio, estão dizendo que nada destas coisas, financiadas pelos tributos, nos servem e que somente aquilo que podemos comprar é que tem valor. É como se o dinheiro gasto em tributos fosse um recurso perdido e como se os bens públicos financiados pelos tributos fossem totalmente dispensáveis.

A carga tributária brasileira não é a maior do mundo. Está próxima da média das cargas dos países da OCDE. Não é maior, nem é a menor. Há países com cargas tributárias próximas de 50% do PIB, como a Dinamarca e a França, por exemplo. Há outros com cargas menores do que 30% como EUA e Japão. No entanto, esta comparação entre as cargas tributárias dos países não tem grande utilidade, já que os países são diferentes em termos de estrutura, em termos de modelo de Estado, em população e em tamanho do PIB. Há países que não tem sistema público de previdência, por exemplo. Outros não tem atendimento universal de saúde.

Dizer que o Brasil tem uma carga tributária parecida com a Alemanha, só porque os dois estão próximos de 35% do PIB, é inócuo. De fato, o que mede a capacidade do Estado para produzir políticas públicas não é a carga tributária, mas sim o valor disponível por cidadão, pois é este valor que permite inferir a capacidade potencial que tem o Estado para promover o bem-estar dos cidadãos. O Brasil dispõe de aproximadamente US$ 3.000,00 por cidadão por ano para investir, enquanto a Alemanha, com carga tributária equivalente, dispõe de mais de US$ 14.000,00, ou seja, recursos mais de 4 vezes superiores aos nossos para promover políticas públicas. Portanto, com cargas tributárias semelhantes estes dois países são absolutamente diferentes em termos de capacidade.

O problema da carga tributária brasileira não está no seu tamanho, como costumam salientar os protagonistas da referida campanha, mas sim na sua distribuição. Enquanto nos países desenvolvidos a tributação incide mais fortemente sobre renda e patrimônio, onerando mais os mais ricos do que os mais pobres, no Brasil, é predominantemente calcada sobre o consumo, o que onera mais as camadas de baixas rendas. É o que chamamos de tributação regressiva, pois os pobres acabam pagando mais tributos do que os ricos proporcionalmente as suas rendas. Se, na média nacional, o custo do Estado corresponde à renda produzida nos cinco primeiros meses do ano, para a grande parte da população serão necessários mais de seis meses, enquanto as parcelas mais ricas não gastam mais do que três meses de renda com tributos.

A regressividade do sistema tributário, que decorre da participação relativa dos diferentes tipos de tributos na arrecadação total, é o problema que precisa ser enfrentado, uma vez que promove o aprofundamento das desigualdades sociais e eleva o custo de produção.

A simples redução dos tributos, como advogam os promotores da campanha “Dia da Liberdade de Impostos”, significa redução do tamanho do Estado, que ainda sequer conseguiu chegar ao nível de Estado Social previsto na própria Constituição Federal. Já há consenso na sociedade que precisamos investir pelo menos 10% do PIB na educação e 10% na saúde. Ora, só nestas duas contas já teríamos 20% do PIB. Se considerarmos que a previdência pública já utiliza cerca de 9,7% do PIB, teríamos aí 29,7% comprometidos por estas três rubricas. Não há mágica, reduzir tributos é reduzir Estado e, reduzir Estado significa reduzir saúde, educação, segurança.

Quando tratam a carga tributária de forma desconectada dos bens e serviços públicos sem levar em conta o modelo de Estado previsto na constituição, o que se faz é a defesa do Estado mínimo, ou apologia à sonegação.


Dão Real Pereira dos Santos é diretor do Instituto Justiça Fiscal.


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