Num Estado Democrático de Direito como o nosso1, todas as conquistas sociais e os avanços em termos de direitos e garantias individuais e coletivas, assim como a normatização das relações sociais com vistas ao bem comum, passam necessariamente pelo sistema político representativo. Aos parlamentares, na condição de representantes da soberania do povo2, cabe a elaboração das Leis que, em última instância, constituem a materialização dos anseios da sociedade. No entanto, a realidade tem demonstrado que é justamente o sistema político o elemento que mais impede tais avanços, constituindo-se numa espécie de “nó” que atravanca e dificulta os caminhos para a implementação das grandes e históricas pautas nacionais, como a reforma agrária, a reforma tributária com justiça fiscal, os direitos dos trabalhadores, a redução das desigualdades sociais, a reforma urbana, a qualificação da saúde e da educação públicas, dentre outras. Os movimentos sociais organizados já perceberam que a verdadeira dificuldade para os avanços está localizada exatamente na resistência oferecida pela própria classe política que supostamente lhes representa e os recentes movimentos das ruas deixaram isso bastante evidente. Por mais paradoxo que seja, é o parlamento eleito pelo povo que mais dificulta a implementação dos pleitos do povo.
Então, onde estaria o problema? Se o sistema político deveria representar a possibilidade de concretização do bem comum e a vontade do eleitor, por que nem aquele nem esta são de fato implementados? Será que o voto do eleitor não é suficiente para garantir que seus interesses sejam representados?
Tudo indica que não. O sistema político nacional encontra-se permanentemente no dilema da dupla representatividade, de um lado a obrigação de honrar a vontade dos eleitores que depositaram na urna sua expectativa de mudanças e de outro a necessidade garantir o retorno aos “patrocinadores”. E é neste ponto que queremos aprofundar um pouco esta reflexão.
Nas eleições de 2010, mais de 75% dos recursos utilizados nas campanhas eleitorais para deputados federais e senadores foram provenientes de empresas que aportaram recursos financeiros tanto nos candidatos quanto nos partidos políticos.
Não é razoável supor que empresas e empresários decidam aplicar seus recursos em atividades sem retorno, até porque, isso contraria absolutamente a lógica do capital e do mercado, além de poder ser considerada gestão temerária dos negócios de interesse dos acionistas, sócios ou investidores.
O empresário certamente vislumbra um retorno no mínimo superior ao seu investimento quando aplica seu capital na produção, no marketing, nas atividades sociais, nas atividades esportivas, etc. Não há por que ser diferente na política. Então, o político patrocinado, independentemente do partido estará sempre submetido ao conflito de representar o interesse do conjunto de seus eleitores ou o interesse dos seus patrocinadores e, sempre que este conflito se torne evidente, a escolha provavelmente penderá para o grupo que lhe ofereça maior segurança. Por mais que se tente, a aproximação entre estes dois conjuntos de interesses (patrocinadores e eleitores) nem sempre é possível e, na maioria das vezes, é totalmente inviável.
Mas aqui podemos introduzir outra questão para tentar identificar quais os elementos que influenciariam a decisão política diante do conflito eventual citado anteriormente. O que seria mais importante para garantir uma eleição, o voto do eleitor ou os recursos financeiros para a campanha? Se é óbvio que nenhum político se elege sem votos, não é menos óbvio que sem recursos ninguém consegue votos suficientes para se eleger. Na campanha de 2010, por exemplo, é possível perceber que os candidatos eleitos deputados federais e senadores representam certa de 10% de todos os candidatos que concorreram. No entanto, este pequeno grupo de candidatos que conseguiu se eleger consumiu mais de 60% de todos os recursos financeiros utilizados na campanha eleitoral. Ou seja, o dinheiro realmente faz a diferença no resultado final. No modelo eleitoral que temos, dispor de uma maior quantidade de recursos tem sido determinante para um candidato ser eleito e a maior parcela dos recursos provêm de empresas. Sem dinheiro, portanto, salvo raras exceções vinculadas a candidatos celebridades, as chances de alguém se eleger são totalmente improváveis.
Sendo assim, não há dúvidas de que as decisões políticas, diante de um possível conflito de interesses entre os eleitores e patrocinadores, tenderão para o segundo grupo, seja porque representa a opção mais segura e útil, seja porque, este grupo, por ter investido diretamente seu capital, exercerá um acompanhamento muito mais presencial e permanente das atividades parlamentares de seus patrocinados, do que aqueles que investiram somente seu voto e que muitas vezes, no mês seguinte a eleição, já nem lembram em quem votaram.
Temos aqui então, mais uma resposta às indagações feitas no início deste texto. O exercício do voto parece ser absolutamente insuficiente para a eficácia da democracia, e o exercício da cidadania, ao contrário do que tem sido disseminado maciçamente para a sociedade, não se resume aos 4 ou 5 meses de período eleitoral que se repete a cada dois anos no Brasil. Segundo o economista Ladislau Dawbor3, a idéia de que o espaço para o exercício da cidadania é temporário, casual e restrito fica reforçada pela mensagem subliminar materializada na palavra “FIM” que surge na urna eletrônica, após todas as operações, sugerindo que ali, exatamente naquele momento e lugar, encerra-se a parte que cabe ao cidadão no processo democrático.
Este conjunto de fatores produz um fenômeno de mercantilização da política, que transforma os políticos em meros produtos e o processo eleitoral, num jogo que se encerra no dia da eleição e que premia os melhores e mais sofisticados sistemas de propaganda e marketing, tão mais eficientes quanto mais recursos gastarem. Como num programa televiso, do tipo “reallity show”, os cidadãos são chamados a participar e a interagir, mas somente opinando nas pesquisas eleitorais e votando no dia da eleição.
Neste contexto, as empresas e os empresários investem nos seus candidatos e partidos como se investe num produto potencialmente lucrativo, e não se restringem a apenas alguns candidatos, mas investem em vários como forma de aumentar e potencializar suas chances de ganhos.
Voltando às eleições de 2010, que elegeram o atual parlamento nacional, os 10 maiores financiadores de campanha “conseguiram eleger” 152 deputados federais e 33 senadores. Aqui talvez haja uma incorreção técnica, ou um exagero de linguagem, pois, de fato, estes 10 maiores patrocinaram inúmeros candidatos dos quais 185 foram eleitos, o que talvez não nos permite afirmar que eles literalmente os elegeram, sobretudo por que estes candidatos foram também financiados por outros doadores. De qualquer forma, somente estas 10 empresas aportaram quase 33% do total de recursos utilizados nas campanhas de 2010, o que nos autoriza a afirmar que eles foram decisivos para uma parcela significativa da composição política do Congresso Nacional.
Quando estendemos a análise para os 20 maiores, podemos perceber que o número de candidatos eleitos que foram financiados por este grupo, sobe para 180 deputados federais e 34 senadores. Este seleto grupo de empresas foram responsáveis por quase 44% do total dos recursos utilizados em toda a campanha. Mais da metade deste grupo é representado pelas grandes empreiteiras. A outra parte divide-se entre bancos, empresas do agro-negócio, indústria pesada e setor de serviços.
O sistema político nacional e especialmente o sistema eleitoral, portanto, da forma como estão definidos não têm condições de concretizar, na prática parlamentar, a vontade soberana do povo.
O cidadão eleitor, por sua vez, tem sua autonomia e liberdade de escolha mitigadas, posto que uma das informações essenciais sobre seus candidatos (quem os financia) lhe é sistematicamente negada ou dificultada. O pleno exercício do direito de escolha, por parte do eleitor cidadão, pressupõe o conhecimento, além das idéias, das propostas, da história e das experiências de seus candidatos, também sobre quem são os seus patrocinadores, cujos interesses poderão ser opostos aos seus (do eleitor).
Tudo isso nos leva a conclusão inevitável de que não há como se obter um resultado diferente sem que se mude radicalmente o processo. A propósito disso, parece muito oportuna a lembrança da célebre e histórica frase proferida por Albert Einstein, quando disse que “insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. O aperfeiçoamento da democracia no Brasil, portanto, só será possível a partir de uma reforma profunda do sistema político eleitoral. Sem modificar o processo na sua origem, eliminando a possibilidade do financiamento empresarial das campanhas e criando condições de participação efetiva da sociedade no processo democrático, não se conseguirá resultado diferente e dificilmente o interesse público conseguirá se sobrepor à vontade e aos interesses privados daqueles que têm controlado esse processo desde sempre.
Dão Real Pereira dos Santos é membro fundador do Instituto Justiça Fiscal – IJF (www.ijf.org.br)
1 Artigo 1º da Constituição Federal
2 Parágrafo único do Artigo 1º da Constituição: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
3 Palestra realizada no III Fórum da Igualdade, em abril de 2013, em Porto Alegre, RS