No congelamento não há saída! , por Dão Real Pereira dos Santos

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Dão Real Pereira dos Santos*
Há trinta anos atrás a sociedade brasileira finalmente conquistava o seu Estado Social. Não era nenhuma invenção brasileira, mas uma tentativa de seguir, com pelo menos quarenta anos de atraso, os caminhos trilhados pelas economias capitalistas mais desenvolvidas da Europa. A Constituição Federal de 1988 definia um longo caminho a percorrer. A Carta Magna não se limitou a dizer o que éramos naquele momento, mas o que queríamos ser como Nação no futuro.
Ulissses Guimarães, em seu famoso discurso na promulgação da Constituição, no histórico dia 5 de outubro de 1988, dizia: “A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar”. Marcava-se ali o início de um processo com vistas à construção do bem-estar social, que seria conquistado gradativamente pela implementação de diversas políticas públicas, voltadas à universalização da educação, da saúde, da proteção social, da redução das desigualdades, da erradicação da miséria, da promoção do trabalho etc. Mas, para isso, era preciso garantir a ampliação das fontes de financiamento via elevação da carga tributária.
Desde 1988, no entanto, setores que viam seus interesses prejudicados pela ampliação da estrutura do Estado, vêm se interpondo sistematicamente contra qualquer avanço social. Já no ano seguinte, em 1989, o Imposto de Renda das Pessoas Físicas teve suas alíquotas progressivas reduzidas, de 8 para apenas duas 2, e a alíquota máxima, de 45% para 25%. Em meados da década seguinte, são concedidos benefícios inéditos às altas rendas com a isenção dos lucros e dividendos distribuídos e a criação dos juros sobre o capital próprio, em sentido oposto ao comando de progressividade previsto na Constituição.
No campo tributário, portanto, andamos na contramão daqueles países capitalistas que serviram de inspiração aos nossos constituintes. Enquanto lá o bem-estar social foi preponderantemente financiando por uma tributação progressiva (especialmente sobre a renda), aqui se tratava de desonerar as altas rendas e financiar as políticas públicas com uma tributação cada vez mais regressiva (incidente sobre o consumo).
Na disputa pela riqueza produzida, setores minoritários, mas poderosos, passaram a ver o crescimento do Estado Social como uma ameaça aos seus interesses privados, pois quanto maior o quinhão destinado a políticas públicas e a salários, menor será a concentração de renda e riqueza. Promovem, assim, verdadeiras campanhas contra o Estado, produzindo na sociedade uma rejeição generalizada aos tributos e a qualquer coisa que se pareça com políticas públicas. Quem nunca ouviu as expressões “chega de tanto imposto”, “dia da liberdade de impostos”, “maior carga tributária do mundo”, “impostômetro”, “piores serviços públicos”?
Mais recentemente, em dezembro de 2016, aprovou-se, sem grandes resistências, o congelamento dos gastos primários, praticamente, inviabilizando a ampliação das conquistas sociais. Tudo em nome do equilíbrio fiscal. A crise fiscal, que tem início em 2014, converteu-se numa oportunidade para sufocar o Estado e reverter o processo de construção do bem-estar. É verdade que começamos a registrar déficits nas contas públicas, provocados, não pelo crescimento descontrolado dos gastos, como diziam, mas por uma queda conjuntural e, por vezes, até intencional, das receitas tributárias, decorrentes da queda da atividade econômica e das desonerações. Abdique de receitas e não há outro caminho que não o de cortar os gastos.
A Emenda Constitucional 95/2016 concretizava o ataque fatal às estruturas do Estado Social, condenando-o à estagnação. O congelamento dos gastos representará, no longo prazo, uma redução substancial das políticas públicas voltadas ao atendimento das necessidades básicas da população.
Em 2016, ainda estávamos longe do esperado Estado de Bem-estar concebido pelos constituintes, mas estávamos no caminho. Os gastos primários (todos os gastos governamentais menos os gastos financeiros) representavam cerca de 12% do PIB, em 1990, e tinham chegado a quase 20% do PIB, em 2015. Aqueles mesmos países europeus, que foram os nossos modelos de estados sociais, possuíam, em 2015, cargas tributárias superiores à nossa e aplicavam mais de 30% do PIB em gastos primários. Com o congelamento, estima-se que em 2036 estaremos de volta nos 12% do PIB. A EC 95, portanto, anulará, em 20 anos, os avanços sociais que a Constituição promoveu nos últimos 30 anos.
Segundo Dermeval Saviani (2017)[1], a PEC do Teto dos Gastos, que congela os investimentos públicos durante 20 anos, inviabilizou o Plano Nacional de Educação (PNE), criado em 2014. O PNE estabelecia a meta de atingir a 7% do PIB na educação em cinco anos e 10% do PIB em 10 anos. Com o congelamento, tornou-se impossível o cumprimento dos objetivos traçados.
Rossi e Dweck (2016)[2] estimam que os gastos com educação, que tinham como piso 18% das receitas líquidas dos impostos, em 2036 serão reduzidos para perto de 11% apenas. Na saúde pública, os mesmos autores estimam que o congelamento fará com que o gasto, que estava previsto constitucionalmente para ser de no mínimo 15% da Receita Corrente Líquida, situe-se, até 2036, abaixo dos 10%.
Alguém poderia cogitar que tudo isso é o sacrifício necessário para a retomada do crescimento econômico. A experiência internacional demonstra, no entanto, que o crescimento econômico sempre esteve associado mais à elevação do que à redução dos gastos públicos. Além disso, ainda que seja possível retomar o crescimento, o congelamento impedirá que se transfira tal bônus aos mais necessitados na forma de gastos públicos. Com o crescimento e aumento da eficiência da administração tributária é possível aumentar substancialmente a arrecadação, mas isso também será irrelevante, pois os gastos estarão limitados pelo congelamento e os incrementos de arrecadação ficam desconectados das políticas públicas.
A EC 95 tem sido o pano de fundo para todas as reformas desestruturantes do Estado Social em curso. A reforma da previdência, a reforma trabalhista, a terceirização das atividades fins no setor público, a limitação do crescimento do salário mínimo, a demissão de servidores públicos, rebaixamento dos salários, as privatizações etc, tudo passa a se justificar na impossibilidade de elevação dos gastos públicos.
Sem enfrentar a causa dos problemas, torna-se impossível evitar os problemas. Fosse a crise fiscal a questão principal, como dizem, a solução primeira deveria ser o aumento da arrecadação de tributos, a revogação de boa parte dos benefícios fiscais concedidos, o efetivo combate à sonegação, ao contrabando e ao descaminho, a cobrança da dívida ativa que já passou de 1,5 trilhão de Reais, dentre outros. Mas o próprio ministro da Economia já sinalizou que a carga tributária deveria ser menor (20%), logo, não é o desequilíbrio fiscal que o incomoda, mas o modelo de Estado.
Portanto, não há saída no congelamento dos gastos. O Estado de bem-estar não está apenas congelado, mas está, sim, condenado. O que está no horizonte não é o equilíbrio fiscal, mas um indisfarçável Estado mínimo. Enfrentar o congelamento dos gastos passa a ser a pauta central dos movimentos sociais e dos sindicatos que defendem a Constituição, o Estado de Bem-estar e a ampliação dos direitos. Enfrentar o congelamento dos gastos é apostar no desenvolvimento econômico e social do país.
 
*diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal
[1]                     Filósofo e Pedagogo, considerado o criador da chamada Pedagogia Histórico-Crítica, em entrevista ao Brasil de Fato, em 8 de dezembro de 2017
[2]                     Impactos do Novo Regime Fiscal na Saúde e Educação, CSP – Cadernos de Saúde Pública, 2016.