por Danielle Santos
No Brasil, a disparidade na tributação de produtos ligados à fisiologia da mulher é de quase 30% em relação a itens considerados não essenciais consumidos por homens. Essa diferença é vista não apenas como segregacionista como fere os princípios da seletividade, previstos na Constituição Federal, que é garantir que produtos essenciais sejam menos tributados em detrimento dos itens considerados supérfluos. A constatação é da advogada e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luiza Machado. A estudiosa concluiu uma dissertação de mestrado intitulada “Tributação e desigualdades de gênero e raça: vieses de gênero na tributação sobre produtos ligados ao trabalho de cuidado e à fisiologia feminina” (confira aqui).
Em entrevista à equipe de jornalismo do Sindifisco Nacional, Luiza Machado disse que o assunto é urgente e necessário, principalmente quando o país discute o texto da Reforma Tributária.
Sua tese fala sobre tributação e desigualdades de gênero e raça. O que fez você pensar em fazer um levantamento sobre esse tema?
Luiza Machado – O tema tributação e gênero já é tratado pela bibliografia internacional desde a década de 90. Sobre esse tema já existe um certo consenso de que a tributação não é neutra e vai ter vieses que vão discriminar as mulheres. Como essas pesquisas começaram no norte global, onde o Imposto de Renda é muito mais relevante do que os impostos sobre consumo, a maior parte da literatura se concentrava nos vieses de discriminação do IR. A realidade do sul global é distinta. Temos uma alta tributação do consumo e ela se torna muito mais impactante na vida das mulheres. Então resolvi fazer essa pesquisa, focando na tributação indireta, que é um tema menos pesquisado e, além disso, tem mais impacto nas mulheres brasileiras e de países menos desenvolvidos.
Sua pesquisa abrange quais itens de consumo e como essa diferença na carga tributária afeta as mulheres no Brasil?
Luiza Machado – Fiz uma pesquisa tendo como base dois tipos de produtos: aqueles ligados à fisiologia da mulher, ao sistema reprodutivo feminino, como absorventes, anticoncepcionais e DIU, e aqueles ligados à condição fisiológica da maternidade, como bomba extratora de leite, manteiga de hidratação de mamilos, entre outros. Em todos os itens eu notei uma alíquota maior do que produtos que não são essenciais ou que são mais consumidos por homens. O anticoncepcional feminino, por exemplo, tem tributação três vezes maior que a camisinha masculina. O absorvente tem uma tributação de quase 30%, percentual superior à tributação da esponja de maquiagem. A esponja de maquiagem não é um bem essencial, mas, de acordo com a nossa Constituição, o absorvente é.
O país está prestes a ter uma proposta de Reforma Tributária aprovada no Congresso Nacional. O que a senhora acha que poderia ser feito para corrigir esse tipo de distorção?
Luiza Machado – Acho que estamos num momento importante para discutir como a tributação afeta de formas diferentes homens e mulheres, pessoas brancas e negras e suas interseccionalidades, e propor alterações para isso. Mas, infelizmente, os projetos de Reforma Tributária não têm se atentado para essas questões. Poderíamos pensar como outros países fazem para zerar a tributação sobre absorventes. Na Colômbia, por exemplo, a Suprema Corte declarou inconstitucional a cobrança de IVA (Imposto sobre o Valor Agregado) para uma parcela da população. Essas discussões precisam ser incorporadas na Reforma Tributária porque o nosso sistema não pode continuar discriminando as mulheres. Os produtos ligados a condições fisiológicas das mulheres ou o trabalho de cuidado à subsistência, como dispõe o princípio da seletividade em função da essencialidade da nossa Constituição, deveriam ter uma tributação amenizada. Por outro lado, precisamos aumentar a tributação sobre produtos supérfluos, não essenciais. A ideia que a Reforma Tributária traz do imposto seletivo é no sentido de aumentar a tributação sobre esses bens não essenciais que fazem mal à saúde, mas é preciso também, de outro lado, garantir que os produtos essenciais contem com uma baixa tributação. O relatório da Reforma Tributária previa a redução de 50% da alíquota para produtos de higiene pessoal, o que é importante, mas precisamos garantir que os absorventes e os anticoncepcionais, os produtos ligados à dignidade sexual das mulheres, sejam garantidos nesse processo. O que acontece hoje é que o anticoncepcional tem uma tributação de quase 30%, enquanto o Viagra, que é um bem masculino, tem uma tributação de 18%. Atualmente, existe o princípio da seletividade, mas só para alguns bens e especialmente os bens masculinos.
O Sindifisco Nacional defende uma tributação mais justa e solidária, capaz de promover a justiça fiscal e o custeio do Estado brasileiro com as políticas públicas. Como a senhora percebe as discussões em torno dessa proposta? Quais desafios a senhora vê na concretização de uma reforma mais justa e capaz de reduzir a desigualdade social?
Luiza Machado – O Sindifisco defende uma Reforma Tributária justa e solidária e tem sido um grande ator nessa luta por justiça tributária. E traz nessa proposta justamente aumentar a tributação dos super ricos, aumentar a progressividade do Imposto de Renda e reduzir a tributação sobre o consumo, o que tem esse caráter de beneficiar os mais pobres. Nós sabemos que essa parcela é formada em grande parte por mulheres e pessoas negras, especialmente mulheres. Os desafios para alcançar uma Reforma Tributária mais justa é unir as entidades que lutam por uma justiça tributária, pesquisadoras acadêmicas, grupos de pesquisa, movimentos sociais e movimentos feministas para fazer uma discussão sobre uma reforma que realmente seja capaz de reduzir a desigualdade social, mas entendendo que a desigualdade social também é uma desigualdade racial e de gênero.