O caso SwissLeaks, paraísos fiscais e evasão tributária

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Na maior parte dos casos, quem abre uma conta numerada na Suíça quer manter o sigilo porque o dinheiro provém de alguma atividade ilícita, como sonegação de tributos, lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de drogas ou armas e até terrorismo. Autoridades de diversos países investigam supostas evidências de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro envolvendo correntistas e discutem medidas para coibi-las.

SwissLeaks (vazamentos da Suíça) põe em destaque o problema dos paraísos fiscais

Foto: Pierre Albouy/Reuters

A série de reportagens recentes sobre o caso SwissLeaks (vazamentos da Suíça) põe em destaque o problema dos paraísos fiscais, que possibilitam a evasão de divisas, a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro. Essas práticas produzem efeitos nocivos sobre as finanças dos demais países e representam uma ameaça às instituições democráticas. Com o objetivo de contribuir para o debate, apresentamos algumas propostas para enfrentar o problema.

Origem do caso

O episódio conhecido como SwissLeaks trata de um grande vazamento sobre contas bancárias secretas, mantidas no HSBC na Suíça durante os anos de 2006 e 2007. De acordo com as reportagens publicadas em diversos países, por meio do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), o banco abrigou cerca de US$ 100 bilhões de 106 mil clientes de 203 países. No caso do Brasil, são 6.606 contas bancárias que atendem a 8.667 clientes e um valor de aproximadamente de US$ 7 bilhões1.

Os documentos foram vazados por um ex-funcionário do HSBC, Hervé Falciani, que retirou os dados do banco, em meio magnético, e os entregou às autoridades francesas em 2008.

Por que abrir uma conta secreta?

As contas secretas numeradas na Suíça são identificadas somente por um código alfanumérico e o nome dos titulares é conhecido apenas pelo alto escalão do banco. Isso significa que as contas não são completamente secretas ou anônimas; em conformidade com a legislação bancária internacional, a pessoa precisa comprovar sua identidade no ato de abertura da operação.

No caso dos vazamentos do HSBC da Suíça, o ex-funcionário, na função de técnico de informática, teve acesso inclusive aos nomes. Constam da lista empresários, banqueiros, barões da mídia, artistas, esportistas, políticos, doadores de campanha, doleiros, traficantes de armas e diamantes, executivos, empresas offshore com sede em paraísos fiscais, entre outros.

Em princípio, qualquer pessoa pode manter legalmente uma conta no exterior. É necessário, porém, declarar a conta no Imposto de Renda e informar ao Banco Central os valores remetidos para outro país.

Na maior parte dos casos, quem abre uma conta numerada na Suíça quer manter o sigilo porque o dinheiro provém de alguma atividade ilícita, como sonegação de tributos, lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de drogas ou armas e até terrorismo.

É possível que o dinheiro de parte dessas contas tenha origem lícita. No entanto, qual seria o motivo para abrir uma conta secreta?

Ações dos governos e recuperação de impostos e multas

Segundo o ICIJ, autoridades de diversos países investigam supostas evidências de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro envolvendo correntistas.

O Fisco da França, que recebeu as informações vazadas em 2008, passou a investigar todos os franceses citados por possível crime de evasão de divisas e sonegação de impostos. Segundo divulgações da mídia internacional2 a investigação revelou que a filial suíça do HSBC ajudava clientes ricos a evadir o pagamento de impostos. O governo francês já recuperou cerca de US$ 600 milhões em impostos e multas.

Em 2010, o governo da França passou a compartilhar o acervo vazado do HSBC com outros países que demonstraram interesse. Bélgica, Espanha, Reino Unido e Argentina, entre outros, solicitaram acesso aos dados. A Bélgica já recuperou US$ 490 milhões e a Espanha, US$ 298 milhões.

Após a divulgação do SwissLeaks, um representante do governo brasileiro disse que solicitou ao governo francês o acesso aos dados dos clientes brasileiros.

Para evitar questionamentos de legalidade das informações, o ideal seria o Brasil obtê-las diretamente do governo suíço, mas este não as fornece porque o acordo que o Brasil mantém com a Suíça permite apenas trocar informações e realizar atos processuais para investigar e punir pessoas acusadas de crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e terrorismo. O tratado não vale para apurar sonegação de impostos ou evasão de divisas.

No caso brasileiro, é pouco provável que o Fisco consiga cobrar impostos sobre os recursos de 2006 e 2007, porque já passou o prazo legal de cinco anos para exigir o tributo. Mesmo assim, é fundamental fiscalizar as pessoas constantes da lista do HSBC para verificar se houve continuidade da prática de evasão tributária.

Paraísos fiscais e sonegação fiscal

A Suíça ganhou o primeiro lugar em 2013 no ranking de segredo bancário internacional, de acordo com o estudo realizado pela Tax Justice Network (rede de justiça tributária) denominado Financial Secrecy Index. O segundo e o terceiro lugar ficaram com Ilhas Cayman e Luxemburgo, respectivamente.

Uma das principais características de um paraíso fiscal é a garantia do sigilo bancário que impede a identificação do cliente, além de reduzida ou nenhuma tributação sobre os rendimentos de estrangeiros. A falta de controle cambial sobre os não residentes e a quase ausência de regulamentação do sistema financeiro também são atributos presentes na maioria dos paraísos fiscais.

Eles também são denominados de offshore (fora do país), em virtude de a maioria das transações dos não residentes ocorrer fora de sua área geográfica. Por isso, quando um estrangeiro abre uma empresa em um paraíso fiscal, ela é chamada offshore.

O objetivo dos paraísos fiscais é atrair capital. Por isso, facilitam a constituição de empresas offshore, trustes, fundações e inclusive bancos, sem muitas exigências. Algumas jurisdições não exigem sequer instalação física da empresa, permitindo-lhe ter apenas uma caixa de correio.

A abertura de empresas em paraísos fiscais é hoje um recurso muito utilizado por pessoas que buscam maior “privacidade” sobre sua fortuna. Para atingir esse objetivo, tornam essas empresas titulares oficiais das contas na Suíça, em seu lugar.

Os ativos financeiros de empresas offshore retornam, muitas vezes, ao país de origem como investimento estrangeiro, para usufruir do benefício da isenção de imposto de renda sobre rendimentos de não residente. É o denominado round tripping (viagem de ida e volta).

Grandes empresas multinacionais também utilizam paraísos fiscais para transferir lucros para suas subsidiárias, por meio de operações de importação e/ou exportação, a valores superfaturados (importação) ou subfaturados (exportação), com o objetivo de reduzir o lucro tributável no Brasil e pagar menos imposto de renda. Esse mecanismo, conhecido como “preço de transferência”, ocorre na maioria dos países e representa um dos principais fatores da erosão da base tributável dos governos mundiais.

Além disso, as multinacionais criam vários tipos de despesas com o objetivo de reduzir o lucro tributável no país que tem uma tributação mais elevada (como o Brasil). São gastos pagos às suas subsidiárias situadas em paraíso fiscal, como serviços de assessoria, royalties e juros por empréstimos.

O modo como o setor bancário abriga dinheiro e esconde segredos tem grande impacto para as sociedades ao redor do mundo. São trilhões de dólares mantidos em paraísos fiscais no exterior, o que permite aos donos dos maiores rendimentos e das maiores fortunas fugir do pagamento de imposto no país em que residem. Uma pesquisa recente, liderada por James Henry, ex-economista chefe da McKinsey, e realizada pela Tax Justice Network, mostra que o estoque de recursos aplicados em paraísos fiscais é estimado entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões, entre um terço e metade do PIB mundial. O Brasil participa com cerca de US$ 520 bilhões, um pouco mais de R$ 1 trilhão, cerca de um quarto do nosso PIB3.

“O setor offshore é uma grande ameaça a nossas instituições democráticas e ao nosso contrato social”, afirmou ao ICIJ o economista francês Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI. “A opacidade financeira é uma das chaves para a crescente desigualdade global. Ela permite a uma grande parcela dos maiores rendimentos e maiores fortunas pagar taxas ínfimas, enquanto o resto de nós paga altas taxas para financiar serviços públicos (educação, saúde, infraestrutura), que são indispensáveis para o processo de desenvolvimento” (Banking Giant HSBC Sheltered Murky Cash Linked to Dictators and Arms Dealers, ICIJ, 8/2/2015).

O rigoroso sigilo bancário e a baixa ou nenhuma tributação nos paraísos fiscais têm produzido efeitos nocivos sobre as finanças dos demais países. Preocupados com a situação, em 2013 os países do G20 solicitaram à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) um plano de ação para enfrentar os problemas da erosão da base tributável e da transferência de lucros. Em parceria com outros países (incluindo o Brasil), a OCDE vem estudando a questão e propôs um conjunto de quinze ações, conhecido como Projeto sobre Erosão de Base de Cálculo e Deslocamento de Lucros (Beps, na sigla em inglês). Este, contudo, ainda não foi totalmente concluído, devendo ser finalizado até o final de 2015.

Medidas a serem adotadas

Há diversas medidas e propostas que podem ser adotadas. Algumas de médio prazo ainda estão em desenvolvimento, como o Beps; outras, de natureza operacional, podem ser implementadas desde já, porquanto dependem apenas da administração pública brasileira. Existem também propostas mais ambiciosas que dependem de cooperação internacional, mas são perfeitamente factíveis.

Uma das ações já aprovadas no Beps da OCDE/G20 é a instituição do Country-by-Country Reporting (CBCR). Trata-se de um modelo de relatório a ser preenchido pelas empresas multinacionais para prestar informações ao Fisco sobre a alocação de sua renda mundial, atividade econômica e impostos pagos, país por país. O objetivo dessa medida é garantir que os lucros sejam tributados no país em que a riqueza foi gerada, evitando com isso a transferência de lucros para paraísos fiscais.

Uma primeira medida doméstica que poderia ser implementada é a instituição de um controle sobre os registros de importação e respectivos contratos de câmbio. Apesar de haver a obrigação legal de vincular o contrato de câmbio ao registro de importação, não há controle nem previsão de penalidade no caso de descumprimento. Não existe cruzamento entre os dados do contrato de câmbio e os registros no Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex) para verificar se a importação efetivamente ocorreu.

Essa falta de controle possibilita a evasão de divisas, por meio de contratos de câmbio supostamente firmados para o pagamento de importações. “Os doleiros se valem de uma falha nos sistemas de controle, pois as instituições financeiras e as corretoras de valores não precisam mais pesquisar no Siscomex, ao realizar um contrato de câmbio, se realmente existiu aquela importação que justificaria a realização de um contrato de câmbio”, esclareceu o Ministério Público Federal em uma denúncia da Operação Lava Jato4.

Outro instrumento seria estender o atual sistema de informação sobre renda e patrimônio para todos os ativos, tanto financeiros quanto imobiliários e mobiliários. Poderia ser instituída desde já uma declaração de informações para o Fisco brasileiro de todos os ativos e passivos detidos por instituições financeiras localizadas em território nacional.

Há ainda outras propostas como as de Thomas Piketty, que defende a criação de um imposto mundial e progressivo sobre o capital, acompanhado de uma grande transparência financeira internacional5. O autor afirma que o imposto mundial sobre o capital é uma utopia, mas a considera uma utopia útil. Ele entende que é perfeitamente possível perseguir essa instituição ideal em etapas e em escala regional ou continental, começando a pô-la em prática em escala continental ou regional.

Para o economista, o imposto sobre o capital deve mirar a transparência democrática e financeira sobre os patrimônios e os ativos detidos pelos indivíduos em escala internacional. “Os benefícios para a democracia seriam consideráveis: é muito difícil haver um debate tranquilo sobre os grandes problemas mundiais enquanto reinar tamanha opacidade sobre a distribuição das riquezas e das fortunas mundiais”, afirma o autor.

Outra proposta defendida por Piketty é tornar obrigatório o registro do título de propriedade e o conjunto dos seus ativos perante as autoridades financeiras mundiais. O imposto sobre o capital seria um cadastro financeiro, assim como é o cadastro de imóveis.

Para o autor, o imposto sobre o capital obriga a especificar e ampliar o conteúdo dos acordos internacionais sobre as transmissões automáticas de informações bancárias. O princípio deve ser simples: cada autoridade fiscal nacional deve receber todas as informações necessárias para lhe permitir calcular a renda e o patrimônio líquido de cada cidadão.

Outra medida avançada e implementada é a lei americana conhecida como Facta. Ela impõe a todos os bancos estrangeiros a obrigação de transmitir ao fisco americano todas as informações sobre suas contas, alocações e rendas detidas e ganhas pelos contribuintes americanos em outros lugares do mundo.

Por fim, e em síntese, é preciso buscar a ampliação dos acordos e tratados internacionais, a troca automática de informações entre os países, maior transparência nas atividades das instituições financeiras e das multinacionais e efetivos controles sobre as operações de comércio exterior e de câmbio. Além disso, são indispensáveis para a otimização do trabalho da administração tributária todas as informações dos ativos financeiros mantidos pelos bancos.


Clair Hickmann é auditora da Receita Federal do Brasil, integra o Instituto Justiça Fiscal (IJF)