Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG.
Em meio à pandemia do coronavírus (Covid-19), o Tribunal de Justiça (ou melhor: de Injustiça) do Estado de Goiás (TJ-GO) – no dia 13 deste mês de maio – aprovou o “auxílio-saúde” de R$ 1.280 mensais para os juízes e desembargadores, que já têm o “auxílio-moradia” de R$ 4.300 mensais, o “auxílio-alimentação” de R$ 1.200 mensais e o “auxílio-livro” de R$ 3.200 anuais, além do salário que varia de R$ 30.400 a R$ 35.400. O benefício do “auxílio-saúde” causará aos cofres públicos o impacto de R$ 6 milhões por mês.
A respeito desse benefício, ouçamos a voz do povo:
– “É uma tremenda covardia, falta de respeito ao povo que precisa tanto de ajuda e não está conseguindo. Como estes servidores, com os salários e benefícios que já têm, conseguem à noite dormir tranquilos? As filas de desesperados estão imensas, de pessoas que o Estado nem reconhece como gente. Não há justiça neste país de forma alguma!! Vergonha destes seres desprezíveis!!!” (Hercilia Ramos).
– “‘Auxílio’ com dinheiro público para quem ganha mais de 30 salários-mínimos é um tapa na cara da sociedade. É assumir que está se lixando se tem gente que morre de fome. É lavar as mãos para o problema ‘dos outros’. É a distorção das distorções. É a falta total de vergonha” (Nando Tigrão).
– “Esses caras não tem vergonha …pobre passando fome e eles se esbaldando com o dinheiro público” (Luis Ribeiro).
Entre os muitos que poderiam ser citados, os três comentários acima expressam muito bem qual é o sentimento geral do povo – sobretudo dos pobres que são a grande maioria – diante da aprovação pelo TJ–GO do “auxílio-saúde”.
O TJ-GO – por meio de Nota – “afirmou que já encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um documento no qual informa o cumprimento da implementação de um programa de assistência suplementar à saúde. O órgão ressaltou que o benefício é previsto pela resolução do Conselho e que é de cada Tribunal a escolha sobre a forma de efetivar esta assistência a seus magistrados, servidores e pensionistas”.
No caso do TJ-GO, a Nota diz: “A assistência à saúde dos beneficiários será prestada, de forma suplementar, por meio de auxílio de caráter indenizatório, com a finalidade de subsidiar custos com planos de assistência à saúde privados. As despesas serão custeadas com orçamento do próprio TJ-GO”.
Senhores juízes e desembargadores, o benefício – mesmo que seja legal – é imoral: uma imoralidade pública descarada, uma sem-vergonhice. É um acinte (uma ofensa, uma afronta, um insulto, um desaforo, um ultraje, um deboche) ao nosso povo.
O “auxílio-saúde” é mais uma prova que os juízes e desembargadores – com algumas exceções – buscam somente seus próprios interesses, estão sempre ao lado dos poderosos, defendem os latifundiários (que, em grande parte, são grileiros de terras públicas), criminalizam os Movimentos Sociais Populares (como o MST e outros), condenam suas lideranças, colocando-as na cadeia e não estão nem aí com o sofrimento e a morte dos pobres.
O povo – e sobretudo os trabalhadores e trabalhadoras – podem confiar numa “Justiça” como essa? Certamente que não.
Como cristão católico, seguidor de Jesus de Nazaré e frade dominicano – por amor à Verdade (o lema da Ordem Dominicana é “Veritas”), em consciência – embora com muita dor – denuncio:
– O silêncio da Arquidiocese de Goiânia (oficialmente, não disse uma palavra sequer) diante da aprovação pelo TJ-GO do “auxílio-saúde” dos juízes e desembargadores, é conivência com uma injustiça que clama diante de Deus.
· Uma Capela “católica” (portanto, confessional), com o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, no TJ-GO (lugar público) é claramente inconstitucional e um desrespeito para com as outras Igrejas e Religiões (num lugar público, como o TJ-GO, no máximo poderia ter um local ou espaço ecumênico de meditação e oração).
· Por tudo o que foi dito – mantendo uma Capela católica no TJ-GO – a Arquidiocese de Goiânia está traindo Jesus de Nazaré e profanando o Santíssimo Sacramento da Eucaristia na pessoa dos Pobres (o que é muito mais grave que a constitucionalidade ou não da própria Capela).
Nessa realidade – eclesial e, sobretudo, eclesiástica – de hoje, como é bom e animador fazer a memória do tempo em que a Arquidiocese de Goiânia era uma Igreja realmente profética e combativa! Pela fé, tenho certeza que esse tempo vai voltar e com mais força. As provações fortalecem a Igreja!
Por fim, antes de terminar, preciso dizer mais uma verdade. Alguém – que, pelo ministério que exerce, teria a obrigação de conhecer a história da Arquidiocese – afirmou que “a Igreja de Goiânia foi salva pela religiosidade popular, porque se tinha transformado numa ONG”.
Por ter vivido intensamente e muito de perto (como um dos responsáveis) ao menos 15 anos da caminhada de renovação da Igreja de Goiânia depois do Concílio Vaticano II, posso afirmar, alto e bom som: trata-se de uma calúnia muito grave. Confio na justiça de Deus.
Lutemos por uma Igreja livre de todas as amarras de poder e suas insígnias; de todas as ostentações de luxo; e de todos os comportamentos diplomáticos, ambíguos, oportunistas, triunfalistas, ditatoriais e clericais.
Lutemos por uma “Igreja Pobre, para os Pobres, com os Pobres e dos Pobres”: a Igreja de Jesus de Nazaré, a Igreja de todos e de todas.
Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/599436-o-auxilio-saude-do-tj-go-uma-imoralidade-publica-descarada