“É hora dos bilionários entrarem com a sua parcela de contribuição para o enfrentamento da pandemia e da crise social”
Durante o debate que culminou na aprovação do decreto de calamidade pública, em decorrência da pandemia da Covid-19, que possibilitou a suspensão dos limites de gastos e o atingimento dos resultados fiscais exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o argumento mais utilizado foi de que o Governo não poderia descumprir a referida lei.
Acrescenta-se que, a LRF, além de estabelecer limites de gastos, também define normas voltadas à receita (arrecadação de tributos). Assim, o artigo 11 estabelece que “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”.
A Constituição Federal de 1988 estabelece que “compete à União instituir impostos sobre: VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar” (artigo 153). Em maio de 2020, a LRF completará 20 anos e apenas para citar um exemplo de descumprimento do artigo 11 da referida norma, até hoje a União não instituiu o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
Neste período, instituições como o Parlamento, os Tribunais de Conta e outros, negligenciaram o tema da Receita (arrecadação) embutida nas normas da LRF. Não só não houve preocupação em descumpri-la neste quesito, como a mídia esforçou-se para difundir o mito de que o “orçamento público é igual ao orçamento doméstico” (estratégia de fácil compreensão pelo cidadão comum, que assim passou a difundir o mito). No entanto, o orçamento público tem dinâmica oposta a do orçamento de uma dona de casa.
As medidas que deverão ser tomadas pelo Brasil (e que governos de outros países já estão adotando) para impedir que parte significativa da população seja dizimada passam pelo aumento do gasto público de modo que viveremos a experiência prática que o orçamento público NÃO é igual ao orçamento doméstico. De outro lado, além do aumento do gasto público, outras medidas deverão, simultaneamente, ser adotadas, dentre elas, e pela ótica da receita, destaca-se a “instituição, previsão e efetiva arrecadação” do IGF no Brasil, em cumprimento a LRF.
Existem vários estudos disponíveis sobre o IGF. Um deles, embutido na Carta Aberta, de 23 de março de 2020, subscrita pelos Auditores Fiscais pela Democracia, (AFD), pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO) e pelo Instituo Justiça Fiscal (IJF), intitulada “Tributar os ricos para enfrentar a crise (Fundo Nacional de Emergência de R$ 100 bilhões para Estados e Municípios)”, aponta que a instituição do IGF, considerando a incidência de alíquotas progressivas de 1%, 2% e 3% sobre patrimônio conhecido que exceder R$ 20 milhões, R$ 50 milhões e R$ 100 milhões, respectivamente, poderia gerar uma arrecadação adicional de R$ 40 bilhões por ano.
Considerando que o país deixou de tributar desde 2001, significa que a União, abriu mão deste valor, durante 19 anos, perfazendo um montante de R$ 760 bilhões de recursos que deveriam ter sido arrecadados pelo Governo Federal, com apenas este único imposto. A não tributação e, por consequência, o descumprimento do artigo 11 da LRF, durante este período, é um dos fatores que contribui para que o Brasil seja um dos países mais desiguais do Mundo.
Conforme aponta Piketty (2018), aproximadamente 30% da renda, no Brasil, está nas mãos de 1% da população. Além disso, foram recursos, que deixaram de ser aplicados no financiamento do SUS e em equipamentos de pesquisa. É hora dos bilionários entrarem com a sua parcela de contribuição, para o enfrentamento da pandemia e da crise social e econômica a ela relacionada, cuja solução virá através da ampliação da capacidade estatal.
Ao Congresso Nacional cabe cumprir o artigo 11 da LRF, ainda que, com 20 anos de atraso.
* Rosa Angela Chieza, associada ao Instituto Justiça Fiscal, é professora de economia de setor público na FCE/UFRGS, com defesa de tese de doutorado sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal.