A lei de repatriação de dinheiro mantido no exterior sem declaração à Receita Federal, que irá anistiar as pessoas que fizerem a declaração até o dia 31 de outubro deste ano, “é desnecessária” do “ponto de vista da arrecadação, da administração tributária e da fiscalização de tributos”, diz Mauro José Silva, auditor da Receita Federal, à IHU On-Line. Segundo ele, não há necessidade de o Estado anistiar aqueles que mantêm dinheiro não declarado no exterior porque, a partir do próximo ano, o Brasil terá acesso às informações financeiras dessas pessoas, por conta de uma série de acordos bilaterais e multilaterais assinados com outros países, de modo que poderia tributá-las sem conceder anistia aos crimes cometidos.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Mauro José Silvaexpõe suas principais críticas à lei e argumenta que esse tipo de legislação “abala a moral do contribuinte e o desestimula a recolher voluntariamente suas obrigações tributárias. Além disso, essa lei faz com que o contribuinte fique sonegando, esperando uma nova repatriação”. E adverte: “Você acha que, dada essa cultura dos parcelamentos especiais, o contribuinte não vai entender que pode acontecer a mesma coisa com a chamada lei de repatriação? Estão criando uma cultura de lei de repatriação que vai acabar jogando a arrecadação para baixo”.
O auditor fiscal diz ainda que a estimativa é de que atualmente a sonegação de impostos seja da ordem de 500 bilhões de reais, mas não existe nenhuma campanha federal para evitar esse tipo de prática. “Vemos alguma notícia na imprensa sobre isso ou vemos o governo querendo combater a sonegação? Enquanto isso, fala-se em PEC 241 e em lei de repatriação, mas o governo não se envolve no combate à sonegação. Qual seria a alternativa? Combater a sonegação”, frisa. De acordo com Silva, se 25% da sonegação fosse combatida, seria possível arrecadar 92 bilhões de reais. “Poderíamos ainda fazer isso em três anos, mas o problema é que o combate à sonegação é algo de uma vez só, ou seja, é para sempre, porque isso eliminaria a sonegação”, diz.
Mauro José Silva é graduado e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É auditor fiscal da Receita Federal do Ministério da Fazenda e exerce a função de julgador na Delegacia de Julgamento de São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia a Lei da Repatriação e Securitização de Créditos Tributários, que anistiará o crime daqueles que não declararam o dinheiro no exterior e declararem o dinheiro até o final do mês?
Mauro Silva – Em primeiro lugar, o nome que deram à lei – Lei de Repatriação – é equivocado, porque não há uma exigência de que os recursos que foram enviados para fora do país sem o conhecimento do fisco sejam trazidos de volta; trata-se de uma regularização apenas. Então, essa é uma questão semântica importante, porque o nome dado à lei acaba atraindo certa simpatia ao se referir à “pátria” ou ao termo “repatriação”.
Em segundo lugar, essa lei surgiu em um contexto no qual o Brasil está assinando acordos bilaterais e multilaterais para ter acesso às informações de brasileiros no exterior, de forma que, no próximo ano, já será possível ter acesso às informações das pessoas que enviaram dinheiro para o exterior sem prestar contas ao fisco. Ou seja, a lei surge no contexto que chamo de globalização dos fiscos; portanto, sob o ponto de vista da arrecadação, da administração tributária e da fiscalização de tributos, essa lei é desnecessária, uma vez que o fisco teria acesso às informações dos brasileiros, de modo que seria possível alcançar essas pessoas de outro modo.
Uma das críticas que fazemos a essa lei diz respeito à sua justificativa. Ao ser enviada aoCongresso pelo Poder Executivo, a lei se justifica, segundo o então ministro Joaquim Levy, pela possibilidade de arrecadar um montante equivalente a 100 a 150 bilhões de reais. No entanto, essa informação não tem nenhuma base empírica. Tanto é assim que, recentemente, o ministro Henrique Meirelles concedeu uma entrevista afirmando que não há como avaliar esses recursos. Com isso, a conclusão a que chegamos é a de que o projeto de lei foi enviado ao Congresso com uma falsa motivação. Hoje se estima que será possível arrecadar entre 18 e 30 bilhões de reais, então esse número é bastante diferente do valor estimado anteriormente.
Outro ponto que chama a atenção é que o Poder Executivo justifica a legislação afirmando que as pessoas que têm dinheiro não declarado no exterior foram praticamente obrigadas a enviar esses recursos para fora porque, nos últimos anos, o Brasil teve vários planos econômicos e passou por um momento de instabilidade. Então a lei garantiria a possibilidade de reverter essa situação, permitindo que as pessoas declarassem o dinheiro até então não declarado. Essa justificativa é algo que me espanta muito, pois estamos em um país no qual o ministro de Estado permite que uma lei conceda anistia a pessoas que cometeram crimes e o Estado faz a defesa de quem cometeu esses crimes, porque ninguém concede anistia se não há crime.
IHU On-Line – Se a justificativa da lei é falsa, por que ela foi promulgada? A lei visa simplesmente anistiar essas pessoas ou arrecadar mais nesse momento em que o país vive uma crise fiscal?
Mauro Silva – É a soma de tudo isso. O Brasil vive uma crise fiscal profunda e de fato precisa de recursos, mas não sejamos ingênuos, porque os políticos sabiam que o país iria alcançar essas pessoas a partir dos dados de acesso à informação no próximo ano. E justamente por isso que fizeram pressão para que a lei fosse aprovada, para que eles pudessem trazer esses recursos em condições vantajosas. No entanto, como estavam sendo pressionados pela Lava Jato, por exemplo, ao aprovarem a lei, os políticos incluíram o artigo 11, segundo o qual eles e seus familiares não podem se aproveitar dos benefícios da lei.
Essas “soluções mágicas”, como a repatriação, a regularização, a securitização ou os parcelamentos especiais, são uma ilusão, porque abalam a moral do contribuinte e o desestimulam a recolher voluntariamente suas obrigações tributárias. Além disso, essa lei faz com que o contribuinte fique sonegando, esperando uma nova repatriação.
IHU On-Line – Inclusive algumas pessoas ainda não declararam o dinheiro que têm no exterior, aguardando uma possível modificação na lei ou ainda a ampliação do prazo para fazer a declaração.
Mauro Silva – Sim, porque ainda está em pauta a possível modificação da lei. Essa vontade de modificação ocorre em relação a alguns pontos: esticar o prazo para a repatriação, retirar o limite que impede os políticos de serem anistiados, e a outra questão envolve a data limite da declaração. O valor a ser declarado deve corresponder à data de 31 de dezembro de 2014 para frente, mas alguns advogados dizem que esse ponto da lei gera algumas inseguranças porque, ao se limitar a questão tributária em cinco anos, há uma preocupação de que a pessoa que irá declarar esses recursos tenha que pagar tributos referentes aos últimos 16 anos.
Alguns dos defensores da lei afirmam que ela é positiva do ponto de vista cambial, porque permitirá o retorno dos recursos. Entretanto, a lei não tem essa obrigação, pelo contrário, ela induz a saída de recursos. Veja que quem remeteu o dinheiro para o exterior, agora poderá regularizá-lo e pagará 15% de imposto, mais 15% de multa, ou seja, 30%, mas dado o valor do dólar em 31 de dezembro de 2014, esses 30% viram 24%. Por outro lado, aquele sonegador que manteve o dinheiro no Brasil pagará 27,5% de alíquota máxima da tabela progressiva do Imposto de Renda, pagará mais 20% de multa e mais uns 24% de juros de mora, ou seja, algo em torno de 40% sobre o valor sonegado. Então, se a pessoa tivesse sonegado e mantido o dinheiro no Brasil, hoje, comparecendo espontaneamente à Receita, ela pagaria 40% e não seria anistiada de nenhum crime; mas aqueles que remeteram o dinheiro ao exterior pagarão menos – 24% – e serão anistiados de todos os crimes que cometeram. O que você acha que os sonegadores vão fazer daqui para frente? Começarão a enviar o dinheiro para fora, porque é mais vantajoso, dado que depois eles poderão ser anistiados.
IHU On-Line – Mas a lei não corresponde somente às declarações feitas até 31 deste mês?
Mauro Silva – As pessoas terão que fazer a declaração até dia 31 deste mês, mas isso não significa que a lei será única. Em 2000, quando o Programa de Parcelamentos de Débitos Tributários Federais – REFIS surgiu, ele era único e todo mundo jurava que só teria aquele, mas não foi isso que aconteceu. O Estudo dos impactos dos Parcelamentos Espaciais, que é um relatório oficial da Receita Federal, recentemente divulgado, demonstra a quantidade de parcelamentos especiais que ocorreram desde 2001; é um negócio assustador.
Então, você acha que dada essa cultura dos parcelamentos especiais, o contribuinte não vai entender que pode acontecer a mesma coisa com a chamada lei de repatriação? Estão criando uma cultura de lei de repatriação que vai acabar jogando a arrecadação para baixo.
IHU On-Line – Esse cenário que você descreve tende a se manter mesmo que o Brasil tenha acesso aos dados de brasileiros que têm dinheiro no exterior, a partir do próximo ano?
Mauro Silva – Acho que sim, porque se trata de uma vontade política. Mesmo sabendo que a Receita poderá consultar esses dados, poderá haver uma mobilização noCongresso para aprovar outra lei que possibilite uma nova repatriação. NoCongresso existem aqueles que se movem não só por interesses escusos, mas que se deixam levar por essa ilusão do recurso, porque querem que esse dinheiro vá para os estados e municípios.
IHU On-Line – Segundo a lei, quais crimes serão anistiados?
Mauro Silva – Crime contra a ordem tributária, sonegação fiscal, sonegação de contribuição previdenciária, falsificação de documento público e particular, falsidade ideológica, uso de documentos falsos, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
IHU On-Line – Quais são as brechas da lei?
Mauro Silva – A questão é que nem todos os recursos que serão regularizados têm origem lícita, mas, segundo a lei, a comprovação da origem dependerá somente da declaração. Ou seja, a pessoa pode declarar que a origem do dinheiro é lícita, sem prová-la, e isso só poderá ser contestado por outros elementos que demonstrem que a origem não foi lícita. Então a lei poderia ter exigido não a simples declaração, mas provas que demonstrassem que o dinheiro teve uma origem lícita, mas, ao formular a lei, inverteram a situação.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa a essa lei? Considerando que o fisco terá acesso aos dados dos brasileiros que têm dinheiro no exterior, o ideal seria ter aguardado para tributar essas pessoas?
Mauro Silva – Sem dúvida, porque para efeitos de cidadania fiscal e justiça fiscal, não deveria existir lei de repatriação. Ao contrário, deveria se fazer uma grande operação no próximo ano para buscar essas pessoas.
Atualmente, existe uma sonegação de aproximadamente 500 bilhões de reais em todos os níveis e de 372 bilhões somente no nível federal. Considerando esse fato, vemos alguma notícia na imprensa sobre isso ou vemos o governo querendo combater a sonegação? Enquanto isso, fala-se em PEC 241 e em lei de repatriação, mas o governo não se envolve no combate à sonegação. Qual seria a alternativa? Combater a sonegação. Se combatêssemos 25% da sonegação, teríamos 92 bilhões. Poderíamos ainda fazer isso em três anos, mas o problema é que o combate à sonegação é algo de uma vez só, ou seja, é para sempre, porque isso eliminaria a sonegação.
IHU On-Line – Que Brasil poderia ser construído se houvesse de fato a taxação desse dinheiro que é sonegado?
Mauro Silva – Seríamos um país onde o bom contribuinte não se sentiria enganado pelo próprio poder público e teríamos mais cidadania e justiça fiscal. O problema é que hoje as pessoas até se sentem envergonhadas de pagar os tributos, coisa que em outros países é completamente diferente. Por que as pessoas se sentem assim? Porque quem paga fica com cara de bobo, porque quem enviou o dinheiro para fora, depois receberá vantagens para declará-lo. Temos que construir um país em que as pessoas paguem o tributo com orgulho, porque veem que o dinheiro é investido nas questões sociais. Um país que combate a sonegação não precisa da PEC 241.
IHU On-Line – Como você entende a relação do brasileiro com o pagamento de tributos, visto que há uma reclamação geral, entre ricos e pobres, quando se trata de pagar impostos no país?
Mauro Silva – É um conjunto de fatores que contribui para isso, e a corrupção que existe também mina essa capacidade, porque ver os recursos sendo mal utilizados abate a moral do contribuinte. Mas, faz parte do programa de combate à sonegação, o programa de educação fiscal, e a Receita desenvolve esse tipo de trabalho através de palestras nas escolas, por exemplo. Precisamos criar nas próximas gerações o pensamento de que pagar tributos é uma questão de cidadania.
IHU On-Line – Há um movimento internacional para barrar a circulação do dinheiro que não tem uma origem declarada?
Mauro Silva – Há uma tendência, sem dúvida, para que haja uma transparência em relação à circulação dos recursos no sentido de criar obstáculos a essas práticas que acabam não só prejudicando os próprios Estados, mas as empresas que concorrem internacionalmente, ou seja, o próprio capitalismo se vê prejudicado. Então, há um movimento internacional em busca da globalização do fisco e da transparência fiscal. Só que o Brasil, às vezes, importa algumas ideias internacionais e as distorce, basta ver as vantagens dadas aos brasileiros que têm dinheiro no exterior.
IHU On-Line – Como está a discussão sobre a lei de repatriação? Há mais apoio ou críticas a essa lei?
Mauro Silva – Majoritariamente há uma ilusão, porque o nome repatriação dá a entender que estão trazendo de volta para o país recursos que estão no exterior, o que não é verdade. Além disso, uns dizem que esse é um recurso que jamais alcançaríamos, o que também não é verdade, porque há condições de alcançar esses recursos. As pessoas que se manifestam favoráveis à lei estão iludidas, então temos que discutir a lei abertamente para mostrar que ela foi criada para beneficiar algumas pessoas que brevemente seriam alcançadas.