Multinacionais devem apoiar fim da isenção do imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos

  • Categoria do post:Artigos

Márcio Calvet Neves*

Em agosto de 2019, quase 200 CEOs de grandes empresas multinacionais (EMNs) emitiram uma declaração redefinindo o objetivo de uma corporação, mudando de uma visão tradicional que consistia apenas em maximizar lucros para os acionistas para uma que inclua a obrigação de apoiar a comunidade em que trabalham.

Embora a declaração seja omissa quanto a questões tributárias, não há motivo para excluir a tributação socialmente responsável do seu escopo.

Existem muitas situações em que as EMNs podem colocar suas declarações à prova e apoiar o fim da isenção de imposto sobre dividendos no Brasil é uma grande oportunidade, com um efeito colateral positivo que será explicado abaixo.

O sistema tributário no Brasil ainda reflete os princípios do Consenso de Washington adotados pela maioria dos países em desenvolvimento durante os anos oitenta e noventa. Foi estabelecido com base em impostos sobre valor agregado (IVA) e progressividade reduzida do imposto de renda, acentuada por uma rara isenção no imposto de renda na distribuição de dividendos. A principal justificativa para a criação da isenção em 1995 foi a alegada necessidade de integração entre o indivíduo e a entidade empresarial.

 Os formuladores desta política argumentaram que a isenção estimularia o investimento em atividades produtivas e diminuiria a evasão fiscal. Ao longo dos anos, a isenção tornou-se a pedra angular de um sistema tributário muito injusto. Ao invés de promover investimentos em atividades produtivas, a isenção passou a ser o seguinte:

Um incentivo para que os acionistas tirem dinheiro de suas empresas promovendo a imediata distribuição de lucros;

Maior evasão fiscal e desigualdade, tornando mais vantajoso para as empresas de serviços conceder algumas ações ou quotas aos seus empregados e pagar a maior parte de sua remuneração através de dividendos, em vez de impostos;

Soluções básicas de planejamento tributário permitidas onde o emprego foi substituído por prestação de seviços por empresas de propriedade individual;

Permitiu que indivíduos com elevado patrimônio líquido e portfolio de investimentos  recebessem renda isenta de impostos;

Transferiu desnecessariamente a receita tributária do Brasil para jurisdições estrangeiras, permitindo a remessa de lucros e dividendos isenta de impostos ao exterior e

Imposto de renda reduzido para a elite, forçando as classes média e baixa, que geralmente não têm acesso ao planejamento tributário, a submeter seus rendimentos à tabela progressiva com alíquotas de até 27,5%.

Estatísticas surpreendentes

Estudos empíricos mostraram que a isenção sobre lucros e dividendos é responsável por estatísticas surpreendentes.

Gobetti e Orair, pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia Aplicada (IPEA), examinaram declarações de pessoas físicas. Eles concluíram que os valores dos dividendos distribuídos quase dobraram de 2007 a 2013, evidenciando o planejamento tributário para migrar do lucro tributável para o dividendo não tributável e resultando em uma situação em que os dividendos correspondem a 82% de toda a remuneração recebida pelos principais ganhadores (aqueles com renda anual acima de R$ 1,3 milhão (US$ 316.000). Os autores estimaram que uma alíquota linear de apenas 15% sobre lucros e dividendos aumentaria em R$ 43 bilhões a arrecadação anual do imposto de renda e diminuiria a desigualdade em 2,9%. Detalhes e análises adicionais estão descritos em sua publicação, intitulada Tributação e distribuição de renda no Brasil: novas evidências a partir de dados pessoais de imposto de renda (2017).

Morgan, um acadêmico da Escola de Economia de Paris e do Laboratório Mundial de Desigualdade, chegou a conclusões muito similares ao analisar a distribuição de renda e a desigualdade de 2001 a 2015 em seu artigo, intitulado Falling Inequality beneath Extreme and Persistent Concentration: New Evidence for Brazil Combining National Accounts, Surveys and Fiscal Data (2018).

Combinando dados de declarações de imposto de renda e a pesquisa nacional, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), sua análise mostrou clara violação da progressividade pela diminuição significativa da alíquota efetiva do imposto de renda para o 0,5% do topo da tabela de rendimentos.

Os resultados mostraram que o 0,01% mais ricos têm uma taxa efetiva de imposto de renda de apenas 6% porque a maior parte de sua renda foi classificada como lucros e dividendos não tributáveis.

Em resumo, a isenção de lucros e dividendos no Brasil é uma experiência política que deu errado. Seus resultados são o oposto ao que decorre em jurisdições que dependem fortemente um imposto de renda redistributivo, como a Austrália, que tributa dividendos como renda ordinária (compensado por impostos pagos por empresas) ou nos países com alto imposto de renda do norte da Europa.

O Brasil não se tornou apenas um exemplo claro de um país não desenvolvido que não exerce seu poder de tributar  corretamente,  mas também de uma sociedade que elabora suas leis tributárias para manter e acentuar as desigualdades.

Nos últimos 25 anos, o poder empresarial local foi exercido em todas as suas formas para manter esse benefício quase sem precedentes, independentemente de suas repercussões negativas e da falta de resultados positivos.

Poderes instrumentais e estruturais, reforçados por lobby das principais organizações empresariais, argumentando que a tributação de dividendos levaria a ausência de investimentos, desemprego, saída de multinacionais e a estagnação econômica, têm sido extremamente bem-sucedidos. As empresas locais também conseguiram passar para os eleitores as idéias de que o governo é lento, ineficiente e não inova, de que a corrupção é inerente ao governo e que empresas e indivíduos pagam impostos demais pelo nível de serviços que o governo oferece.

Dado que as ameaças de saída de capital e interrupção de investimentos não têm credibilidade (dos 34 países da OCDE, apenas a Estônia e a Letônia tem um imposto pessoal líquido de 0% sobre lucros e dividendos distribuídos) , as empresas multinacionais (EMNs) têm uma oportunidade no Brasil de ignorar os lobistas e cumprir seu compromisso de apoiar os

comunidades. Melhor ainda, nessa situação específica, sem sofrer sequer um aumento, em geral, em termos de impostos globais.

A reforma tributária oferece uma oportunidade para mudar

No Brasil, há muita discussão sobre reforma tributária e algumas propostas estão na mesa. Algumas deles têm a capacidade de gerar mais justiça distributiva sem aumentar a tributação das EMNs no geral. A idéia seria tributar lucros e dividendos, mas ao mesmo tempo determinar que o imposto adicional gerado seja compensado por uma redução correspondente aos impostos do tipo IVA. Reformas desse tipo beneficiariam toda a população, especialmente os pobres, que usam a maior parte de sua renda para pagar serviços públicos e não se beneficiam da isenção do imposto sobre dividendos. Esta solução leva em consideração que a carga tributária do Brasil, de aproximadamente 33% do PIB, está próxima da média da OCDE e não deve ser aumentada.

O apoio popular pode ser conquistado com a mensagem direta de fazer os ricos pagarem sua parte justa dos impostos sem aumentar a carga tributária global, neutralizando os principais argumentos opostos.

À primeira vista, a sugestão de que as EMN participem da luta pela tributação de dividendos pode parecer contraditória, mas está longe disso. Os impostos são essenciais para educação, segurança, saúde, infraestrutura, distribuição de riqueza, mas também para o sistema legal. Sem um judiciário funcional, os contratos são pedaços de papel sem aplicação obrigatória. Impostos, portanto, não são apenas indispensáveis à receita pública, mas também às empresas privadas. Se houver alguma inconsistência, está cimentada na ideologia comercial desatualizada que pavimentou a noção quase incontestável de que imposto é um custo dos negócios que sempre precisa ser reduzido ou eliminado para priorizar os lucros dos acionistas.É míope.

De qualquer forma, independentemente da controvérsia sobre a ideologia empresarial, neste caso específico, há uma oportunidade de que as empresas multinacionais participem da luta pela tributação de lucros e dividendos. Na maioria dos casos em que as EMN investem no Brasil, as regras internacionais de imposto de renda devem gerar  neutralidade do imposto brasileiro sobre lucros e dividendos, através de mecanismos de créditos tributários, isenções  ou declarações  consolidadas de pessoas jurídicas, para que as empresas que fazem negócios no Brasil não sofram um aumento de sua carga tributária mundial se o Brasil tributar lucros e dividendos.

O resultado seria bem o contrário: embora o imposto sobre dividendos deva ser um jogo de soma zero sob a perspectiva da carga tributária global, o custo de fabricação ou prestação de serviços no Brasil diminuiria pela correspondente redução de impostos indiretos sobre bens e serviços essenciais, como telecomunicações e eletricidade. .

O apoio das EMNs é crucial porque o lobby e a resistência das empresas brasileiras, consultores e os legisladores serão difíceis de superar.

Vários projetos de lei para restaurar a tributação de lucros e dividendos foram apresentados no Congresso nos últimos 25 anos, mas nenhum deles encontrou seu caminho para uma votação em plenário. Muitos legisladores se beneficiam da isenção de lucros e dividendos eles próprios.

A Câmara dos Deputados brasileira tem 513 assentos e, segundo o Departamento Intersindical de Conselho Parlamentar, as duas maiores profissões representadas na casa são empresários (185) e advogados (53). Os médicos vêm em quarto lugar com 25. Essas profissões correspondem a metade da casa e se beneficiam diretamente da isenção de lucros e dividendos. Eles precisam ser convencidos a votar contra seus interesses particulares, pois deveriam sempre apoiar a tributação. Em segundo lugar, as EMNs são essenciais para ajudar a mudar a idéia, predominante entre os eleitores, de que qualquer imposto pago ao governo é desperdiçado em ineficiência e corrupção.

O Brasil sofreu significativamente nos últimos anos de reformas neoliberais extremas que resultaram em estatísticas apavorantes. As EMNs observaram enquanto receitas antigas baseadas em privatizações indiscriminadas, redução de direitos trabalhistas, cortes no orçamento e tetos para despesas sociais restringiram a oportunidade de crescimento econômico – uma receita que até os arquitetos do Consenso de Washington já abandonaram.

As EMNs agora têm a chance de retribuir, contribuindo significativamente para a economia e desenvolvimento social. Janelas para mudanças reais na política tributária são raras e é essencial que os brasileiros, com a ajuda das empresas multinacionais, aproveitem esta oportunidade de reforma tributária para restabelecer a tributação sobre lucros e dividendos. EMNs terão a ganhar.

*Este artigo foi escrito por Márcio Calvet Neves, acadêmico em impostos e políticas públicas no Rio de Janeiro. Publicado originalmente pelo autor, integrante do IJF, em 16/12/2019, em: https://www.internationaltaxreview.com/article/b1jfpqrmgdjgt2/mnes-should-back-the-end-of-brazils-income-tax-exemption-on-dividends