Maria da Conceição Tavares: “a Economia que não se preocupa com a justiça social é uma economia que condena os povos”

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por

Hermógenes Saviani Filho[1]

Maria da Conceição Tavares nos deixou, em 08 de junho de 2024, numa manhã de outono, aos 94 anos, e quis o destino que nascesse no ano em que ela e Celso Furtado apontariam como o ponto de inflexão da Economia Brasileira, quando deixamos de ser uma economia voltada para fora e passasse, paulatinamente, a internalizá-la, em 1930. Portuguesa de nascimento e brasileira de corpo e alma, a partir de sua chega ao Brasil, aos 24 anos, aliás, mais brasileira que a maioria dos que nasceram em patropi, principalmente os que se denominam “patriotas” e que berram “Brasil acima de tudo”, algo que ela jamais assinaria embaixo pelo inconsciente coletivo que carrega.

Infelizmente não fui seu aluno, mas a tenho como Mestra e minha admiração por ela começa ao vê-la, pela televisão, se debulhar em lágrimas quando do lançamento do Plano Cruzado, em fevereiro de 1986. Seu choro e fala emocionada ao elogiar o Plano por ter sido anti-inflacionário e sem prejudicar o trabalhador. Eu acabava de iniciar a Faculdade de Jornalismo na Universidade Metodista, em São Bernardo, e assistia ao anúncio e os comentários num saguão lotado. Sendo filho de metalúrgico, que cresceu ouvindo o pai criticar patrões e sindicalistas pelegos, eu chorei com aquelas palavras.

A Mestra era assim, emoção a flor da pele, dignidade acima de tudo e corajosa, segura, ao falar, ao debater. Enfrentá-la deveria causar calafrios pelo corpo até em Mario Henrique Simonsen, seu amigo, mas tinham olhares diametralmente opostos sobre como a economia deveria ser conduzida. Diga-se de passagem, foi ele quem a tirou da prisão durante a Ditadura Civil-Militar. Ela também participou da criação do Plano de Metas do governo JK, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL).  Foi, ao lado de Celso Furtado, os principais teóricos do pensamento desenvolvimentista brasileiro, formando uma miríade de economistas, famosos ou não.

Suas críticas ao Neoliberalismo eram devastadoras, principalmente, quando seus intelectuais orgânicos afirmam que devemos primeiro economizar, para depois crescermos e finalmente distribuirmos. Defensora da redução das desigualdades do Brasil se opôs a agenda da responsabilidade fiscal com cortes no orçamento público em gastos sociais, saúde e educação, arrocho salarial e redução de direitos trabalhistas e previdenciários. Teses que ganham força, a partir do destaque diuturno que a mídia corporativa realiza e ainda acrescenta que o mito de que orçamento público é como o doméstico, que devemos primeiro ter os recursos, que viriam dos tributos, para depois serem gastos, “esquecendo-se” que o governo federal é o emissor da moeda, enquanto dos demais agentes não o são. 

Com a explosão das redes sociais passaram a pipocar trechos de suas entrevistas e aulas ministradas na UFRJ e Unicamp, onde participou da criação do Instituto de Economia. São clássicas as passagens, como suas falas sobre os donos do poder, em que ela explicita que “só faz de conta que a política não interessa quem manda, o problema é que ele disfarça o seu interesse político. Ele faz em câmaras secretas, em chás, em almoços. Os interesses podem ser resolvidos nos jantares das sextas-feiras. Nós não podemos resolver nos jantares das sextas-feiras. Nós não somos da elite dominante deste país.” Frases como a anterior se soma a esta: “nós perdemos, nós somos derrotados, e se vocês (alunos) não fossem derrotados não vinham para esta universidade”.

A professora Conceição Tavares nesta passagem da entrevista no Roda Viva se manifesta contra o Neoliberalismo: “a Economia que não se preocupa com a justiça social é uma economia que condena os povos, o que está acontecendo no mundo inteiro, a uma brutal concentração de renda, ao desemprego e a miséria. Isto, para mim, não é Economia, isto é coisa de tecnocrata alucinado, que acha que está tudo certo, e não está tudo certo. Eu sou da Esquerda tradicional, eu sempre me preocupei com a justiça social. Uma Economia que diz que primeiro é preciso estabilizar, depois crescer, depois distribuir é uma falácia e tem sido uma falácia, pois nem estabiliza, cresce aos solavancos e não distribui. Esta é a História da Economia Brasileira desde o pós-guerra. Se não se preocupa com a justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério, você é um tecnocrata.”

Num artigo publicado em 2014 ela dava mostras de seu pessimismo e sinaliza para o atual momento: “o mundo reformista está mal e o mundo revolucionário também. O que se vê, aí, são manifestações que se misturam religião e guerra civil…o pensamento social está muito atrasado, muito desmilinguido. O pensamento reformista sumiu…O mercado é o estado natural. As desigualdades são o estado natural da sociedade.” Mas ela elogiava o Brasil que, em suas palavras, estava “conseguindo fazer políticas sociais avançadas. Nosso andamento é diferente. Nós fizemos nosso Estado de bem-estar, formalmente na Constituição de 1988…E hoje, a gente consegue, no governo do PT, fazer políticas sociais avançadas. Está diminuindo o número de miseráveis, com consequente aumento da base social organizada…O salário mínimo multiplicou algumas vezes. As taxas de emprego nunca foram tão altas. A massa dos pobres está sumindo devagarinho. A ideia de uma malta ascendente, de que a desigualdade está diminuindo, é fato, todo mundo sabe. Não há como esconder. Foi deliberado… Para mim, os critérios clássicos são emprego, salário-mínimo e ascensão social das bases. E, também, é sempre importante olhar o investimento. Com isto estou satisfeita…A redução da desigualdade é a única coisa que se pode dizer que o PT cumpriu.”

Suas preocupações – no que levariam às passeatas de 2013, que, acertadamente, as rotulava de araque, do desconforto da classe média tradicional com o discurso petista, com a imprensa conservadora, as dificuldades econômicas para viver pela qual a sociedade passava e a falta de uma utopia que agregasse os interesses fracionados terminaram por se realizarem e, em 2018, ela se mostrava pessimista com o Brasil e sua esperança estava nos jovens, que poderiam ajudar na saída da crise. Parece que ela só errou neste ponto.           

O seu reconhecimento internacional ocorreu em 2000, quando foi indicada pela publicação Biographical Dictionary of Dissenting entre os cem economistas heterodoxos mais importantes do mundo. Havia apenas quatro mulheres e uma única latino-americana. Em 2019, o cineasta José Mariani lançou o documentário “Livre Pensar” em homenagem a ela, no qual tive a oportunidade de participar de um debate no auditório da Faculdade de Ciência Econômicas da UFRGS. No filme, fica evidente a sensação de melancolia sobre o sonho não realizado de desejar “uma democracia multirracial nos trópicos, que era a tese de Darcy Ribeiro”.

Maria da Conceição nos deixou sem poder ver este sonho se transformar em realidade, mas deixou a chama acesa em muitos de seus pupilos. E como destacou assertivamente a jornalista Milly Lacombe, ela deixa, além de sua obra e conhecimento, para as meninas e mulheres a certeza de que podem falar apaixonadamente, de que não precisam parecer calmas para uma sociedade hipócrita e misógina que podem ombrear com os homens e de que não é feio falar um palavrão bem colocado. Grato Mestra, você fará falta!  


[1] Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais DERI da Universidade Federal do Rio Grande do Sul//UFRGS.