Injustiça fiscal: paga mais tributo quem realmente pode pagar? Por Rodrigo Cunha, em Ciência e Cultura.

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Ciência e Cultura

On-line version ISSN 2317-6660

Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013

Rodrigo Cunha

RESENHA

Injustiça fiscal: paga mais tributo quem realmente pode pagar?

 

Um recente movimento nas ciências sociais e econômicas vem propondo um caminho alternativo aos tradicionais estudos sobre desigualdade social centrados na pobreza, em suas causas e consequências e nas possíveis soluções para atacá‑la. O foco dessas novas pesquisas é a pequena parcela do topo da pirâmide social e as razões estruturais que permitem que ela concentre a maior parte da renda no país.

Após coordenar a coletânea Riqueza e desigualdade na América Latina, publicada em 2010 pela editora Zouk, de Porto Alegre, o líder do grupo de pesquisa que leva o mesmo nome dessa obra, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Antonio David Cattani, retoma o tema, dessa vez centrado no sistema tributário brasileiro, em A sociedade justa e seus inimigos (Tomo Editorial, 2012), organizado em parceria com o auditor‑fiscal da Receita Federal, Marcelo Ramos Oliveira.

Cada capítulo dessa nova coletânea trata de uma faceta específica da injustiça tributária brasileira. Cattani introduz o tema em “Sofismas da riqueza”, um texto em que faz um ataque feroz aos autores que a legitimam, segundo ele, pertencentes a um “fundamentalismo neoliberal”. Essa demarcação de terreno no campo do confronto teórico se torna mais explícita – e amena – no capítulo final “Os amigos da justiça social”, que ele assina junto com Oliveira. Ali eles apontam as bases teóricas das correntes em disputa, uma apoiada em pensadores como Hobbes, Kant, Hegel, Marx e Mészáros, e outra, de tendência liberal, em Mills, Bentham, Hayek e Popper.

Um dos capítulos mais ricos em dados e gráficos – aos quais os textos posteriores, inclusive, se remetem – é o que destrincha as bases tributárias no Brasil, assinado por Fátima Gondim Farias, também auditora‑fiscal da Receita Federal e uma das fundadoras do Instituto de Justiça Fiscal, e por Marcelo Lettieri Siqueira, professor da Universidade Federal do Ceará. É bastante elucidativa, nesse texto, a explicação sobre o quanto pode ser enganosa a comparação da carga tributária bruta de diversos países, sendo mais apropriado descontar, primeiro, as pensões e aposentadorias, para se chegar à carga tributária líquida, e, depois, os juros da dívida pública, para se chegar ao montante que sobra no caixa do Estado para a prestação de serviços públicos.

ELUCIDAÇÕES Alguns pequenos detalhes poderiam deixar esse texto ainda mais rico, tanto do ponto de vista do entendimento do leigo a respeito de um tema tão complexo quanto da contribuição que ele pode proporcionar ao debate político. Um exemplo é a apresentação, logo após um gráfico, que mostra em ordem crescente os países com maior carga tributária bruta, de uma tabela, dessa vez não mais em ordem crescente, mas sim alfabética, da carga tributária líquida e do desconto de juros de países de uma lista não totalmente coincidente com aquela. Um outro detalhe é, por um lado, apontar o Brasil como um dos países mais desiguais do mundo e mostrar nessa tabela que, devido a um alto desconto de juros de dívida pública, o que sobra no caixa é muito pouco; mas por outro, não comentar que o percentual do que sobra da carga tributária nos Estados Unidos é muito próximo da nossa carga tributária líquida descontados os juros, não apontar que posição esse país ocupa no ranking mundial das desigualdades e não citar que ali também é grave e politicamente complicada a questão da dívida pública.

Ao apresentar a tabela seguinte, que traz dados sobre a tributação direta e a indireta em grandes regiões do globo, seria bastante elucidativo se não apenas fosse apresentada uma coluna própria para a tributação sobre a renda, mas houvesse a explicação de quais tributos, além da renda, compõem o que se chama de tributação direta. Mas, certamente, uma das principais contribuições desse texto é mostrar o quanto a tributação indireta, que incide sobre os bens de consumo, é muito maior no Brasil do que a tributação direta, o que sem dúvida pesa mais no bolso da população de baixa renda. Parte da repercussão desse debate se refletiu na recente medida do governo federal de renúncia fiscal sobre produtos que compõem a cesta básica.

O principal imposto envolvido nessa renúncia fiscal, a Cofins, é tema do capítulo assinado por Evilasio Salvador, da Universidade de Brasília, que trata de um aspecto específico dessa tributação indireta. Ao tratar da injustiça fiscal no financiamento das políticas sociais, Salvador mostra que 86,3% dos recursos voltados para a assistência social vêm da Cofins, que incide sobre os bens de consumo, e que apenas 6,5% têm origem na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das empresas. Ou seja, o consumo, inclusive dos mais pobres, é que sustenta os programas sociais.

CIRANDA FINANCEIRA Um texto que radicaliza o discurso, no mesmo tom adotado por Cattani na introdução do livro, é assinado por Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida. Ela aborda de forma bastante pertinente o quanto o sistema da dívida pública, ao mesmo tempo em que consome boa parte dos recursos arrecadados na tributação, contribui para a evolução dos lucros no sistema financeiro. Mas ao criticar, primeiro, a Lei de Responsabilidade Fiscal, instituída no governo FHC, e, depois, a Carta aos Brasileiros do então candidato à presidência Lula, em que ele se compromete a cumprir os contratos, Fattorelli não se dá conta de que mais perversa do que a ciranda financeira que alimenta o capital seria a fuga desse mesmo capital caso não houvesse segurança jurídica em nosso país. Uma coisa é a defesa de auditoria da dívida e o exemplo da comissão que ela integrou, a convite do presidente equatoriano Rafael Correa, a qual resultou em considerável redução da dívida externa do Equador. Outra, bem diferente, é a defesa do calote, que está nas entrelinhas daquelas críticas.

Duas omissões básicas, talvez por motivos ideológicos ou por estratégia argumentativa, marcam essa publicação. Primeiro, ao tratar tanto de dívida interna quanto de dívida externa, não fazer nenhuma menção ao fato de o Brasil ter passado da condição de devedor à de credor no cenário internacional. A outra, ligada certamente à retórica de ataque aos “inimigos de uma sociedade justa” – os ricos e a estrutura que alimenta a concentração de riqueza – tem a ver com o tom maniqueísta que predomina em praticamente todo o livro, ao tratar basicamente de pobres e ricos e não fazer uma menção sequer ao fato de o país ter alcançado a condição de ter a maioria de sua população pertencendo à classe média. Mas certamente essa obra traz contribuições fundamentais para o debate acerca das desigualdades em nosso país.


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