Infraestrutura logística portuária: O Estado cooptado pelo setor privado e a população à mercê do capital. Entrevista especial com Roberto Moraes Pessanha

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“As regiões e os territórios usados pelas corporações decidem o que, quando e como fazem, sem que as pessoas e comunidades tenham capacidade de influir neste processo”, aponta o pesquisador.
Os esforços do Brasil para expandir a economia e se inserir no mercado internacional necessariamente passam pela ampliação de infraestrutura de transporte de mercadorias. No caso brasileiro, essa condição se intensifica pelo perfil das atividades econômicas do país, que tem na exportação de matérias-primas uma de suas principais bases. Conforme acentua o engenheiro elétrico, professor e pesquisador Roberto Moraes Pessanha, esse modelo de expansão econômica se configura como uma opção dentro do capitalismo contemporâneo, uma vez que, tanto para o Brasil quanto para outros países da América Latina que sofrem com a opressão das corporações globais, “fugir da primarização é uma tarefa difícil e parece apenas uma isca que complementa a teoria de que, para existir o centro, seria sempre necessário ter a periferia supridora de matérias-primas dependente e subordinada”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line,Pessanha aborda as principais dimensões que envolvem a ampliação e funcionamento da infraestrutura logística brasileira para a circulação de mercadorias, principalmente o Porto do Açu, no Rio de Janeiro, que começou a operar em 2014, gerando uma série de impactos socioeconômicos e ambientais na região. O pesquisador alerta para a importância econômica e política do setor de logística, o qual é fundamental para fazer circular grandes somas. “A indústria do transporte produz valor, por se tratar de uma esfera da produção material que vende a mudança da localização como seu produto. Assim, a circulação do capital seria assegurada por um pujante e eficiente sistema de transporte que, espacialmente integrado e hierarquizado, em diferentes escalas é puxado pelas corporações globais, naquilo que acabou nomeado como um processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. É nesta lógica que devemos nos esforçar para compreender onde o Brasil entra neste processo”, frisa.O pesquisador ressalta ainda que há diferenças importantes entre corporações globais e multinacionais. As corporações globais, sobretudo as que comercializam petróleo, consideram o mundo como um bloco único, não respeitando as fronteiras e diferenças entre os países. “Neste contexto, estas corporações globais do setor de petróleo quase não enxergam e não se submetem ao nacional, o que torna a questão da relação petróleo-porto um tema singular e temeroso, no esforço de desenvolvimento e de inserção global do Brasil”, explica.
Sobre a situação do país nesse contexto, chama a atenção para as relações institucionais entre o Estado e o setor privado na normatização da implantação e gestão da logística, principalmente no que tange à concessão de licenças e regulação fiscal. “Nessa interação o Estado é cooptado e o capitalismo liberado para suas ações, embora ainda se sustente o discurso de que através do planejamento se possa reduzir os riscos dos movimentos especulativos no tempo e no espaço, onde o capital fixo se instala. Neste sentido, o caso da tragédia produzida pela mineradora Samarco, no município de Mariana, Minas Gerais, é um exemplo real, concreto e lamentável do que estamos comentando conceitualmente”, analisa.
Roberto Moraes Pessanha (foto abaixo) é doutorando do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Engenharia de Produção pela Coordenadoria dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Coppe/UFRJ. Também é especialista em Engenharia de Segurança do Trabalho, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, em Gestão de Educação Tecnológica, pela Oklahoma State University – OSU, nos Estados Unidos, e graduado em Engenharia Elétrica pela Universidade Santa Úrsula – USU, no Rio de Janeiro. Atualmente é professor do Instituto Federal Fluminense – IFF e se dedica às pesquisas sobre o processo de implantação do Porto de Açu e sua relação com a dinâmica econômica e as novas territorialidades no Estado do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que aspectos da economia global possibilitam a criação de empreendimentos como o Porto do Açu no Brasil? Em que contexto histórico, político e econômico esses projetos foram viabilizados?

Roberto Moraes Pessanha – Os projetos em infraestrutura portuária que surgiram na segunda metade da década passada, no litoral do sudeste brasileiro, foram orientados pela lógica da inserção global do país e numa perspectiva de aproveitamento de uma das quatrofronteiras de expansão imaginadas para a economia brasileira:
1) Crescimento com inclusão social, redistribuição e consumo de massa;
2) Matriz da expansão centrada na indústria do petróleo (hoje 13% Produto Interno Bruto – PIB Nacional e 33% PIB do estado do Rio de Janeiro) e extrativista mineral sustentada na valorização das commodities no mercado internacional;
3) Programa de investimentos em infraestrutura para atender o fluxo de cargas e mobilidade;
4) Programa de exportações (mineral, agronegócio: soja, milho e carne).
Alguns optam por nomear esse modelo como neodesenvolvimentista. Mesmo identificando os riscos de reprimarização de nossa economia e das características da dependência e subordinação, do tipo centro x periferia deste caminho, com fortes críticas, eu prefiro compreendê-lo como uma opção, dentro do capitalismo contemporâneo. A opção de simultaneamente gerar excedentes na economia brasileira, fazendoinclusão social, mesmo que basicamente no consumo, em paralelo à ampliação dos equipamentos públicos (educação e saúde) numa perspectiva de redução gradual (mesmo que limitada) das desigualdades. Esforça-se aí para avançar numa maior interação regional (América Latina e União das Nações Sul-Americanas – Unasul) e na direção da construção de novos alinhamentos geopolíticos que se desenham no mundo contemporâneo.
Transporte como valor capital
É importante realçar que as demandas por commodities minerais e do agronegócio cresceram nesta última década como parte do pico de mais um “ciclo longo” da economia, tendo como base maior a China e seu colossal crescimento econômico. Daí se originam as demandas pela construção e ampliação dos portos como nós dos fluxos de mercadorias. Sobre isto, o geógrafo David Harvey, em seu livro Os limites do capital (São Paulo: Boitempo, 2013), chama a atenção para as relações entre transporte/movimentação de produtos e a mobilidade do capital sob a forma de mercadoria. Neste ponto Harvey invoca Marx ao afirmar que a indústria do transporte produz valor, por se tratar de uma esfera da produção material que vende a mudança da localização como seu produto. Assim, a circulação do capital seria assegurada por um pujante e eficiente sistema de transporte que, espacialmente integrado e hierarquizado, em diferentes escalas é puxado pelas corporações globais, naquilo que acabou nomeado como um processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. É nesta lógica que devemos nos esforçar para compreender onde o Brasil entra neste processo.
É oportuno antes recordar que as corporações globais se diferenciam das multinacionais, porque as primeiras atuam como se o mundo inteiro fosse uma única unidade. Chamo este fenômeno como sendo uma espécie de geografia das corporações. Neste contexto, estas corporações globais do setor de petróleo quase não enxergam, e não se submetem ao nacional, o que torna a questão da relação petróleo-porto um tema singular e temeroso, no esforço de desenvolvimento e de inserção global do Brasil, numa tentativa arriscada de repetir o Canadá e a Austrália, e de certa forma os Estados Unidos, em geração de excedente com produção e exportação mineral, tentando dar um salto do setor primário para as cadeias de valor, mesmo que regionais, dentro do capitalismo globalizado.
Também é necessário registrar que este dilema não é exclusivo do Brasil na América Latina. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, em 1995 as matérias-primas sem valor agregado representavam 38% das exportações do continente para a China. Já em 2008, este percentual tinha subido para quase 70%. Nestas circunstâncias, fugir da primarização é uma tarefa difícil e parece apenas uma isca que complementa a teoria de que, para existir o centro, seria sempre necessário ter a periferia supridora de matérias-primas dependente e subordinada.

IHU On-Line – Quais foram as articulações públicas e privadas que possibilitaram o empreendimento Porto do Açu? Como entende a relação entre produção, mercado e Estado nesse processo?

Roberto Moraes Pessanha – Não há como falar em investimentos em infraestrutura sem uma relação próxima e direta entre o poder político e o setor privado, nas economias de mercado, dentro do sistema capitalista. No caso brasileiro, além da regulação do Estado, em termos de autorizações e licenciamentos, o financiamento direto e indireto é fator importante, e quase indispensável, para a viabilização dos empreendimentos. O setor privado depende ainda do Estado para o planejamento. Na interação o Estado é cooptado e o capitalismo liberado para suas ações, embora ainda se sustente o discurso de que através do planejamento se possa reduzir os riscos dos movimentos especulativos no tempo e no espaço, onde o capital fixo se instala. Neste sentido, o caso da tragédia produzida pela mineradora Samarco, no município de Mariana, Minas Gerais, é um exemplo real, concreto e lamentável do que estamos comentando conceitualmente.
No plano nacional, o papel de planejamento do Estado pode ser visto no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e nos projetos do Programa de Investimentos em Logística – PIL, que foram sendo desenhados pelo Estado, em diferentes órgãos, como base para a construção das chamadas “Condições Gerais de Produção”. Desta forma, os diversos modais (ferroviário, rodoviário, portuário e dutoviário) se constituem em eixos de circulação entre a produção e o consumo. Interessante é perceber como o Estado é indispensável para esta etapa de planejamento, embora também fique claro como o setor privado coopta os gestores públicos (nas diferentes escalas) para obtenção de seus interesses privados, nesse processo de formação do valor, especulação e acumulação de lucros, com patamares altíssimos de rentabilidade e exclusividade de usos que levam aos oligopólios.
As infraestruturas de circulação, chamadas hoje de logística, são quase sempre exclusivas e monopolísticas, simultaneamente, derrubando as barreiras físicas ao movimento das mercadorias e do dinheiro, ao mesmo tempo que, de outro lado, amplia enormemente o controle dos fluxos de mercadorias definindo preços e margens de lucro das mercadorias. Assim, a maior ou menor fluidez na etapa de circulação das mercadorias oferece garantias e poder aos oligopólios da produção e do consumo (e também aos operadores marítimos e de cargas) ampliando lucros e a acumulação das corporações mundo afora. Cada vez menos, os Estados conseguem regular este processo diante de tanta fluidez e da agilidade dos processos nesta etapa da circulação, entre a produção e o consumo de mercadorias.
O gigantismo naval (com as enormes embarcações com capacidade superior a 18 mil contêineres) desenvolve o gigantismo portuário que demanda superportos com enormes cais e canais de atracação de grande profundidade. A ampliação do Canal do Panamá e o projeto do Canal da Nicarágua são partes deste processo. De forma conjunta se identifica a hierarquização do sistema portuário, que amplia o processo de oligopolização, quase monopólio, a despeito da atividade privada no setor. É neste contexto que se deve tentar compreender o surgimento de novos portos no Brasil. Não se operam projetos neste setor sem a forte atuação do Estado e profundas articulações entre o público e o privado. O caso do Porto do Açu, um empreendimento privado, nasce e se desenvolve nesta lógica, com articulações nas diversas escalas de poder e nos diferentes setores da gestão, desde as autorizações e licenciamentos, até o financiamento e construção das chamadas Condições Gerais de Produção com as infraestruturas para viabilização do empreendimento.
IHU On-Line – De que modo a comercialização mundial de petróleo e de minério reflete e repercute no desenvolvimento tanto do Brasil quanto do estado do Rio de Janeiro?

Roberto Moraes Pessanha – O sudeste brasileiro, além de possuir o porto de maior circulação de mercadorias (Santos), possui, no Espírito Santo, um importante “hub” logístico para a exportação de minério de ferro que, de certa forma, complementava a estrutura da minerária em MG. Há uma década, o estado do Rio de Janeiro entrou neste circuito com projetos portuários tanto para exportação de minério quanto, especialmente, para bases de apoio offshore para exploração de petróleo. Assim, Rio de Janeiro e Espírito Santo passaram a disputar a condição de centro de logística da região economicamente mais forte do Brasil.
O estado do Rio de Janeiro possui o terceiro maior litoral do Brasil, com 635 km, que lhe concedeu a alcunha de “estado-porto”, por possuir mais portos em funcionamento (organizados públicos e TUPs – Terminal de Uso Privado). Em 2005, o RJ possuía 5 portos públicos e 8 TUPs em funcionamento. Em 2015, no Estado o número de portos e TUPs em funcionamento já tinha se ampliado para 15, enquanto outros 9 projetos estão em fase de construção e/ou licenciamento. Um exagero. Se nenhum destes projetos entrar em funcionamento, com 15 já se teria o número exagerado de um terminal a cada 40 km.
Com os novos TUPs que entraram em funcionamento, Açu em São João da Barra (2014) e Sudeste em Itaguaí (2015), o RJ ampliou sua atuação no circuito de exportação de minério de ferro produzido em MG, que antes era feito pelo terminal da Vale em Itaguaí, na Baía de Sepetiba e, especialmente, pelo Porto de Tubarão, em Vitória, e de Ubu(Samarco) em Anchieta, no litoral do ES. Porém a extraordinária expansão das bases portuárias no litoral fluminense passou a ter relação direta com a ampliação da atuação do Estado na expansão da exploração do petróleo no litoral. O fenômeno levou a economia estadual a ter 33% do seu PIB de alguma forma vinculado à cadeia produtiva deste setor, de forma direta, ou indireta, pelas petrorrendas, com as receitas dos royalties do petróleo para o Estado e municípios fluminenses. Este conjunto de fatos permite interpretar que a economia fluminense (fração importante da nacional) passou a viver uma etapa de inserção à economia global com profundas repercussões sobre o uso do seu território. Em minha pesquisa empírica já levantei quase duas centenas de corporações globais do setor de petróleo atuando no estado do Rio de Janeiro.
Como já mencionei, as relações da exploração de petróleo e de minério de ferro dependem da infraestrutura portuária para se viabilizarem. No caso do minério de ferro extraído em MG, pela exportação feita pelos portos capixabas e fluminenses. No caso do petróleo, pela movimentação da mercadoria (commodity), já que há um pouco de exportação e importação, por conta do excesso de petróleo pesado que é vendido para ser processado no exterior com importação de petróleo leve, ou já de produtos refinados, porque hoje o Brasil tem suas refinarias trabalhando nos limites de suas capacidades.

Só os estados do RJ e SP possuem 33 terminais de armazenamento de petróleo, a maioria junto aos portos com capacidade somada de 8,3 milhões de litros, que equivalem a 56% de todo o país. Porém, a relação com o petróleo no RJ é mais ampla, porque a exploração (perfuração e produção) de petróleo offshore exige uma logística que envolve necessidades de bases portuárias, embarcações de apoio em quantidades bastante significativas, a partir da expansão espacial no litoral brasileiro. Isto tem produzido não só uma espécie de dependência (maldição mineral) que a economia passou a ter da atividade petrolífera – estimada em 33% do PIB estadual –, como também a produção de novas territorialidades nas regiões que vão pelo litoral da capital até o Norte do RJ, onde já entrou em funcionamento o Porto do Açu. Uma dinâmica econômico-espacial foi sendo gerada, decorrente deste intenso movimento produzido pelas corporações. Para uma melhor compreensão deste processo eu nomeei dois fenômenos: a tríade porto-petróleo-indústria naval e a distinção entre o que passei a chamar de economia do petróleo e economia dos royalties. Mais informações sobre esta ideia podem ser obtidas aqui.
A partir da tríade (ilustração ao lado) é possível aprofundar a compreensão espacial do fenômeno em curso, em que este movimento das corporações gerou uma inflexão econômica da capital (e região metropolitana) em direção ao interior Norte (pelo litoral), num processo de dispersão, que adiante foi conjugado a outro movimento, em direção contrária, de reconcentração na região metropolitana, por conta do processo de verticalização (e hierarquização), que é a forma como o comando desta cadeia produtiva atua. Assim, hoje, se compreende que estes dois movimentos espaciais são partes de um ciclo, em que as regiões e os territórios usados pelas corporações decidem o que, quando e como fazem, sem que as pessoas e comunidades tenham capacidade de influir neste processo.
Este é ainda um fenômeno pouco conhecido e interpretado pelas comunidades e mesmo pelas gestões locais ou estadual. Pior, em função do conhecido problema do federalismo, os municípios se organizam e trabalham de forma concorrencial e competitiva (especialmente na discussão da atração de investimentos), participando da guerra dos lugares (onde a guerra fiscal com incentivos tributários é apenas uma de suas faces). Há muita dificuldade para se perceber o fenômeno regional. Maior ainda é a capacidade de decifrar os enigmas da geografia das corporações, com suas características globais alterando as territorialidades, entendida aí a mudança e interferência direta sobre a vida das pessoas e comunidades.
Isto se dá não apenas no RJ e ES, mas em diversos outros estados: no Rio Grande do Sul, com o Porto do Rio Grande,Paranaguá, no Paraná, Suape, em Pernambuco, Pecém, no Ceará, Itaqui, no Maranhão e Vila do Conde, no Pará. São complexos logísticos-industriais com portos da 5ª geração. A partir disso se pode inferir que uma importante vertente da expansão da economia brasileira passou a ter, nos sistemas portuários, uma de suas principais bases. Tornou-se importante compreender as novas territorialidades nas cidades e regiões no entorno destes complexos logísticos-industriais, considerando que o Brasil tem 17 estados litorâneos e 13 das 27 capitais brasileiras estão na costa, onde vivem ¼ da população. Além disso, não se pode deixar de lado a proteção e a base de operação portuária que será necessária para cuidar da Amazônia Azul com seus 4,5 milhões de Km².
IHU On-Line – Qual é o destino do minério brasileiro?

Roberto Moraes Pessanha – São dois destinos principais. Parte vai para a Europa, através dos portos de Roterdã, na Holanda e Antuérpia, na Bélgica, e um maior volume segue para a Ásia, em especial para a China. O destaque da produção de minério no Brasil é da empresa Vale, a maior exportadora mundial de minério de ferro. Criada em 1942 por Vargas, como Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, foi privatizada em 1996, por Fernando Henrique Cardoso, quando se transformou apenas na “Vale”. A seguir, já articulada com fundos financeiros globais, ela expandiu sua atuação, se transformando numa player internacional. Hoje está entre as três maiores mineradoras do mundo, junto da BHP Billiton e Rio Tinto e é a maior produtora de minério de ferro e níquel do planeta. Está na lista das 100 maiores empresas transnacionais, segundo a Unctad-ONU, com bases em cinco continentes e um valor de US$ 47 bilhões. A Vale exporta sua produção de MG pelos portos do RJ e ES. Hoje, produz cada vez mais em Carajás, no Pará, e por ferrovia leva o minério até o Porto de Itaqui no Maranhão para ser exportado. O transporte da mina até o porto em dois casos é feito por mineroduto: a da Samarco de Mariana até Anchieta, no Porto de Ubu, no litoral capixaba através de três minerodutos, e da Anglo American, desde o município de Conceição de Mato Dentro, MG até o Porto do Açu, no município de São João da Barra, Norte do RJ. Nos demais casos a logística de transporte para exportação se dá através de ferrovias até os portos. O auge da valorização se deu em fevereiro de 2011, quando chegou a US$ 187,18 a tonelada, conforme mostra gráfico do “Index Mundi” a seguir.

Em função deste valor, há maior ou menor atração de investimentos e acionistas, tanto para aquisição dos ativos das minas, quanto para a instalação das unidades de beneficiamento e logística de transporte. Os momentos de redução da demanda da commodity no mercado mundial é quando os oligopólios se formam através das fusões e aquisições entre empresas que assim retiram do mercado empresas concorrentes, que possuem maiores custos de produção, como estamos assistindo diariamente. Aí estão os riscos para os países que passam a ficar dependentes da extração mineral na geração de excedentes para as suas economias. Este é fenômeno já explicado desde a Teoria da Dependência, desenvolvida pelos professores Theotonio dos Santos e Rui Marini. Na década de 1960, eles já chamavam a atenção das características do desenvolvimento dependente. Assim, mostravam que o subdesenvolvimento, mais que ausência de investimentos, era resultado de um mesmo ciclo do capitalismo, como um sistema mundial que produz, ao mesmo tempo, desenvolvimento e subdesenvolvimento. Outros autores denominam este processo como o do desenvolvimento desigual e combinado do sistema-mundo bem descrito por Wallerstein, a partir da Teoria do Desenvolvimento.
IHU On-Line – Qual é a relação do Porto do Açu com o projeto de mineração no país?
Roberto Moraes Pessanha – Interessante relembrar que o Porto do Açu teve o seu primeiro projeto elaborado pelo governo estadual entre os anos 2000 e 2001. Ele nasceu como uma proposta de ser um terminal de apoio portuário às atividades offshore de petróleo na Bacia de Campos. Com este propósito ele foi pensado com uma constituição de três empreendedores: o governo estadual, a Petrobras e empreiteiras (construtoras). Com este desenho, no governoFernando Henrique Cardoso ele não teve bases para sair do papel, já que a estatal andava estruturando sua privatização, logo após ter quebrado o monopólio da exploração de petróleo no país. Ao não sair a privatização, a tática adotada foi reduzir o peso da Bacia de Campos na parte operacional. Assim, criou as unidades de negócio no ES e RJ e perdeu qualquer interesse em nova base operacional próximo de Macaé, como seria a do Açu.
O projeto então ficou parado por anos, até que o governo estadual o redesenhou para a exportação de minério de ferro, assim ele foi oferecido à Vale. Interessada no ES, onde chegou a cogitar uma siderúrgica em Ubu, a Vale não desdenhou o projeto, até que no final de 2005 o governo estadual, numa articulação entre o ex-governador Garotinhoe Eliezer Batista, acabou por repassar gratuitamente o projeto ao empresário Eike Batista. Este já possuía uma mina no Quadrilátero Ferrífero e considerou pertinente a construção de um mineroduto de 525 km até o Açu. Assim, ele adquiriu duas fazendas no litoral que eram áreas de usinas falidas. Desta forma, o porto iniciou sua construção em outubro de 2007, com o propósito principal de ser um porto de exportação de minério de ferro como era o Porto de Ubu para a Samarco, no município litorâneo e capixaba de Anchieta.

Ainda em 2005 é criada a empresa de mineração do grupo X, a MMX, que realiza sua primeira oferta de ações em 2006. Logo após a MMX já incorporava três negócios (ativos), Amapá, Corumbá e o Sistema Minas-Rio, que incluía o terminal no Porto do Açu. Assim, em 2007, já com uma boa valorização do minério de ferro no mercado internacional, o projeto é vendido para a Anglo American por US$ 6 bilhões.
Com a crise do grupo EBX, o fundo financeiro americano EIG Globalassume os negócios do Porto do Açu e LLX e a parceria com a mineradora Anglo American para o beneficiamento e embarque do minério de ferro no Porto do Açu exige a organização da joint-venture FerroPort, com 50% de capital de cada uma das duas empresas. Adiante o Porto do Açu expande suas atividades também para o setor de apoio às operações offshore de petróleo com a criação do terminal Sul (2) no Porto do Açu e, em outubro de 2014, a FerroPort realiza o primeiro embarque de minério de ferro em direção à China.
Como se vê, ao longo de oito anos o projeto foi mudando de mãos, acionistas e controle, num processo que amplia as dificuldades de regulação por parte do Estado, considerando ainda os riscos de crise e interrupção que faz com que o empreendedor exija “novas facilidades” ou “apoios” dos governos, nas diferentes escalas para que o mesmo não seja interrompido. Na primeira etapa do projeto, o volume de exportação, pelo Porto do Açu, de 26 milhões de toneladas/ano é relativamente pequeno – menos de 10% do volume nacional de minério de ferro exportado pela Vale. Antes da atual crise do preço do minério no mercado mundial, havia comentários sobre a instalação de um segundo mineroduto, seguindo o que fez a Samarco, que saiu de um para três minerodutos, na ligação entre a mina em MG e o Porto de Ubu, entre a década de 70 e o início desta década com ampliação paulatina da capacidade de exportação. Hoje, diante desta realidade, há mais perspectivas de ampliação das atividades ligadas à exploração de petróleo (mesmo também em crise com o baixo valor do barril) do que com a exportação de minério.
IHU On-Line – O que é o Projeto Rio-Minas e quais seus impactos socioambientais?
Roberto Moraes Pessanha – O projeto Rio-Minas é um projeto de extração de minério de ferro em Conceição de Mato Dentro e exportação pelo Porto do Açu. As aquisições de terras e a implantação da estrutura para extração do minério no interior mineiro foram acompanhadas de muitos impactos socioambientais aos moradores da região, assim como a implantação dos 525 km de mineroduto, que passa por 32 municípios até chegar ao Açu. Outra etapa de impactos não menores foram com as desapropriações de áreas de cerca de mil pequenos produtores rurais no entorno do Açu para a viabilização de um distrito industrial em área junto ao porto em parceria entre a Codin (empresa estadual) e a LLX, atual Prumo Logística S.A. Além do processo violento impositivo da expulsão destes camponeses de suas áreas – centenas se transformaram em processos judiciais –, os impactos socioambientais sobre as comunidades originárias vivem permanentes conflitos gerados pela implantação do complexo portuário-industrial, com a presença de grande número de trabalhadores vindos de outros estados.

Porém, os impactos socioambientais mais significativos derivaram da salinização do solo e de recursos hídricos da região de lagoas e canais por consequência da água salgada dos aterros hidráulicos feitos com areia do mar, obtida por dragagem do canal de acesso e utilizada para elevar o nível do solo na retroárea do porto. Outro problema que persiste é a erosão da praia do balneário do Açu por consequência da construção quebra-mar do terminal Sul (ou terminal 2) do Porto do Açu. Mais detalhes sobre os impactos na visão dos atingidos (nas duas pontas do sistema MG e RJ) podem ser lidos no relatório “O projeto Minas-Rio e seus impactos socioambientais – olhares desde a perspectiva dos atingidos coordenado pelo Ibase e AGB e elaborado com a contribuição dos atingidos e pesquisadores de diversos núcleos ligados às universidades, entre os quais me incluo.
Vale ainda conferir o relatório da Associação dos Geógrafos Brasileiros Rio-Niterói, que trata dos impactos no estado do Rio de Janeiro: Relatório dos Impactos Socioambientais do Complexo Industrial-Portuário do Açu, 2011.
IHU On-Line – Como é feito o licenciamento ambiental de empreendimentos como o do Porto do Açu?
Roberto Moraes Pessanha – Os licenciamentos dos grandes projetos de investimentos há muito são discutidos. O licenciamento e posteriormente a fiscalização da implantação e a autorização para operação são muito questionados e feitos, quase sempre, de forma precária pelos órgãos reguladores, que possuem estruturas e poderes limitados. O sistema só não é pior do que não fazer e não acompanhar nada. Tem sido cada vez mais comum a absurda terceirização deste serviço, que cria uma teia perversa de interesses entre as empresas e as consultorias que passam a atuar duplamente e de forma cruzada, para esconder aberrações e acordos comerciais.
A população e as comunidades se interessam em conhecer os projetos, aí quando compreendem alguns impactos,questionam e raramente são atendidos em alterações e complementações dos projetos. As atas das audiências escamoteiam as reivindicações e fica o dito pelo não dito. Assim, as populações se sentem usadas por legitimarem os procedimentos com suas participações nas audiências públicas.
Sobre o caso dos empreendimentos dos projetos interligados ao Porto do Açu, a maior reclamação foi o fatiamento dos mesmos, por empreendimento, sem uma visão integrada e de impactos cumulativos. Além disso, o próprio projeto de extração e exportação de minério de ferro, que passou a ser chamado de Sistema Minas-Rio, ainda antes de a LLXvender o projeto para a Anglo American, sofreu dificuldades para ser acompanhado por conta deste fatiamento. O mesmo se deu com os projetos individuais, mesmo que apresentados pelo mesmo grupo empresarial que implantava o porto (terminal 1 e depois o 2, ou Sul), estaleiro, usinas termelétricas e distrito industrial, mesmo envolvendo o mar, que é regulado pela União, foram licenciados pelo Instituto Estadual do Ambiente – Inea, órgão ambiental do RJ, por autorização decorrente de convênio com o Ibama.
Hoje, já se vivem dois grandes problemas que os licenciamentos não valorizaram as preocupações das comunidades locais: a salinização do solo e dos corpos hídricos com escoamento da área salgada dos aterros hidráulicos como citamos acima, e o grande impacto da erosão da praia do Açu, na frente de onde estão localizadas as moradias do balneário, decorrentes da construção dos quebra-mares do terminal 2 do porto do Açu; impacto aliás previsto no EIA/Rima, objeto de grande debate e questionamentos da comunidade na audiência pública e completamente desconsiderado durante a construção, e que hoje já significou a redução de mais de cem metros de praia e com a invasão do mar, em casas e ruas da área urbana do Açu.

Confira as imagens (ao lado e abaixo) da realidade comparada com a do Google Earth sobre o fenômeno da erosão naPraia do Açu. Em outra das imagens, observe trechos de uma das páginas do EIA/Rima, do projeto do Terminal Sul (2) do Porto do Açu mostradas junto de foto aérea do próprio empreendedor, onde se vê os quebra-mares, responsáveis pela erosão já prevista no estudo prévio de impacto ambiental do empreendimento. A erosão prevista no EIA/Rima como “risco muito alto”, agora está esquecido e desconsiderado, a partir de outros pareceres recentemente obtidos pelo empreendedor no mercado de consultorias, para tentar fugir às suas responsabilidades e aos questionamentos das ações que correm na Justiça Federal, movidos pelo Ministério Público Federal, e Campos dos Goytacazes, RJ.

Outras matérias sobre a erosão da Praia do Açu podem ser vistas no meu blog.
Um terceiro importante impacto ambiental se trata de seguidas denúncias de trabalhadores da área de embarque de minério de ferro sobre quantidades significativas do material que cai sobre o mar, das falhas do processo de embarqueprojetado, considerando os fortes ventos da região e o descaso do empreendedor.
Por último, para encerrar a questão dos questionamentos sobre os licenciamentos, há que se falar sobre a falácia e o engodo de boa parte dos discursos de sustentabilidade. A tragédia da barragem de rejeitos da Samarco em Mariana nos impõe ainda uma reflexão sobre a superioridade do discurso da técnica.
O logro da prepotência da “arenga engenheiral”. A prepotência dos discursos corporativos e técnicos que vociferavam a eficiência privada e as técnicas perfeitas, indiscutíveis e inquestionáveis, se construiu a imagem da destruição das instalações, casas, vidas e sonhos das pessoas invisíveis.
As falas das pessoas da comunidade do entorno do empreendimento da Samarco (Vale e BHP Billiton) reclamando dos riscos e dos impactos socioambientais que foram – e ainda são – quase que sistematicamente caladas, em nome do “progresso”, ganham, em meio aos escombros do que sobrou de suas comunidades, a razão de quem preferiria continuar a não ter razão, sobre a desconfiança daquilo que era tão “sólido e se desmanchou no ar”.
IHU On-Line – Que futuro vislumbra para a economia brasileira, dados os investimentos que foram feitos até agora, como o do Porto do Açu, tendo em vista também a queda na exportação das commodities no cenário mundial?
Roberto Moraes Pessanha – Não é oportuno ter uma leitura parcial deste quadro considerando a extensão e a complexidade do mesmo. Assim, uma noção de totalidade parece indispensável para uma leitura da Economia Política que o tema da entrevista sugere.
Diante de tudo que já foi exposto, sobre a forma como as corporações atuam na economia global, o atual baixo dinamismo das atividades econômicas nos diversos continentes e a intensificação da crise – que deve ser vista não como um evento anormal, mas parte dos ciclos econômicos do sistema capitalista global – é possível observar como as nações foram se tornando cada vez mais vulneráveis ao capital global. Não seria exagero afirmar que ascorporações globais junto com o sistema financeiro hoje comandam o mundo, atuando sobre as nações e osEstados.
Diante deste quadro, se percebe mais claramente os riscos a que estão submetidas as nações ao projetarem a sua inserção nas cadeias globais de valor. Maiores ainda são os riscos quando se trata de uma inserção baseada na economia das commodities, cujo comércio é ainda mais centralizado e seus fluxos e preços são controlados por traders que ignoram interesses nacionais. Assim, mesmo considerando o momento de aparentes oportunidades gerado pelos acordos com os Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e novos alinhamentos mundiais, os projetos precisam ser melhor estruturados, as comunidades regionais envolvidas e a formação de cadeias de valor com industrialização talvez devessem ser articuladas pelo continente antes de serem acordadas com outras nações e governos. Trata-se de uma tarefa altamente complexa.

Também é indispensável ampliação nos investimentos para a formação educacional que gere outras perspectivas para as classes trabalhadoras, de forma a evitar que a participação brasileira nas cadeias globais só sejam viáveis em setores de mão de obra barata, como diferencial competitivo e de produtividade com outras partes do mundo. O adensamento de cadeias produtivas e a produção de maior valor agregado precisam ser também projetados.
Neste aspecto, não se pode deixar de considerar o imenso potencial gerado pelas reservas do pré-sal; mesmo que hoje a parte provada seja em torno de 20 bilhões de barris, há avaliações, baseadas em estudos de qualidade que podem nos colocar entre as cinco maiores reservas do mundo. Em agosto, o Instituto Nacional de Óleo e Gás da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (INOG-UERJ) sinalizou que o Pré-sal pode ter ao menos 176 bilhões de barris de óleo de reservas. Com o volume de reservas estimados por este estudo de base científica, o Brasil passaria a ser a terceira maior reserva de petróleo do mundo, atrás somente da Venezuela (297 bilhões de barris) e Arábia Saudita (265 bilhões de barris).
A crise política em que vivemos com o Congresso conspirando contra a presidente eleita, através de um impeachment, através um golpe jurídico-legislativo, as portas parecem se abrir para usufruto desta riqueza que deveria estar destinado a um fundo soberano em favor da população brasileira. Em meio a todo este processo é impossível estimar, no curto prazo, um futuro melhor para a economia e para a cidadania brasileira.
Por Patricia Fachin e Leslie Chaves


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